segunda-feira, 21 de novembro de 2022

Sobre o empréstimo de livros

 Crônica de Renato Muniz B. Carvalho 

Se há uma coisa polêmica sobre a face da Terra — depois das preferências políticas e da escalação da seleção brasileira — é o empréstimo de livros. O ser humano empresta tudo o que tem e, creio, nesse ponto, os brasileiros são imbatíveis. Emprestamos roupa, carro, dinheiro, uma xícara de açúcar, meio quilo de farinha de trigo, ovos, pó de café e por aí afora. O que é um livro neste universo de coisas emprestadas!

Quando o item, cedido gratuitamente e de forma temporária, retorna, o agradecimento é um capítulo à parte. É claro que fica mais gostoso quando vem acompanhado de uma fatia de bolo e, talvez, de um convite para tomar um cafezinho mais tarde. Nessas ocasiões, pode-se colocar a conversa em dia, falar bem ou mal dos outros, reclamar de uma dorzinha no braço e trocar uma receita deliciosa de torta recheada de palmito. Hum!

Ao longo da vida, já vi gente emprestando sapato, casaco, óculos, ferramentas, caneta, celular… Dizem, mas eu não posso confirmar a fonte, que uns e outros costumam emprestar marido, mulher e até cachorros. Já pensou! Emprestar o bichinho de estimação, o xodó da família, é um ato extremo de desprendimento, mas não me parece verossímil. Em todo caso, como tudo nesse país se empresta, vamos admitir e abandonar o exemplo para não criar azedumes.

Dinheiro, quando as garantias são boas e as condições bem-acertadas entre as partes, não costuma acarretar aborrecimentos. Além disso, é batata, isto é, matemática: basta combinar os juros e a data de restituição que ninguém pode reclamar, não é? Existem alguns dissabores no caso de recusa em pagar, mas, se fosse ruim, bancos não teriam tanto lucro.

Complicado mesmo é emprestar livros. Nunca se sabe se o exemplar vai retornar e em que estado. Tem livro que vai longe, no sentido físico da coisa, de mão em mão é capaz de dar a volta ao mundo e o dono nem ficar sabendo. O risco é não voltar nunca mais.

Pedir um livro emprestado é operação tão delicada quanto pedir alguém em casamento. Se os compromissos não forem honrados, amizades podem ser desfeitas, mágoas viram depressão, crises são desencadeadas.

Sempre tive muitas dúvidas sobre o assunto. Emprestar ou não emprestar? Meu avô tinha um quadrinho na biblioteca dele no qual estava escrito: “Livro emprestado, perdido, estropiado”. Por um tempo, mantive uma caderneta, dessas que existiam nas antigas mercearias, onde eu anotava o nome do comodatário, o título do livro, a data de saída e de retorno. Quando vi que a coluna do regresso ficava em branco e muitos inadimplentes me olhavam amuados, desisti de anotar. Joguei a caderneta fora. Satisfazia-me imaginar que, pelo menos, alguém estaria lendo um livro. Nos tempos atuais, é melhor aumentar a quantidade de leitores.


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sexta-feira, 14 de outubro de 2022

Dia do escritor


13 de outubro: Dia Mundial do Escritor e da Escritora. Eis uma atividade profissional que deve ser exercida, acima de tudo, com profundo senso crítico, compromisso com a valorização da leitura e com a difusão do livro. O exercício da escrita deve servir para lutar contra as injustiças, para eliminar as desigualdades sociais, para aproximar os povos e realçar a índole inconformista, revolucionária, amorosa e inclusiva das pessoas. 



terça-feira, 11 de outubro de 2022

Praias: era só o que faltava



Renato Muniz B. Carvalho

O Brasil é um país abençoado. Tem florestas incríveis, tem montanhas, cânions, orquídeas belíssimas, biodiversidade, cachoeiras, um povo lindo e acolhedor. O que mais? Tem… Ah, tem praias, muitas praias! Tem um litoral com cerca de oito mil quilômetros de extensão, com mais de duas mil praias, cada uma mais bonita que a outra, algumas são famosas no mundo inteiro e recebem milhares de turistas o ano todo. Praias extensas, praias escondidas, praias paradisíacas, praias de areia fina, boas para caminhar, para apreciar a paisagem. Se tem algo realmente democrático no país, além dos botecos, são as praias. Quando se juntam botecos e praias, a felicidade está completa.

 Essa felicidade pode estar ameaçada. Um dos burocratas de plantão apareceu com a ideia estapafúrdia de vender as praias. Não sei de onde tiram essas ideias mirabolantes. Será que eles não têm coisas mais importantes para fazer? Por que não cuidam da economia, do combate à inflação, da geração de empregos, do câmbio e deixam nossos sonhos em paz? Sim, o sonho da maioria dos brasileiros e brasileiras é um dia poder ir à praia, deitar-se na areia, curtir as ondas, levar a meninada para se divertir. Mas não, eis que surge o burocrata propondo a privatização das praias. Sim, você leu direitinho: vender nossas praias. Um dos argumentos é a má gestão das mesmas. Como assim? Talvez ele esteja se referindo aos dias nublados, aos dias de chuva, às ressacas… Tá, é preciso administrar isso. Como resolver? Não dá para viajar centenas de quilômetros e encontrar chuva na praia. Acaba o passeio.

 Má gestão? Talvez ele tenha se referido à ausência de salva-vidas. Não, eles estão lá, atentos, solícitos, salvam vidas. Será que ele se referiu à carência de bares, de quiosques, banheiros públicos? Isso nunca foi problema para nós. Em qualquer praia, da mais badalada à mais distante, sempre existirá um barzinho que vende água de coco. Então deve ter se referido à aparição de tubarões em algumas praias, assustando os banhistas. Será que faltou combinar com os tubarões para eles não se aproximarem da orla? Faltou diálogo com os peixes? Será a presença de águas-vivas? Poucas conchinhas? Som alto nas barracas, muitos vendedores de bugigangas? Será que algum desses itens é suficiente para caracterizar má gestão e justificar a venda?

Desculpem a ironia, mas observem a seguir um exemplo do que alguns consideram boa gestão. Vendidas as praias, deve-se fazer um imenso alambrado, ok? Depois de cercadas, limitar o acesso, construir guaritas, cobrar ingressos, rever as concessões dos quiosques, estabelecer regras, definir quais as vestes permitidas, qual o tempo de uso, as práticas esportivas autorizadas, determinar o tamanho e formato dos guarda-sóis, a metragem permitida para cada família na faixa de areia, exigir licença para uso pedagógico dos castelinhos de areia, limites para se cobrir de areia etc. As cadeiras devem ser alugadas. Ah, não pode mais entrar com cerveja, bolacha ou biscoito nem sorvete. Só faltava essa! 

