terça-feira, 26 de abril de 2022

A solidão

 Renato Muniz B. Carvalho

         A solidão é uma coisa complicada. Para uns é uma dádiva, para outros é um flagelo. Pior é quando os dois grupos se topam. O atrito costuma ser inevitável.

Imaginem duas situações, ambas num domingo à tarde, dia ocioso, ar parado, um calor dos diabos, a chuva ameaça, mas não vem, nada para assistir na televisão, nada que justifique sair de casa ou tomar as ruas para fazer a revolução. Um daqueles dias em que temos a sensação de que não vamos fazer nada que preste. Ou melhor: não faremos nada do que é preciso fazer e muito menos o que gostaríamos de fazer. Que tristeza!

Num dia assim, o tempo não passa, a solidão se agrava e se torna um problema social. Não sei se para entendê-la é suficiente descrever o comportamento dos dois indivíduos hipotéticos que ilustram este texto. Mas vamos tentar.

Um deles está na porta de casa, de calção, camiseta, copo de cerveja numa mão e celular na outra. O sujeito parece inquieto, sem rumo, entra e sai do interior da casa, provavelmente para manter o copo sempre cheio. Talvez procure alguém, uma companhia, um cachorrinho, sabe-se lá! Não confundir com depressão, ainda que uma sensação de desamparo não esteja descartada.

Vamos às particularidades do fato: após o almoço, o sujeito acima dedicou pelo menos duas horas do seu precioso tempo para limpar o carro. