sábado, 15 de agosto de 2020

As perguntas certas

 

 

As perguntas certas

 Renato Muniz B. Carvalho

 Os seres humanos gostam de fazer perguntas. Desde perguntas simples como “o que tem para o almoço hoje?” até as famosas: “de onde viemos, para onde vamos, quem somos?”. O ser humano é curioso por princípio. Uns são mais, outros menos, mas a evolução dependeu em grande parte das perguntas feitas e das respostas encontradas. Claro que só isso não bastou, foi preciso colocar a mão na massa, tomar atitudes, pôr o pé na estrada e seguir em frente.

 No campo das perguntas, em busca de alguma classificação, existem as que se podem chamar de perguntas inteligentes, as ingênuas, as capciosas, as incômodas, as indecentes — eu adoro essas! —, as indelicadas e por aí afora. Quando eu era criança e começava a perguntar coisas indiscretas para uma tia ela me olhava brava e dizia que não queria saber de “espicula de rodinha.” Não sabia o significado da expressão, sabia que estava bisbilhotando onde não devia e desviava o assunto. Mais tarde, daria um jeito de descobrir o que era isso. Meninos e meninas são perguntadores por essência. Não se pode ter medo de perguntar, afinal, perguntar não ofende, não é? Já ouvi muita gente boa dizer que mais importante do que ter respostas é preciso saber fazer as perguntas certas. Acho que muitos de vocês também já ouviram isso. Não ouviram? Sem medo de fazer perguntas, então!

Existem perguntas recorrentes, isto é, nunca vão embora: “quer se casar comigo?”, “onde você está?”, “isso são horas?”, “quem foi que quebrou isso?”, “onde deixei as chaves?”, entre outras. Algumas são difíceis de responder, chega a ser constrangedor.

Adolescentes têm uma brincadeira formidável para seu crescimento emocional. Trata-se de uma relação de perguntas capazes de indicar o caráter, as preocupações e até o futuro de quem responde, mas que, principalmente, expõem sentimentos e interesses. Tipo assim: “qual é seu signo?”, “o que te deixa com raiva?”, “qual a sua maior qualidade e o seu pior defeito?”, “qual é seu esporte favorito?”, “qual é seu filme predileto?”, “o que você mais gosta de comer?”, “quem você levaria para uma ilha deserta?” e, a principal delas: “de quem você gosta?”. Ah, essa é irresistível! Não vale deixar de responder. As perguntas e a brincadeira revelam leituras de mundo e fazem parte do amadurecimento pessoal. Você já brincou disso?

Algumas relações incluem esta: “qual livro marcou sua vida?” Já vi muita gente pular a pergunta. Simplesmente porque não leu, não se lembrou do que leu, não soube responder. Para mim, é uma das perguntas mais reveladoras, desde que bem interpretada, tanto é que os adultos continuam fazendo a pergunta ao longo da vida. Você já pensou nisso? Já te fizeram essa pergunta? Você respondeu ou pulou? Não vamos deixar para mais tarde, diga logo: qual livro marcou sua vida?

terça-feira, 11 de agosto de 2020

Fluxos e refluxos

 

 

Fluxos e refluxos

 Renato Muniz B. Carvalho

     Alguns poucos talvez ainda se lembrem, mas a maioria só de ouvir contar ou nem isso. Refiro-me à maneira como o leite era distribuído há cinquenta anos: de carroça, de porta em porta. Na minha memória, a carroça descia a rua e logo a freguesia sabia que o leite estava chegando. Era transportado a granel, num tanque de metal, com torneirinha. O carroceiro vestia avental branco, todo solene e prestativo. Quando estava nas redondezas de casa, minha mãe saía com os frascos de vidro de um litro, colocava debaixo da torneira e esperava encher. Lembro-me que sempre existia a preocupação em deixar os frascos limpos, à espera do dia seguinte.

