terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Desobediência

Renato Muniz B. Carvalho

         Lá em casa, nunca fomos obedientes. O que não significa que fôssemos desobedientes, revoltados ou insurgentes. Nenhum de nós saía por aí quebrando coisas, ofendendo pessoas, pondo fogo no mundo. Às vezes, confesso, dava vontade. Tínhamos nossos instantes de rebeldia, mas nunca nos faltou civilidade nem bons modos.

Tomávamos banho todo dia; as refeições eram feitas à mesa da sala, com os mais velhos; tínhamos nossas responsabilidades em relação aos cômodos onde dormíamos e brincávamos. Os horários definidos para comer, estudar, dormir e brincar eram respeitados. Existiam normas, mas não eram impostas, eram negociadas. Não era perfeito, nem tinha a exatidão de um relógio, mas funcionava. Isso afetava os relacionamentos com as outras pessoas, pois muita gente nos tachava de, no mínimo, excêntricos, mesmo parentes próximos. Alguns nos enxergavam como um bando de bagunçados. Nunca quebrávamos as normas? Quase sempre! Ora, o que é a aprendizagem senão avançar além dos limites? Éramos uma família comum, com seus problemas, fragilidades e dificuldades, mas a maioria das questões polêmicas era resolvida na base da conversa: Posso sair hoje à noite? Que horas devo voltar? Posso dormir na casa do meu colega? Posso viajar com meu tio? Não quero ir à escola hoje. Não estou com fome. Posso ficar pelado no meio da casa? Tentativas, experimentos e verificação dos limites eram relevantes. Em outras palavras: aprendizagem para a vida, com seus inevitáveis erros e acertos. Não foi fácil! As imposições da época exigiam: “regras existem e não devem ser quebradas”. O comportamento padrão e patriarcal reforçou, em muitas pessoas, atitudes amarguradas, desconfiadas, acanhadas, conservadoras. É triste constatar isso.

Passar as férias na fazenda do meu avô ampliava a sensação de liberdade. Tínhamos espaço à disposição, contato com árvores, animais, rios, cachoeiras e pessoas diferentes, que ali trabalhavam ou que por ali passavam. A orientação era respeitar e entender as diferenças. Não maltratar o cavalo que nos carregava nos passeios, não estragar troncos nem quebrar os galhos das árvores, não causar danos às plantações, seja na hortinha de couve ou nas extensas lavouras de milho e arroz, e jamais discriminar, humilhar ou debochar das pessoas.

Éramos livres e abertos para indagações e questionamentos diversos. Sabíamos que não viriam safanões ou cara feia por desejar saber como funcionava o mundo, embora soubéssemos que certas perguntas eram inconvenientes para uns, enquanto outras eram restritas ao mundo adulto. Meus pais rebolavam para se desviar das armadilhas pedagógicas quando o assunto era controverso. Política, sexo e religião eram os assuntos mais delicados, mas nunca escamoteados.

De modo geral, salvou-se uma melhor compreensão do mundo e de suas contradições. O melhor de tudo: uma educação não repressora apresenta melhores resultados, mas muita gente não compreende e não está disposta a abrir mão de seu micropoder. É pena!


Publicada no Jornal da Manhã:      https://jmonline.com.br/novo/?paginas/articulistas,675

Revisão: ReviseReveja. Clique aqui

terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Viva o progresso!

 Renato Muniz B. Carvalho

         Tudo aconteceu tão rápido que parece nem ter acontecido. Começou com os automóveis ocupando as ruas, as avenidas e as rodovias. Exigentes, eles foram chegando, jogando charme, seduzindo a maioria com promessas de liberdade, aventura, emoções fortes e autonomia. Quem não queria?

    Os deslocamentos sempre representaram um quebra-cabeça para a espécie humana. Apesar disso, correr atrás das grandes manadas, realizar travessias marítimas intermináveis, enfrentar filas de restaurante no fim de semana tem algo de épico. Ah, como é bom poder ir aonde queremos, cruzar fronteiras e atravessar desertos! Durante muito tempo, para realizar essas façanhas só dependíamos de combustível barato, malha rodoviária razoável e uma boa rede de assistência mecânica. O sonho se tornou realidade, pelo menos para alguns. Os outros continuaram dependendo de ônibus ou trens lotados.