Muda mundo

Renato Muniz B. Carvalho

 Na fazenda do meu avô, faz tempo, parecia que o mundo ia ser sempre igual. Ano após ano, a sensação que predominava era a de que tudo ficaria do mesmo jeito, indefinidamente, nada mudaria ou mudaria muito pouco. Essa era a percepção predominante. A alternância entre dia e noite, apesar das alterações óbvias entre claro e escuro, entre criaturas diurnas e noturnas, entre temperaturas desiguais, entre a hegemonia do sol ou da lua, isso não contava no rol das modificações consideradas. Mudanças decorrentes de variações nas estações: calor e chuva no verão, frio e seca no inverno etc., não eram entendidas como tal, mas como situações externas ao mundo, e se repetiriam de forma contínua séculos afora. Ou seja, o normal era um mundo fixo, rígido, um mundo que seria invariável, apesar da passagem do tempo.

 Vez ou outra caía uma árvore, os córregos enchiam e transbordavam, pontes desabavam, incêndios queimavam os pastos, mas essas também eram ocorrências não computadas no universo das transformações significativas para quem se dispusesse a olhar o mundo com um pouquinho mais de atenção. Aliás, não perceber que o mundo mudava e não fazer a devida leitura da realidade era habitual para muita gente. Para certas pessoas, tanto no meio rural quanto nas cidades, as perspectivas eram bastante limitadas. Omissões, deturpações, interesses particulares e visões dominantes dificultavam ou impediam a leitura crítica do mundo. Isso quando as leituras não apareciam prontas, mastigadas, sem grandes questionamentos. A sociedade patriarcal determinava quais leituras aceitar e sua interpretação. O que escapasse para além das estreitas margens conhecidas era punido, recusado e censurado.

 Eleições eram comandadas por salientes chefes locais, que indicavam em quem votar. As trajetórias educacionais e as carreiras profissionais eram limitadas. Uma vez escolhida a profissão, isso devia valer para o resto da vida. Casamentos também: “até que a morte os separe”. Aos mais jovens que ousassem questionar a ordem estabelecida se dizia que quando fossem mais velhos desistiriam de “mudar o mundo”. Esta era a epígrafe – ou o epitáfio – do conservadorismo.

 A morte era um acontecimento fora do padrão no contexto vigente. Dificilmente isso era entendido como algo que fazia parte da vida, daí seu impacto, sua ocultação dos pequenos, seu caráter trágico, excepcional, místico.

 Mas o mundo mudava, ora menos, ora mais, às vezes de forma mais lenta ou mais rápida. O fato é que surgiam músicas novas, ideias novas, jovens lideranças despontavam no cenário político e cultural, antigas concepções se desmanchavam no ar, a ciência abria caminhos decisivos e a arte desembaraçava horizontes.

 Embora as ameaças de retrocesso não desapareçam por completo, o processo histórico empurra as sociedades rumo ao futuro. E isso não costuma acontecer sem conflitos. Velho e novo se chocam mais cedo ou mais tarde. Daqueles tempos adolescentes, restou um aprendizado: o mundo muda, é inevitável, e vai continuar mudando.


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terça-feira, 7 de junho de 2022

Presta atenção!

 Renato Muniz B. Carvalho

Tem uma coisa complicada no mundo: prestar atenção. A minha vida inteira tentaram me ensinar a prestar atenção: no quadro, ao atravessar a rua, na carteira que sempre levo no bolso de trás, no ponto certo para descer do ônibus, nas entrelinhas do discurso político, na pessoa sentada na cadeira ao lado e na estrada afora. Presta atenção! Atenção às coisas do mundo, aos sinais do clima, às nuvens, à chuva, aos indícios de que os ventos podem mudar de direção, aos acenos dos amigos, aos olhares enigmáticos.

 Difícil é perceber os detalhes e desvendar seus significados. Eu sempre fui um desatento, um distraído. Fui descuidado quando o professor de matemática tentou me explicar trigonometria, seno, cosseno e tangente. Não sei onde estava com a cabeça quando meu avô tentou me ensinar a ganhar dinheiro. Eu queria namorar, conhecer o mundo, inventar caminhos para percorrer sem preocupações, nas montanhas a escalar, nos mares em que poderia navegar, mas ele insistia em falar de juros, de ações, do mercado financeiro, de câmbio e outras tantas situações incompreensíveis para um adolescente sonhador.

 Fui um eterno desmazelado com minhas roupas, meus sapatos, e nunca aprendi a dar nó em gravata. Mas nunca fui desleixado com a dor alheia, com a revolta dos injustiçados, com as carências históricas dos desamparados. Nunca vacilei ao denunciar o desmatamento, a poluição das águas e do ar, o envenenamento dos alimentos ou a opressão contra os mais fracos.

 Nos raros momentos em que presto atenção em algo, é quando leio histórias empolgantes e me envolvo no enredo; só largo o livro quando chego ao final, mesmo que seja de madrugada. Distraído, nem reparo no amanhecer, sei que é impossível abandonar a leitura.

 Queria ter prestado mais atenção às árvores. Algumas pessoas dizem que conversam com elas, afirmam que sabem quando estão tristes. Não sou refratário às tristezas, às angústias e a outros sentimentos importantes; podem me acusar de ingenuidade, mas não de descaso. Confesso os lapsos de memória, fraqueza nos assuntos do coração, talvez, fascínio e atração exagerada pelo mundo ao meu redor. Deve ser paixão o que me faz admirar as pessoas, as árvores e os animais sem pedir explicações. Queria olhar para os troncos das árvores e encontrar os indicativos da passagem do tempo, olhar o movimento dos galhos e das folhas, o colorido das flores, suas infinitas formas, e descobrir os segredos da natureza. Queria prestar mais atenção aos pássaros, aos seus voos, à dança das abelhas, aos rastros dos animais noturnos que bebem água na beira do rio. Queria identificar as aves pelo seu canto e a intenção das pessoas pelo aperto de mão, pelo olhar, pelo beijo e pelo abraço que nos dão ou negam. E queria saber o que está pensando a menina ao meu lado quando sorri para mim.


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quarta-feira, 1 de junho de 2022

Esperar é uma arte

Renato Muniz B. Carvalho

             As pessoas se dividem entre as que sabem esperar e as que não sabem. Esperar é uma arte, não importa o quanto se vai esperar, não é para qualquer um. Tem gente que escuta: “me espera que eu já volto”, mas a pessoa nunca mais retorna. É a tal história, um minutinho se transforma numa eternidade. Esperar ou não, deixar esperando ou não, é de cada um, é prova de resistência ou demonstração de impaciência.

 Dom Sebastião, por exemplo, rei de Portugal entre 1568 e 1578, fiel defensor da religião e das soluções militares, foi ao Marrocos lutar uma guerra e nunca mais voltou. Muitos portugueses esperaram a vida inteira pelo retorno do monarca. Os historiadores afirmam que ele morreu na batalha de Alcácer-Quibir, em 1578. Quem disse que o povo acreditou? Virou lenda o pobre Dom Sebastião. Seu desaparecimento levou Portugal à formação da União Ibérica com a Espanha, o que significou a perda da independência portuguesa.