     Um dia, provavelmente no final dos anos 1960, o leite passou a ser vendido em armazéns, em padarias, e as carroças foram aposentadas. Por um tempo, os recipientes continuaram a ser de vidro, que deviam ser reaproveitados, depois vieram os saquinhos plásticos e, hoje, as embalagens do tipo longa vida. O “leite de saquinho” resistiu, imbatível, mas já está dando sinais de decadência. Dizem que, no interiorzão, ainda se vende leite direto do latão, de porta em porta. As normas sanitárias não recomendam, mas…

     O fornecimento de leite ao consumidor, e o de outros produtos também, mudou muito nesse período. Palavras como “logística”, “varejo”, “atacado”, “engenharia de distribuição” etc. não são apenas moda passageira. Vivemos o reino do consumo, do descartável, tudo se transforma em mercadoria, tudo deve ser colocado à disposição do público no menor tempo possível, gerando, inclusive, muitos resíduos. Os fluxos se intensificaram com reflexos na quantidade e na qualidade das mercadorias. Do leite ao lixo, percebe-se a preocupação de serem atendidas as expectativas do consumidor, assim como a rápida eliminação da “sujeira”, do esgoto doméstico à casca da banana.

     A globalização, a difusão da informática e as facilidades da comunicação trouxeram alterações profundas na convivência social e nos padrões de consumo. As cidades se modernizaram e intensificaram-se as conexões, mas falta diálogo entre os atores sociais, falta estímulo à participação política e maior compromisso com a saúde da população. Um grave risco é a terceirização das decisões, como se disséssemos: “você decide por mim e nem quero saber o que foi decidido!” É isso que queremos?

     Fico pensando na reação da minha mãe se descobrisse que o leite estava contaminado. Daria uma vassourada no carroceiro? Puxaria a orelha dele? Ora, foi para melhorar a qualidade que o leite deixou de ser distribuído daquela maneira. Hoje, mecanismos de controle, acesso à informação e pesquisa científica garantem melhor qualidade dos alimentos, mesmo diante de complexas redes de produção e distribuição. Descuidar de questões como alimentação segura, democratização do consumo e saúde universal é abrir mão de conquistas históricas; significa voltar a um passado bem anterior ao tempo das carroças de leite!

 

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Educação em tempos de pandemia

Educação em tempos de pandemia

A pandemia do novo coronavírus nos revelou – ou confirmou – o despreparo da sociedade e de muitas autoridades em quase todas as esferas, embora mais nuns países do que em outros, a respeito de aspectos importantes da educação atual. A sociedade brasileira poderia estar preparada, avisos não faltaram, mas muitos não acreditaram, não levaram a sério. Claro que não se sabia exatamente como e quando viria um “desastre” (como tantos!), mas as pesquisas, tanto na área de saúde quanto na área ambiental, de certa forma indicavam graves problemas que iam estourar a qualquer momento. A tragédia atual explodiu no final de 2019 e início de 2020 na forma da Covid-19. Se não forem modificadas as causas que conduziram à pandemia e potencializaram os danos, outras situações semelhantes ou piores surgirão no futuro – se houver futuro para muitos!

No caso das escolas, como instituições sociais, elas estavam despreparadas, assim como a sociedade, para a pandemia. Este despreparo não é fruto de uma questão específica; o despreparo é estrutural. A escola, de modo geral, vive uma séria crise, sofre ataques e carece de verbas. As deficiências se manifestam na infraestrutura, na desvalorização dos docentes, e isso ocorre tanto na escola pública quanto na escola privada, embora com impactos diferenciados. Para piorar, as ferramentas dos professores vinham sendo paulatinamente retiradas de seu controle ao longo do tempo. Isso significa a diminuição de sua autonomia, o empobrecimento do debate e o aumento das dificuldades para evolução profissional na docência, além da questão salarial.