    Logo que surgiram, os automóveis tornaram-se merecedores de regalias, dentre elas cômodos exclusivos, também chamados de garagem, vaga ou estacionamento. Prédios antigos e construções históricas foram derrubados para dar lugar aos carros, áreas verdes ficaram cada vez mais escassas. Aos espaços específicos e delimitados seguiram-se regras gerais de circulação, controle de velocidade, sinais, semáforos, linhas, signos, placas etc. Uma complexidade de dar inveja aos burocratas. Até gatos e cachorros respeitam o trânsito: já viram cachorros atravessando uma rua movimentada? A atenção com que atravessam é impressionante, alguns inclusive usam as faixas de pedestre, comportamento que muitos humanos têm dificuldade de executar.

    Com o passar do tempo, os automóveis se tornaram cada vez mais inteligentes. Dos modelos que estacionavam sozinhos aos que ganharam plena autonomia, foi um passo ou, melhor dizendo, uma volta do pneu. Não sei bem quando foi, mas, um dia, um dos mais tecnológicos veículos da nova safra, totalmente informatizado, desses que circulam sem motorista, virou-se para seu proprietário e se ofereceu para ir à farmácia comprar um analgésico: “Pode deixar que eu vou, continue assistindo à TV, não saia daí”.

    Pronto! Nunca mais a história foi a mesma, desde o tempo em que os beduínos atravessavam o deserto em camelos. Os carros dominaram o mundo. Tentativas de controle foram inúteis: radares, legislação restritiva, pedágios, buracos na pista, falta de vagas e preços dos combustíveis nas alturas não impediram o aumento da frota. A forte e desigual relação de dependência se consolidou — a favor dos automóveis! Até o dia em que os carros cercaram as portas das residências, bloquearam as vias de circulação e grandes congestionamentos se formaram. Foi o caos! A partir daí, os humanos passaram a trabalhar para os carros: encher o tanque, deixá-los limpos e brilhantes, econômicos, ergonômicos, confortáveis…

    Hoje, nós entramos nos carros sem saber aonde vamos, por que, quando e se chegaremos. Eles, os veículos, dizem que tudo se fez e se faz em nome do progresso, da riqueza da nação. Então tá!


Publicada no Jornal da Manhã:      https://jmonline.com.br/novo/?paginas/articulistas,675

Revisão: ReviseReveja. Clique aqui

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

Mudança de paradigma

 Renato Muniz B. Carvalho

         A primeira vez que um veterinário apareceu na fazenda do meu avô foi um reboliço. Para começar, a dificuldade em pronunciar a palavra “veterinário” e, mais ainda, entender o que isso significava. No fim, virou “o doutor de bicho” e ficou por isso mesmo. O sofisticado homem era olhado com desconfiança. Tinha gente que no dia marcado para a visita do ilustre doutor desaparecia nas baixadas, outros vestiam as melhores roupas. A meninada subia nas tábuas do curral só para observar de longe os vidros, as seringas e admirar o jeitão do especialista em saúde animal. Eu mesmo quis saber do meu avô se aquela presença era de fato necessária e ele confirmou, dizendo que era preciso melhorar o rebanho e garantir melhores condições de trabalho para todos os envolvidos na lida diária da fazenda.

Melhoria da produtividade, sanidade do rebanho e adequação da atividade às novas regras, que mais cedo ou mais tarde viriam, eram imprescindíveis, segundo meu avô. Vacinas, antibióticos, controle de parasitas, métodos de manejo racionais eram tendências que não podiam ser ignoradas. Mas o choque cultural inicial foi grande, eu me lembro.

As práticas tradicionais começavam na hora do nascimento da bezerrada. Após o parto, no piquete, mãe e filho eram conduzidos ao curral. Se a vaca era brava ou novilha de primeira parição, vinha debaixo de muita pancadaria; dizia-se que ela tinha ciúmes da cria. Uma vez apartados, o pobre filhote era jogado no chão e recebia uma boa quantidade de desinfetante no umbigo. Em seguida, era levado para um lugar onde já estavam os outros bezerros, que só voltavam a ter contato com a mãe na manhã do dia seguinte. O colostro era destinado à porcada. Dias depois, a língua era raspada a canivete para eliminar uma enfermidade denominada “sapinho”. Os animais acometidos por ela não conseguiam mamar, aparentavam fraqueza, levando muitos à morte. Se acaso surgisse uma bicheira, o animal era derrubado e tratado onde estivesse, geralmente retirando os parasitas com o canivete de sempre e enchendo o buraco, a ferida, com tecido velho e, não raro, esterco seco. É claro que o Dr. Veterinário condenava essas práticas e apresentava outras soluções. Incomodava-me observar que, às vezes, bastava ele virar as costas para tudo voltar a ser como antes.