 Acredite quem quiser, mas no Brasil também teve quem ficou esperando o rei português retornar para ajudar na luta contra o “ateísmo reinante”. Foi no século XIX, no sertão da Bahia, durante a Guerra de Canudos. Fato semelhante também teria acontecido durante a Guerra do Contestado (1912 e 1916), mas pode ter sido intriga dos opositores. Bem, para não ser parcial, sempre aparece alguém clamando por mitos, até nos dias atuais. Será que esperar demais provoca algum tipo de trauma?

 Tempos de espera são desiguais de pessoa para pessoa. É como se cada uma tivesse seu próprio relógio biológico — melhor dizendo: seu despertador biológico, onde o que conta é a capacidade de esperar. Uns adiantam, outros atrasam, e não tem a “hora oficial”. Algumas pessoas esperam a vida inteira, como os portugueses que esperaram por Dom Sebastião, e tem quem não consegue esperar o sinal abrir e já acelera, provocando acidentes, colocando a vida dos demais em risco.

 A espera, e a sua negação, têm consequências diversas para a vida humana e o planeta. O apressadinho não consegue esperar uma árvore crescer e, talvez, por isso mesmo nunca se preocupa com o plantio ou o reflorestamento, além de ignorar o esforço de quem planta. Falta-lhe compreensão do processo biológico, da germinação da semente, da brotação, do crescimento, da fotossíntese. Outros não se importam com o desenvolvimento das crianças, desde seu nascimento, seu crescimento e sua felicidade. São os que negam seus direitos, impedem o exercício de sua autonomia, recusam-lhes educação de qualidade, saúde, segurança e carinho.

 É necessário saber esperar, mas, igualmente, é preciso agir para mudar o rumo das coisas. Não se deve esperar um déspota cair de podre, mas acelerar sua queda, não se pode esperar sentado que uma injustiça seja reparada, mas lutar contra as arbitrariedades. É preciso plantar árvores, viajar, amar… Está esperando o quê?


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terça-feira, 24 de maio de 2022

O sapato abandonado

Renato Muniz B. Carvalho

Dia desses, ao passar por uma rua da cidade, vi um sapato abandonado. Acreditem: a imagem era desoladora. O sapato, um único pé, estava virado de lado, sujo, desgastado pelo uso e sem o salto. Era um sapato feminino, com detalhes dourados, tamanho 34 ou 36, não dava para saber ao certo.

 Diminuí o passo, olhei para os lados, observei os arredores e não obtive resposta para algo que me incomodou: onde estará o outro pé? Para muita gente, esta pode ser uma dúvida frívola, mas eu queria saber. Devia existir outro pé ou, no mínimo, um salto descolado, estropiado. Em algum lugar estava um sapato perdido, esquecido do mundo e das atenções do público. Não podia estar longe. Ninguém anda com um pé calçado e outro descalço, não em sã consciência. Já vi pessoas com meias trocadas, com cadarços desamarrados, com chinelos de dedo diferentes, mas faltando um pé não. Deve ser muito incômodo andar assim, manquitolando, melhor andar descalço, levar nas mãos os sapatos avariados ou abandoná-los juntos. Qual é o sentido de salvar um pé e deixar o outro? Alguém sem uma perna? Sem um pé? Fui investigar o assunto.

 Como as lojas ainda não vendem sapatos separados, apenas o par, achei que ali tinha um enigma, uma história triste. Quando o sapato foi abandonado? De madrugada? Era um sapato de festa? De trabalho? De uma secretária, de uma travesti, de uma noiva, de uma turista que se perdeu? Da Cinderela? Tantas dúvidas! Pode ser que um cachorro tenha carregado. Terá sido briga de casal e o pé ausente foi levado como álibi ou suvenir? Terá sido um acidente automobilístico, um atropelamento, a vítima conduzida na ambulância deixou o pé para trás? Que azar! 

Não sei, prefiro não ser trágico nem pessimista, mas pensar positivamente. Por que não podemos abandonar um sapato no meio da rua? Alguma lei proíbe? Claro, tem a questão da poluição, da sujeira acumulada nos logradouros públicos. Se não há leis que impedem sapatos de serem largados ao léu em vias públicas, melhor descartá-los nas lixeiras, melhor do que um simples abandono, uma desistência.

 E alguém desiste de um único pé? Seria como pensar com apenas um lado do cérebro, se é que isso já não foi constatado pelos neurocientistas. Mastigar só com um lado da boca, abandonar metade do país à própria sorte, achar que só uma margem do rio vai ser afetada pela descarga de produtos tóxicos, coisas assim.

 Aquilo não me saiu da cabeça enquanto não entendi que as pessoas se deixam perder, por inteiro ou em partes: a dignidade, o raciocínio, o amor, a capacidade de compreender a vida e o mundo. Queria ter encontrado o pé que faltava. Significaria o fim do mistério, seria mais fácil continuar minha jornada, mas a realidade é mais complexa.


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quarta-feira, 11 de maio de 2022

A vida por um fio

Renato Muniz B. Carvalho

Para alguém, como eu, que passou parte da infância sem ter telefone em casa, me espanta o desespero dos que, súbito, constatam a ausência de sinal de celular. A cara de susto e a angústia da pessoa “descelularizada” são dignas de pesquisa antropológica — e de pena. Para os mais agitados, é como perder uma perna, um braço, a cabeça. O que pensar disso?

Não é difícil, hoje, constatar que certos indivíduos vivem em função do celular e das redes sociais. Sua existência está atrelada a isso, caso contrário, desaparecem, socialmente falando. O celular virou personagem, virou ícone, virou mercadoria com notória elegância e apelo sensual. Mas o problema, para os obcecados, é que celulares são efêmeros, duram pouco, logo ficam desatualizados. Pobres aparelhos ultrapassados! Quando atingem o limite da validade, perdem o requinte, o poder e a modernidade. Os sedutores pedacinhos de metal, que até pareciam inteligentes, viram pó, vão para a reciclagem ou ficam esquecidos eternamente no fundo de uma gaveta. Quem diria! A solução é correr para comprar outro.

Desde quando nos tornamos “celular dependentes”? Ontem? Décadas atrás? Falando nisso, qual a “idade” das redes sociais? Uma busca rápida na internet nos informa que a mais conhecida delas surgiu nos anos 2000. Acabou se tornando popular, capaz de enviar mensagens com eficiência, incluindo textos, áudios e vídeos, além das figurinhas. Um caso de sucesso. Eu acho cedo para respostas definitivas. Uma finada rede social, que balançou o coração da moçada no início do século XXI, durou dez anos e desapareceu, alguém se lembra? Quantas mais surgirão e desaparecerão num piscar de tela? Fazem parte do novo mundo, em constante transformação, ao qual estão atentos políticos e empresários tentando aumentar seus lucros e dividendos.

A popularidade dos celulares e das redes sociais não se sustentaria sem os grupos, sem a ligação umbilical que se forma entre “amigos”, “seguidores” e “seguidos”. Grupos são formados a toda hora, existem em função de conveniências diversas: discutir e fazer política, debater arte e literatura, receber orientações de saúde, aleitamento materno etc., etc. Existem grupos de empresas, de órgãos públicos, de associações, de indivíduos que se juntam a partir de sabe-se lá o quê. Quem forma os grupos? Qual a duração de um grupo? Desconheço pesquisas sobre o assunto. As redes sociais ainda são muito recentes, mal ultrapassaram o limite de duas ou três décadas.

 Os grupos nas redes sociais substituirão a imprensa? Como ficarão a comunicação humana e a necessidade de informação confiável nesse contexto? O impacto da internet para a imprensa tradicional merece reflexões mais consistentes, ainda bem que tem gente séria comprometida com os fatos e sua interpretação. Penso que a nossa obrigação é lutar pela democratização da informação, senão a própria vida fica por um fio, o da navalha.


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terça-feira, 3 de maio de 2022

O que estamos perdendo

Renato Muniz B. Carvalho

 A menina — cerca de oito anos, pés descalços, blusa de bolinhas — catava pedrinhas coloridas e colocava numa latinha. Analisava cuidadosamente cada uma, descartava a maioria, guardava as que ela julgava mais bonitas, mais atraentes. Outras crianças brincavam no terreno baldio, corriam atrás de uma bola na área de terra solta, levantando poeira. Um dia, o terreno teve cerca, teve muro, restaram os testemunhos dos limites estabelecidos, dos indicadores de propriedade particular, do “não entre”, do “proibido jogar lixo” — avisos inúteis.

 Como que isolada do mundo, ela andava distraída, olhos perdidos no horizonte. Silenciosa, vez ou outra se abaixava para avaliar uma pedrinha. Quando encontrava uma de seu interesse, esfregava na roupa para limpar, lustrar, ressaltar o brilho. O destino da pedrinha estava em suas mãos: guardava na latinha ou descartava.

 As crianças deveriam estar na escola, abrigadas, protegidas, brincando em local seguro. No mínimo, deveriam estar num parque ou numa praça, com quadras, equipamentos adequados, árvores, flores e gramados. O discurso cínico grita pelos quatro cantos que a educação das crianças é o mais importante, mas não há espaços de liberdade e de aprendizagem, apoio pedagógico, possibilidades de encontros com a arte, com a literatura e a diversidade cultural. O discurso hipócrita é autoritário e excludente.

 A realidade denuncia o descaso: não há livros suficientes para todas as crianças, não há políticas de estímulo à leitura, não há verbas para aquisição de bibliografia e reforma ou construção de bibliotecas. Não há políticas públicas de incentivo à carreira docente. Predominam retrocessos e desvalorização da educação democrática e libertadora. Faltam verbas para a pesquisa. Não há políticas efetivas de combate ao racismo, ao machismo e à cultura da violência. “Armai-vos uns aos outros” virou o novo mandamento. Dissimulações, falsidades e interesses escusos caracterizam as práticas vigentes.

 As crianças não estão bem alimentadas, a água não é de boa qualidade, contaminada por venenos e metais pesados. Aceitam-se alimentos ultraprocessados na merenda e não há preocupação com a presença de agrotóxicos, aliás, “agrotóxico” virou palavra proibida, o termo a ser usado é “produto fitossanitário” ou “defensivo” — mas deveria ser considerado o que realmente é: veneno. O lixo acumula-se nas beiradas, em sacolas rasgadas, remexidas, garimpadas por persistentes recolhedoras e recolhedores de material reciclável. Restos de uma sociedade que não sabe o que fazer com os resíduos, com sobras reaproveitáveis, que são levados para deposição em aterros e remunerados por quantidade, ou seja, “quanto mais lixo, melhor”.

 A menina encheu a latinha. Pensativa, olhou o resultado do seu esforço, do tempo passado longe das demais crianças e das brincadeiras. Um adulto apareceu e gritou qualquer coisa ininteligível: hora de voltar para casa. A menina deixou cair a latinha no chão e foi embora. O presente e o futuro, deixados para trás, pouco lhe diziam respeito.


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terça-feira, 26 de abril de 2022

A solidão

 Renato Muniz B. Carvalho

         A solidão é uma coisa complicada. Para uns é uma dádiva, para outros é um flagelo. Pior é quando os dois grupos se topam. O atrito costuma ser inevitável.

Imaginem duas situações, ambas num domingo à tarde, dia ocioso, ar parado, um calor dos diabos, a chuva ameaça, mas não vem, nada para assistir na televisão, nada que justifique sair de casa ou tomar as ruas para fazer a revolução. Um daqueles dias em que temos a sensação de que não vamos fazer nada que preste. Ou melhor: não faremos nada do que é preciso fazer e muito menos o que gostaríamos de fazer. Que tristeza!

Num dia assim, o tempo não passa, a solidão se agrava e se torna um problema social. Não sei se para entendê-la é suficiente descrever o comportamento dos dois indivíduos hipotéticos que ilustram este texto. Mas vamos tentar.

Um deles está na porta de casa, de calção, camiseta, copo de cerveja numa mão e celular na outra. O sujeito parece inquieto, sem rumo, entra e sai do interior da casa, provavelmente para manter o copo sempre cheio. Talvez procure alguém, uma companhia, um cachorrinho, sabe-se lá! Não confundir com depressão, ainda que uma sensação de desamparo não esteja descartada.

Vamos às particularidades do fato: após o almoço, o sujeito acima dedicou pelo menos duas horas do seu precioso tempo para limpar o carro. Puxou a mangueira d’água para fora, municiou-se de bucha e sabão, ligou o som em alto volume e mãos à obra. Visto de longe, parecia que conversava com o carro, fazia-lhe carinho. Terminado o serviço, puxou um banquinho e por ali continuou, com o copo na mão. Até aí, temos um sujeito zeloso de seu automóvel, o que incomodava o outro era o som alto da música repetitiva: antes, durante e após a lavada. E daí se isso importunava os outros! E daí? O zeloso e solitário lavador compartilhava seu som com mais gente, talvez o bairro inteiro, o país e o mundo todo se pudesse — e se tivesse caixas de som mais potentes.

E o outro? Trata-se de um bisbilhoteiro, ou melhor, o outro era eu, querendo descansar um pouco no que me restava do domingo. Se fossem caracterizar a solidão que me assolava, poderiam dizer que eu apresentava desconexão, não conseguia articular o pensamento, construir frases inteligíveis, desenvolver alguma ideia coerente e edificante para fazer alguma coisa que prestasse. Confesso que estava confuso: quem aguenta um barulho desses? Devia chamar a polícia ou jogar pedra? Deveria lavar louça ou assistir a um filme? Dançar um tango ou um samba? Dormir nem pensar. Querem saber? Para não perder a dignidade e a decência, fui escrever uma crônica. Cá entre nós, o mundo está muito barulhento.