Quanto à questão da tecnologia, há um debate em curso, que já dura um tempo, porém não incluía todos. A questão é complexa, não se resume a “aulas virtuais”, a “home office” e a ensino a distância. Isso é apenas um pedacinho do problema. As fragilidades envolvem a desigualdade de acesso à Internet e a outras ferramentas por parte da comunidade escolar. A sociedade brasileira perdeu uma boa oportunidade de discutir melhor e de efetivar a democratização da internet, o acesso livre e universal. Sem tocar nos aspectos pedagógicos e políticos da questão, uma coisa é acessar aulas e conteúdos colocados à disposição de estudantes e professores em computadores, notebooks etc. em redes domésticas de alto desempenho. Outra coisa é acessar usando aparelhos celulares básicos, com poucos recursos, através de redes ruins em termos de transmissão de dados e velocidade, entre outros obstáculos técnicos e sociais. De pouco adiantam aparelhos celulares e notebooks, ainda que ultrapassados, sem o sinal da internet.

Existem desdobramentos a serem considerados: os professores usam seus computadores pessoais e pagam com seus próprios recursos pelo uso da Internet, não existem mecanismos para garantir que seja respeitado o tempo destinado ao processo etc. O que acabou acontecendo: acentuou-se a desigualdade social e tecnológica, o tempo dos professores extrapolou suas condições de trabalho, extrapolou sua formação, acentuou a exploração do trabalho docente etc. Tenho ouvido inúmeras queixas de professores estressados, cansados, desmotivados por causa das aulas virtuais. Portanto, o despreparo (das escolas, dos governos, da sociedade) existia, vinha de longa data e piorou com a pandemia.

Com raríssimas exceções, professores, em todas as circunstâncias, nunca estiveram numa “zona de conforto”. Os “verdadeiros” docentes, os que são, acima de tudo, educadores, nunca se limitaram à reprodução de conteúdo. O que sempre esteve em jogo, em risco e sob ataque foi o pensamento crítico. Uma parcela da sociedade, ainda que pequena, “morre de medo” do pensamento crítico e tentam de todas as maneiras o cerceamento da atuação autônoma dos professores e professoras, em todos os níveis de ensino.

Quanto à questão das dificuldades no uso de novas tecnologias, constata-se a falta de diálogo com a comunidade (docentes, estudantes, pais, gestores, auxiliares de modo geral), a falta de investimentos (infraestrutura em geral, equipamentos, redes suficientes e eficazes, locais adequados etc.) e a ausência de políticas públicas para a modernização, que já estava atrasada. É injusto responsabilizar o corpo docente por essas deficiências e ausências.

O que será da escola no futuro? Penso que a escola do futuro deve investir mais na felicidade e no bem-estar dos estudantes, no aperfeiçoamento do processo ensino-aprendizagem como algo dinâmico e contemporâneo e na oferta de boas condições de trabalho para os professores. A escola deveria ser um espaço público aberto e acolhedor, um espaço que tenha uma boa biblioteca física e outros equipamentos que permitam a convivência, uma escola comprometida com a comunidade. A escola deve se preocupar com a vida em toda sua plenitude, e não com “caixinhas” isoladas umas das outras, como alguns costumam pensar as disciplinas, o espaço escolar, a organização pedagógica etc. Se fizer isso, vai conseguir superar o trauma da Covid-19. Não existem respostas prontas e fáceis, mas o caminho passa pelo diálogo com a comunidade.

Nesses tempos de muitas incertezas, muita gente tem se questionado sobre os livros físicos, indagam se eles serão substituídos por e-books. Ora, a publicação de e-books deve aumentar, é natural e já vinha acontecendo, embora de forma lenta. Deve se acelerar. Mas não creio que os livros físicos vão desaparecer. É o mesmo que afirmar que a televisão vai levar ao desaparecimento do teatro e do cinema, que a fotografia vai acabar com a pintura e com os quadros, que os aparelhos de som e os aplicativos de músicas vão acabar com os instrumentos musicais e com as apresentações de artistas em shows e concertos ou que as relações virtuais vão substituir as relações físicas. Basta observar, durante a pandemia, com as restrições que foram estabelecidas em termos de distanciamento social, como as pessoas ficaram aflitas por contato presencial, por festas, bares, por encontros familiares etc. Os livros em plataformas digitais serão uma opção, entre outras.