Lembranças boas eu tenho dos dias de vacinação do rebanho. Meu avô gostava de começar cedo, zeloso da caixa de isopor cheia de frascos e gelo. Todo o gado passava no curral, oportunidade para conferências e apartações. A vacinação passou a ser obrigatória, mas o que deixava meu avô atônito era saber que alguns fazendeiros recusavam-se a vacinar. Isso foi nos anos 1960 e 1970. Hoje, imagino, todos compreendem a importância das vacinas e da ciência, afinal, o mundo mudou. Ou não?


Publicada no Jornal da Manhã:      https://jmonline.com.br/novo/?paginas/articulistas,675


Publicada no Recanto das Letras: https://www.recantodasletras.com.br/escrivaninha/publicacoes/index.php


Revisão: ReviseReveja. Clique aqui

terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

Recomendações de leitura

 Crônica de Renato Muniz B. Carvalho

         Ouço com frequência uma pergunta: “quantos livros você já leu?”. Aí bate uma dúvida constrangedora: e eu lá sei? Faço as contas, mas é difícil chegar a um resultado satisfatório. Vejamos: o primeiro livro foi aos sete anos de idade; comecei devagar, um por ano, mas teve ano em que li trinta, quarenta livros ou mais. Teve ano em que fui mais lento, um por mês, talvez menos. Por quê? Não sou uma máquina de ler e nunca fiz curso de leitura dinâmica. Teve livro que li duas vezes ou mais, teve livro que parei na metade — esses contam?

Ler me ajudou muito, mas não me fez melhor nem pior do que as outras pessoas. Jamais imaginei a leitura como um indicador de inteligência ou de esperteza. Li tanto por prazer como por obrigação. Sim, como milhares de estudantes, fui obrigado a ler livros ditos “obrigatórios”, seja porque as autoridades assim estipulavam ou porque ia “cair no vestibular”, ia “cair na prova”. Quanta gente não foi atrás de resumos dos tais livros, de filmes, de peças de teatro por não gostar de ler, por estar com preguiça, não ter sido suficientemente estimulado ou não ter acesso aos livros? Que perda de tempo! Ler o livro vem antes, anos-luz antes de qualquer sucedâneo.

Outra pergunta recorrente diz respeito às recomendações de leitura: “Que livro você me indica?”. Responder é mais ou menos como sugerir um vinho, um carro ou uma viagem. Que vinho você prefere? Tinto, branco, rosé? Brasileiro, chileno, argentino, francês, português, espanhol? Carro conversível? Carro econômico? Picape? Utilitário? Qual a viagem de seus sonhos? Lua de mel em Cancun? Viagem com as amigas, com os amigos? Um cruzeiro marítimo? Uma viagem de camelo no deserto do Saara? Peregrinação pelo Caminho de Santiago de Compostela ou romaria até o Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida? Viagem ao litoral no feriadão? Tenho pena dos sommeliers e dos agentes de viagem. No caso dos livros, respondo com prazer e interesse. Pergunte! Tenho mil sugestões. Não podemos desperdiçar uma oportunidade de leitura.

Tem gosto pra tudo: romance, conto, poesia, crônica; são inúmeros os gêneros literários. Tem quem goste de romance policial, outros preferem contos de terror; não há o melhor ou o pior, a não ser o interesse ou a necessidade de quem vai ler, considerando se são livros científicos, técnicos ou de filosofia, sem esquecer os manuais de carpintaria e os livros de culinária.

Meu conselho preferido: leia! Leia no ônibus, leia no banheiro, leia antes de dormir, leia nas férias, leia junto com a sua turma. Leia e não deixe de comentar, leia e, se possível, passe adiante, divulgue. Não guarde só para você, divida com outras pessoas o prazer da leitura!


Publicada no Jornal da Manhã:      https://jmonline.com.br/novo/?paginas/articulistas,675


Publicada no Recanto das Letras: https://www.recantodasletras.com.br/escrivaninha/publicacoes/index.php


Revisão: ReviseReveja. Clique aqui