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sexta-feira, 22 de abril de 2022

O córrego do segredo

 Renato Muniz B. Carvalho

         Eu gosto de viajar, acho que já contei para vocês. Viajo por diversão, por necessidade, para visitar parentes, a trabalho, para estudos, por vários motivos. Vou à procura de novos ares, outros pontos de vista, de água limpa, de conhecimento, de estímulos para os olhos e para o cérebro. Já li em algum lugar que viajar faz bem à saúde, só não me perguntem a fonte. Quanto ao “fazer bem”, as viagens nos trazem alívio, amenizam as preocupações diárias, nos colocam desafios de mobilidade, de trânsito, de segurança, aguçam a curiosidade sobre paisagens, comidas, sons, cores e a interação com estranhos. Acho que só isso basta para você sair correndo e arrumar suas malas, nem que seja para ir até a cidade vizinha passar o fim de semana. Se me permite uma sugestão, coloque o item “viagem” como prioritário na sua vida.

 Dá para viajar a pé, de bicicleta, de carro, de moto, de trem, de navio, de avião etc. De carroça não recomendo, deixe o pobre do cavalo em paz! O importante é seguir em frente, mas voltar é sempre uma possibilidade e se desviar do caminho também. De preferência, vá devagar para poder apreciar o visual, conversar com as pessoas, curtir lugares diferentes.

 Eu gosto de observar o horizonte, o uso do solo, as cidades, as estradas, as árvores. Cursos d’água me chamam atenção, sejam rios, córregos, riachos, arroios ou ribeirões, todos têm sua importância. Aliás, nenhum rio nasce grande, caudaloso, em algum momento é tão somente um manancial escondido no meio da vegetação, um olho d’água na encosta do morro, daí a importância de preservarmos as nascentes e as matas. Pequenos, médios, grandes, anônimos ou famosos, todos me encantam. E os nomes? Ah, os nomes! Muitos se chamam “Córrego Fundo”, “Rio Claro”, “Rio Escuro”. Use a imaginação, observe a diversidade e o cenário que os cerca. Muitos devem ter sido nomeados devido aos animais existentes nos arredores: “Córrego da Capivara”, “Córrego da Onça”, “Rio Sucuri”, “Ribeirão da Anta”. Do jeito que as coisas andam, restaram apenas os nomes. Pobre onça, que já foi dona de um córrego e hoje é só uma placa na rodovia! Outros foram batizados para marcar fatos históricos: “Ribeirão da Conquista”, “Córrego da Batalha”, “Rio da Vitória”. Tinha um que se chamava “Rio da Dúvida”. Têm os que receberam nomes de santos: “Rio São Francisco”, quem não conhece? Vários têm nomes indígenas: “Rio Tietê”, “Ribeirão Anhumas”, “Rio Paraopeba”.

 Um dos que eu mais gosto é o “Córrego do Segredo”. Que eu saiba, existe mais de um, talvez você conheça. Que segredos se escondem nas suas águas, ou será nas suas margens? Uma história de amor? Um tesouro enterrado? Uma tragédia? Tomara que não! Lugar ideal para descansar, sossegado, bom para ouvir a água contar histórias e fazer confidências.


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quarta-feira, 13 de abril de 2022

O lugar da crônica

Renato Muniz B. Carvalho

A crônica é uma tradição brasileira. O país tem ótimos cronistas e um histórico notável em relação ao simpático texto, presente na maioria dos jornais e revistas. Digamos que elas têm um lugar cativo na literatura nacional. Sou suspeito para falar do assunto, pois, além de gostar bastante delas, me considero um aprendiz no gênero.

Um autêntico bilhete, do tipo: “Fui comprar pão e já volto” ou “Fulana ligou pra você”, cabe num mero pedaço de papel. No máximo, numa folha daqueles bloquinhos que serviam para anotar a lista de compras da minha tia: “polvilho”, açúcar”, “sabonete” etc. Ela anotava com sua letra miudinha e aguardava alguém ir ao armazém do Seu Waldemar. Depois, rasgava, o papelzinho tinha cumprido sua missão.

Jornais, livros e revistas eram mais solenes. À tarde, quando chegavam do trabalho, meus pais sentavam-se na varanda. Gostavam de ler os jornais e de comentar as notícias. Do chão, brincando com meus carrinhos numa cidade imaginária, eu, que ainda não sabia ler, observava os dois. Prestava atenção e às vezes me levantava curioso para olhar o jornal. Tentava decifrar as razões de uma risada ou de um comentário aflito. Aquilo me deixou familiarizado com os jornais antes de reconhecer as palavras e descobrir os segredos da montagem das frases.

Com o tempo, aprendi onde estavam as notícias internacionais, o espaço dedicado aos anúncios, o cantinho das palavras cruzadas, dos quadrinhos e qual era o lugar da crônica. Quando entrei na escola, eu já conhecia o mundo da escrita, dos textos jornalísticos e da literatura.

Ao me tornar um leitor mais experiente, a sensação era a mesma de entrar no armazém do Seu Waldemar e localizar a prateleira onde estava o polvilho da lista da minha tia. Cada coisa em seu lugar, até o dia em que passou um redemoinho e espalhou as páginas dos jornais, misturando a análise do futebol com o avanço das tropas inimigas, a adorável crônica do Drummond com os sonhos da mulher mais elegante do ano segundo a coluna social.

Como num pé de vento, tudo aconteceu muito rápido, inesperado. De repente, minha tia foi embora, para sempre, e ninguém mais usou o bloquinho para anotar a lista de compras. Ao voltar do trabalho, solitários, passamos antes no supermercado e compramos comida pronta. Sem muita opção, passamos a ler as notícias pelo celular, em silêncio. Na tela brilhante e sedutora, parece que os assuntos estão fora de lugar. Eu ainda não organizei meu mapa mental para encontrar todas as informações e os textos que me interessam. A sequência das páginas me parece aleatória, há uma lógica que ainda não domino. Cadê a crônica? Só ela para possibilitar meu reencontro com o mundo e comigo mesmo.


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terça-feira, 5 de abril de 2022

Arroz com feijão

 Renato Muniz B. Carvalho

         Você é daqueles que se preocupa com a origem da sua comida, com o modo de preparo e com os ingredientes? Muitas pessoas não estão nem aí para essas coisas, o que importa é comer, de preferência comida saborosa. Na fazenda do meu avô, a comida era muito óbvia, mas extremamente gostosa. O que será que eu quero dizer com “comida óbvia”? É que ela tinha por base arroz com feijão, verduras da hortinha do quintal, alguma carne e, para finalizar a refeição, queijo fresco acompanhando compotas de frutas ou doce de leite. Tudo muito simples e saudável. Somente anos depois, ao me mudar para São Paulo, conheci a comida internacional, a gastronomia como um saber aprimorado e complexo.

O que fazia a comida da minha adolescência tão apetitosa? Apesar da distância no tempo, penso em diversos fatores: a preparação, os temperos, a qualidade dos ingredientes e a fome da turma. Poucas coisas vinham de fora: sal, açúcar, macarrão, cebola, alho, canela e cravo, conforme me recordo, eram os produtos trazidos da cidade. Arroz, feijão, milho, mandioca, verduras, frutas, ovos, banha e carnes eram produzidos na fazenda. Fundamentais eram a dedicação e o carinho da minha avó paterna, a dona da cozinha, das panelas e dos temperos. Numa sociedade machista, meu avô era o dono do tempo: vinha dele a definição dos horários. Hoje, engrenagens geopolíticas mais sofisticadas decidem turnos, ingredientes e processos, de preferência com pressa — o fast food não surgiu por acaso.