Alguns insistem: e o futuro? As aulas continuarão sendo virtuais? Penso que, até termos maior segurança quanto às formas de contágio, até as vacinas estarem disponíveis, entre outras variáveis, será difícil que as aulas voltem ao “normal”. As aulas virtuais não são um “normal”. Segundo informações divulgadas na imprensa, essas aulas (o aprendizado) não estão acessíveis a toda a comunidade. Este é apenas um primeiro ponto. Boas práticas, boas iniciativas foram feitas, mas não resolvem o “problema da aprendizagem” e das aulas, da educação. Do jeito que está colocado, as aulas virtuais não atendem aos objetivos educacionais, porque educação não é só disponibilizar conteúdo para os estudantes. Para voltar a “algum normal”, é preciso ter maiores cuidados com o espaço físico das escolas (desinfecção, limpeza, salas arejadas, pessoal preparado para novas regras de limpeza etc.), acompanhamento mais próximo e constante dos estudantes no seu cotidiano escolar e familiar. Além disso, é preciso inserir a família de forma ativa no controle da doença, é preciso estabelecer conexões estreitas com o pessoal da saúde, acompanhar e verificar casos de contaminação na família etc. Isso exige uma mudança de concepção, de postura, é preciso mudar o entendimento e, da consideração isolada das questões, caminhar para uma visão global e integrada.

Como vai ficar o aprendizado das crianças? Crianças sempre aprendem, de uma forma ou de outra. O aprendizado sempre vai estar presente, de uma forma ou de outra. Aprender, por exemplo, como trabalhar a higiene, preservar o meio ambiente, ter uma alimentação saudável etc., também faz parte do aprendizado. O que não dá pra substituir é a presença física, o olho no olho, os encontros, a comunhão, o convívio social. O aprendizado é uma prática coletiva. Ninguém aprende sozinho, a não ser uma determinada técnica ou um determinado aspecto de um problema. Estudantes e professores não são máquinas, escolas não devem ser confundidas com linha de produção, com fábricas de robozinhos. Portanto, as crianças vão aprender alguma coisa, certamente vão desenvolver algumas habilidades, mas isso não substitui o valor do aprendizado social, representado e realizado pela e na escola. A inteligência não caminha numa única direção, é preciso desenvolver o emocional, a leitura, a escrita, a diversidade, o diálogo, a afetividade, a ligação com o meio ambiente, o raciocínio lógico, a importância da democracia, diferentes visões do mundo, da realidade. Não existe aprendizado sem mundo, com toda sua complexidade.

Existe o risco das crianças desaprenderem a se relacionar com outras crianças ou jovens? Penso que esse risco existe e as consequências podem ser graves. Fazendo uma analogia, seria o mesmo que inserir as crianças no mundo adulto sem passar pela infância. Muito triste, embora alguns gestores, ao que parece, estão “pagando pra ver”. A não convivência pode dificultar o aprendizado de aspectos importantes da educação para a saúde, para a higiene e para o meio ambiente (educação ambiental), que são componentes essenciais no processo pedagógico e que devem permear toda a escola e não apenas áreas específicas. Por isso, é preciso repensar a própria escola e a educação, de forma integrada.

Concluindo, é preciso lembrar sempre: a educação não deve se restringir a ambientes fechados, a espaços delimitados de salas de aula, no sentido tradicional. A rua é uma “sala de aula”, a sombra de uma árvore é uma “sala de aula”, a quadra de esportes, a praça, o parque público etc., todos esses “lugares” são “salas de aula”. A sociedade deve aproveitar este momento para discutir o papel das aulas virtuais, o papel da educação a distância, debater a utilização correta das redes sociais, debater e cobrar dos responsáveis a democratização e o acesso à Internet. Pode ser um bom momento para refletir sobre o futuro da educação e da própria humanidade. 

E aí, mandamos as crianças para a escola? Esta não é uma pergunta simples e a resposta deve ser discutida com a comunidade, com especialistas da área de saúde, com o pessoal da área pedagógica, com o pessoal da linha de frente na escola, com a comunidade, com os agentes comunitários de saúde, com os pais e responsáveis etc. Só tenho uma certeza: não podemos comprometer o futuro!