Meu avô cuidava da produção, do preparo da terra, da colheita e da comercialização. Até os anos 1960, ele guardava parte das sementes para a próxima safra. Num espaço curto de tempo, tudo mudou. Para começar, a decisão de desativar o moinho, onde se processava o milho, base da alimentação de pessoas e animais. Lembro-me das duas pedras imensas, solenes e pesadas, que trituravam os grãos transformando-os em fubá, quirela etc. Eram movidas pela força da água do córrego que passava no fundo do quintal. Eram admiráveis as pedras mó e o mecanismo que as fazia girar. Eu garanto: tinha algo de mágico.

Um dia, a partir dos anos 1970, já não se guardavam mais as sementes, elas seriam compradas a cada safra. Se isso, num primeiro instante, acarretou aumento de produtividade, também representou acréscimo no consumo de adubos e venenos, aumentando a dependência da “cidade”. Minha avó não gostou da novidade, mas o que ela podia fazer? Engoliu em seco e, depois, foi ela própria engolida pelas engrenagens do sistema. Em 1970, ela e meu avô morreram num trágico acidente de automóvel. Acho que eles não calcularam a velocidade do caminhão que passou por cima dos dois. Era a vida que se acelerava, trazendo novos costumes e ritmos; a comida de comer transformava-se em comida de vender.

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terça-feira, 29 de março de 2022

A taubinha

Renato Muniz B. Carvalho

Ah, as palavras! Tão simples e tão complexas, dependendo do que fazemos com elas, de quem as utiliza. O que fazer? Endeusar, engessar, ignorar, modificar, estudar… Eu prefiro brincar, prefiro rir, sonhar, descobrir novos significados e usos. Prefiro guardá-las na algibeira, ou será no alforje, no embornal, no bolso? Quando precisar de uma, eu pego e escrevo, falo, grito, sussurro.

Será que alguém ainda sabe o que é um embornal? Melhor guardar na pochete. Pochete? Por acaso, os lexicógrafos já registraram esta palavra? Meu computador não reconhece. Se não está registrada, não pode? Mas está lá, nos dicionários: substantivo feminino, veio do francês “pochette”, perdeu um “t” e foi aportuguesada. Hoje, está nas cinturas, servindo para guardar dinheiro, documentos, bugigangas, além dos meus medos, que não os quero esparramados por aí. Alguns a consideram brega, fora de moda, mas eu gosto e sigo usando, o objeto e a palavra.

Na minha infância, eu gostava de prestar atenção nas conversas dos adultos, com o consentimento deles, é claro! Eu queria aprender muitas coisas, saber das novidades do mundo, conhecer palavras diferentes, até inventar algumas. Na fazenda do meu avô, convivíamos com uma realidade diferente daquela com a qual estávamos acostumados na cidade. Outra cultura, outros hábitos e palavras desconhecidas para mim. O que me deixava admirado eram as pronúncias, as gírias, os sons. Eu ficava curioso com os sotaques, com a articulação do texto, com a espontaneidade da fala.

Jovem inexperiente, abarrotado de ignorâncias, principiante quanto ao vocabulário e inábil com os códigos, eu enxergava erros, imperfeições, falhas. Mas o equivocado ali era eu. Mais tarde, reconheci os preconceitos e iniciei um longo caminho de superação. Quanto mais eu tentava compreender a multiplicidade da linguagem, mais eu ficava maravilhado, mais eu percebia sua riqueza. Um mundo fantástico. Depois, veio o tempo das leituras, das descobertas literárias, da fantasia e da vontade de mudar o mundo.

Tem coisas que a gente pega depressa, outras demandam mais tempo. Adolescentes são afobados, quase tudo relacionado a essa fase é urgente, é cachoeira, e não remanso. O exercício da paciência deveria fazer parte do currículo escolar. Com impaciência, passamos por cima de muita coisa, pulamos etapas, escalamos a montanha sem ter aproveitado a planície. Nesse processo, muitas palavras ficam pra trás, sentimentos são menosprezados, perdem-se conceitos, ganha a intolerância. Eu segui incorporando palavras.

Minha tristeza foi quando, um dia, encontrei uma taubinha — para quem não sabe: “tábua pequena” —, e não pude usar. De uso muito comum no meio rural e presente na música popular brasileira, uma simpatia. Mas não constava dos dicionários. Logo apareceu alguém que desaprovou, até topei com um termo incomum: metátese. Negaram, assim como hoje pretendem impedir expressões capazes de incorporar a diversidade humana, promover maior inclusão. Com autoritarismo, querem congelar algo que não se controla: a língua. Será medo do futuro?

 Referências:

Adoniram Barbosa: Saudosa Maloca (1951): “Cada táuba que caia/Doía no coração”; e Tiro ao Álvaro (1960): “De tanto leva frechada do teu olhar/Meu peito até parece sabe o quê?/Táubua de tiro ao Álvaro...” Esta música, escrita em parceria com Osvaldo Molles, foi censurada pela ditadura militar “por conter uma letra humorística com palavras propositadamente incorretas”.

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terça-feira, 15 de março de 2022

Um diálogo possível

 Renato Muniz B. Carvalho

         Quem nunca tentou conversar com um animal que atire a primeira pedra. Calma, é só uma figura de linguagem, uma expressão de origem bíblica; não sou favorável a essa prática arcaica. Sabendo que não vamos atirar pedras em ninguém, muito menos nos bichos, podemos iniciar a conversa.

Penso que, se alguém deseja cruzar as fronteiras da comunicação entre humanos e animais, uma das primeiras providências deve ser saber o nome do interlocutor, sejam papagaios, cãozinhos, bovinos, porquinhos, galinhas etc. Cavalos sempre tiveram personalidade forte. Um cavalo que me vem à memória é o famoso Rocinante, a magricela montaria de Dom Quixote, personagem do livro de Miguel de Cervantes. O cavalo do meu avô chamava-se Gavião. Qual cavalo vem à sua memória: Pégaso, Pé de Pano, Ventania? Uma vez nomeados e identificados, os bichos adquirem personalidade e espera-se deles que compreendam as ordens humanas ou, ao menos, deem algum retorno.

Na fazenda do meu avô, eu gostava de observar as várias “linguagens”. Eu gostava de ouvir o “ti ti ti”, da Dona Auxiliadora ao chamar as galinhas, o “cocho, cocho, cocho” do Bastiãozinho quando ele chamava os porcos no mangueiro. Os cachorros recebiam maior atenção e vocabulário diferenciado: “pega!”, “deita!”, “quieto!”, além de conversas mais elaboradas.

Atenção inconfundível também recebia a vacada leiteira. Elas tinham nomes e orientações específicas relacionadas a cada momento da vida: prenhez, parição, ordenha, desmama etc. Eu gostava de vê-las chegando ao curral, respondendo ao chamado: “vem, vem, vem…”.

Onomatopeias à parte, uma falsa ideia de superioridade leva muita gente boa a crer que os animais os compreendem e, portanto, os obedecem. Esperam respostas no mesmo nível de complexidade — o que para alguns humanos não é difícil —; respostas às ordens e aos comandos, na maior parte dos casos. Eis a origem de tanta incompreensão, de tantas agressões, distorções e desentendimentos. Ah, o desprezo pela comunicação! Não me refiro à correção gramatical, isso é outra coisa.

Eu presenciei, durante as férias passadas na fazenda, inúmeras tentativas frustradas de conversação. O lado mais triste disso tudo é que a aparente incapacidade animal de entender ordens era punida com pauladas, chicotadas e coisas piores. Inadmissível! Sempre existiam os mais pacientes e condescendentes — neste caso, refiro-me aos humanos, que tinham um carinho especial com as criações, e não ficavam irritados se não havia retorno. Reconheça-se, eram os que recebiam alguma resposta, os que sabiam ouvir o que tinham a dizer bezerros, cães e outros animais, fosse por vocalização, olhar ou expressão corporal. Muita gente não tem ideia da força de um olhar. Nesses momentos, é inútil ter pressa ou agir com violência, atitude comum da maioria, infelizmente. O diálogo, para humanos e animais, se há boa vontade, é possível. E imprescindível!


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quarta-feira, 9 de março de 2022

Minhas férias

 Renato Muniz B. Carvalho

 

Penso que nenhum estudante do ensino fundamental escapou do título acima nas redações obrigatórias de início do ano escolar. Provavelmente, uma boa parte das narrativas relacionava-se às férias passadas em fazendas de parentes ou amigos, sobretudo no interior, onde a ligação com o meio rural era significativa.

 Os relatos concentravam-se nos passeios a cavalo, nos banhos de cachoeira, na gostosa comida feita no fogão a lenha e nos namoros efêmeros. A memória afetiva conservou e se deixou levar, anos afora, por essas recordações. Paixões, lembranças e descobertas povoaram — e ainda povoam — os textos produzidos. Parece, entretanto, que essa referência temática vai entrando em declínio diante da urbanização acelerada da vida social e das inevitáveis transformações socioeconômicas em curso.

 Nas idas à fazenda do meu avô, me recordo da quantidade de pacotes, sacolas e objetos diversos. Era muita coisa, mesmo que fôssemos ficar apenas um final de semana. Pensando bem, com a devida distância no tempo, dava dó da minha mãe: cabia a ela separar, organizar e guardar roupas, botinas, alimentos, querosene, vela, esparadrapo etc. O volume da bagagem indicava que passaríamos, no mínimo, um mês na fazenda. Um dia, meu irmão caçula ficou para trás. Quando meus pais se lembraram, estavam quase saindo da cidade e tiveram de voltar, apavorados com o esquecimento.

 Já adolescentes, meu irmão e eu ganhamos autonomia para irmos sozinhos à fazenda. Naquele tempo, a eletricidade já tinha dado as caras. Meu avô vinha nos buscar e saíamos bem cedo, escuro ainda, curtindo o frio da madrugada na carroceria de uma velha camionete. Na tralha que levávamos não faltava pão sovado, baralho, livros, chapéu e uma muda de roupas. Certa vez, como não nos agradasse a programação das estações de rádio — e indiferentes em relação ao tamanho da bagagem —, resolvemos levar um toca-discos portátil. Queríamos escutar o Milton, o Chico, o Vandré, o Gil, o Caetano, o Bob Dylan, a Joan Baez e outros artistas de nossa preferência. À noite, na varanda, escutávamos música, conversámos e líamos bastante.

 Tenho certeza de que não incomodávamos ninguém, nem bicho nem gente. O som alcançava poucos metros, não indo além do limite tênue da luz. Penso nisso quando me deparo com recente relatório do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), que identifica alguns problemas ambientais atuais (fevereiro de 2022). Segundo o documento, a poluição sonora nas cidades é uma ameaça à saúde pública. Som alto e constante prejudica a saúde, acarretando “irritação crônica e distúrbios do sono, resultando em doenças cardíacas e distúrbios metabólicos graves, como diabetes, deficiência auditiva e saúde mental mais comprometida”.

 Tenho boas recordações daquele tempo. Certas canções entraram para a história, sem se perderem os sons suaves daquelas noites guardadas na memória. Hoje, quem não tira férias são os ruídos que nos cercam, insensatos e insanos. Um flagelo!

 

Para ter acesso ao Relatório completo, clicar aqui: https://www.unep.org/pt-br/resources/fronteiras-2022-barulho-chamas-e-descompasso


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terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Desobediência

Renato Muniz B. Carvalho

         Lá em casa, nunca fomos obedientes. O que não significa que fôssemos desobedientes, revoltados ou insurgentes. Nenhum de nós saía por aí quebrando coisas, ofendendo pessoas, pondo fogo no mundo. Às vezes, confesso, dava vontade. Tínhamos nossos instantes de rebeldia, mas nunca nos faltou civilidade nem bons modos.

Tomávamos banho todo dia; as refeições eram feitas à mesa da sala, com os mais velhos; tínhamos nossas responsabilidades em relação aos cômodos onde dormíamos e brincávamos. Os horários definidos para comer, estudar, dormir e brincar eram respeitados. Existiam normas, mas não eram impostas, eram negociadas. Não era perfeito, nem tinha a exatidão de um relógio, mas funcionava. Isso afetava os relacionamentos com as outras pessoas, pois muita gente nos tachava de, no mínimo, excêntricos, mesmo parentes próximos. Alguns nos enxergavam como um bando de bagunçados. Nunca quebrávamos as normas? Quase sempre! Ora, o que é a aprendizagem senão avançar além dos limites? Éramos uma família comum, com seus problemas, fragilidades e dificuldades, mas a maioria das questões polêmicas era resolvida na base da conversa: Posso sair hoje à noite? Que horas devo voltar? Posso dormir na casa do meu colega? Posso viajar com meu tio? Não quero ir à escola hoje. Não estou com fome. Posso ficar pelado no meio da casa? Tentativas, experimentos e verificação dos limites eram relevantes. Em outras palavras: aprendizagem para a vida, com seus inevitáveis erros e acertos. Não foi fácil! As imposições da época exigiam: “regras existem e não devem ser quebradas”. O comportamento padrão e patriarcal reforçou, em muitas pessoas, atitudes amarguradas, desconfiadas, acanhadas, conservadoras. É triste constatar isso.

Passar as férias na fazenda do meu avô ampliava a sensação de liberdade. Tínhamos espaço à disposição, contato com árvores, animais, rios, cachoeiras e pessoas diferentes, que ali trabalhavam ou que por ali passavam. A orientação era respeitar e entender as diferenças. Não maltratar o cavalo que nos carregava nos passeios, não estragar troncos nem quebrar os galhos das árvores, não causar danos às plantações, seja na hortinha de couve ou nas extensas lavouras de milho e arroz, e jamais discriminar, humilhar ou debochar das pessoas.

Éramos livres e abertos para indagações e questionamentos diversos. Sabíamos que não viriam safanões ou cara feia por desejar saber como funcionava o mundo, embora soubéssemos que certas perguntas eram inconvenientes para uns, enquanto outras eram restritas ao mundo adulto. Meus pais rebolavam para se desviar das armadilhas pedagógicas quando o assunto era controverso. Política, sexo e religião eram os assuntos mais delicados, mas nunca escamoteados.

De modo geral, salvou-se uma melhor compreensão do mundo e de suas contradições. O melhor de tudo: uma educação não repressora apresenta melhores resultados, mas muita gente não compreende e não está disposta a abrir mão de seu micropoder. É pena!


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terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Viva o progresso!

 Renato Muniz B. Carvalho

         Tudo aconteceu tão rápido que parece nem ter acontecido. Começou com os automóveis ocupando as ruas, as avenidas e as rodovias. Exigentes, eles foram chegando, jogando charme, seduzindo a maioria com promessas de liberdade, aventura, emoções fortes e autonomia. Quem não queria?

    Os deslocamentos sempre representaram um quebra-cabeça para a espécie humana. Apesar disso, correr atrás das grandes manadas, realizar travessias marítimas intermináveis, enfrentar filas de restaurante no fim de semana tem algo de épico. Ah, como é bom poder ir aonde queremos, cruzar fronteiras e atravessar desertos! Durante muito tempo, para realizar essas façanhas só dependíamos de combustível barato, malha rodoviária razoável e uma boa rede de assistência mecânica. O sonho se tornou realidade, pelo menos para alguns. Os outros continuaram dependendo de ônibus ou trens lotados.

    Logo que surgiram, os automóveis tornaram-se merecedores de regalias, dentre elas cômodos exclusivos, também chamados de garagem, vaga ou estacionamento. Prédios antigos e construções históricas foram derrubados para dar lugar aos carros, áreas verdes ficaram cada vez mais escassas. Aos espaços específicos e delimitados seguiram-se regras gerais de circulação, controle de velocidade, sinais, semáforos, linhas, signos, placas etc. Uma complexidade de dar inveja aos burocratas. Até gatos e cachorros respeitam o trânsito: já viram cachorros atravessando uma rua movimentada? A atenção com que atravessam é impressionante, alguns inclusive usam as faixas de pedestre, comportamento que muitos humanos têm dificuldade de executar.

    Com o passar do tempo, os automóveis se tornaram cada vez mais inteligentes. Dos modelos que estacionavam sozinhos aos que ganharam plena autonomia, foi um passo ou, melhor dizendo, uma volta do pneu. Não sei bem quando foi, mas, um dia, um dos mais tecnológicos veículos da nova safra, totalmente informatizado, desses que circulam sem motorista, virou-se para seu proprietário e se ofereceu para ir à farmácia comprar um analgésico: “Pode deixar que eu vou, continue assistindo à TV, não saia daí”.

    Pronto! Nunca mais a história foi a mesma, desde o tempo em que os beduínos atravessavam o deserto em camelos. Os carros dominaram o mundo. Tentativas de controle foram inúteis: radares, legislação restritiva, pedágios, buracos na pista, falta de vagas e preços dos combustíveis nas alturas não impediram o aumento da frota. A forte e desigual relação de dependência se consolidou — a favor dos automóveis! Até o dia em que os carros cercaram as portas das residências, bloquearam as vias de circulação e grandes congestionamentos se formaram. Foi o caos! A partir daí, os humanos passaram a trabalhar para os carros: encher o tanque, deixá-los limpos e brilhantes, econômicos, ergonômicos, confortáveis…

    Hoje, nós entramos nos carros sem saber aonde vamos, por que, quando e se chegaremos. Eles, os veículos, dizem que tudo se fez e se faz em nome do progresso, da riqueza da nação. Então tá!


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quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

Mudança de paradigma

 Renato Muniz B. Carvalho

         A primeira vez que um veterinário apareceu na fazenda do meu avô foi um reboliço. Para começar, a dificuldade em pronunciar a palavra “veterinário” e, mais ainda, entender o que isso significava. No fim, virou “o doutor de bicho” e ficou por isso mesmo. O sofisticado homem era olhado com desconfiança. Tinha gente que no dia marcado para a visita do ilustre doutor desaparecia nas baixadas, outros vestiam as melhores roupas. A meninada subia nas tábuas do curral só para observar de longe os vidros, as seringas e admirar o jeitão do especialista em saúde animal. Eu mesmo quis saber do meu avô se aquela presença era de fato necessária e ele confirmou, dizendo que era preciso melhorar o rebanho e garantir melhores condições de trabalho para todos os envolvidos na lida diária da fazenda.

Melhoria da produtividade, sanidade do rebanho e adequação da atividade às novas regras, que mais cedo ou mais tarde viriam, eram imprescindíveis, segundo meu avô. Vacinas, antibióticos, controle de parasitas, métodos de manejo racionais eram tendências que não podiam ser ignoradas. Mas o choque cultural inicial foi grande, eu me lembro.

As práticas tradicionais começavam na hora do nascimento da bezerrada. Após o parto, no piquete, mãe e filho eram conduzidos ao curral. Se a vaca era brava ou novilha de primeira parição, vinha debaixo de muita pancadaria; dizia-se que ela tinha ciúmes da cria. Uma vez apartados, o pobre filhote era jogado no chão e recebia uma boa quantidade de desinfetante no umbigo. Em seguida, era levado para um lugar onde já estavam os outros bezerros, que só voltavam a ter contato com a mãe na manhã do dia seguinte. O colostro era destinado à porcada. Dias depois, a língua era raspada a canivete para eliminar uma enfermidade denominada “sapinho”. Os animais acometidos por ela não conseguiam mamar, aparentavam fraqueza, levando muitos à morte. Se acaso surgisse uma bicheira, o animal era derrubado e tratado onde estivesse, geralmente retirando os parasitas com o canivete de sempre e enchendo o buraco, a ferida, com tecido velho e, não raro, esterco seco. É claro que o Dr. Veterinário condenava essas práticas e apresentava outras soluções. Incomodava-me observar que, às vezes, bastava ele virar as costas para tudo voltar a ser como antes.

Lembranças boas eu tenho dos dias de vacinação do rebanho. Meu avô gostava de começar cedo, zeloso da caixa de isopor cheia de frascos e gelo. Todo o gado passava no curral, oportunidade para conferências e apartações. A vacinação passou a ser obrigatória, mas o que deixava meu avô atônito era saber que alguns fazendeiros recusavam-se a vacinar. Isso foi nos anos 1960 e 1970. Hoje, imagino, todos compreendem a importância das vacinas e da ciência, afinal, o mundo mudou. Ou não?


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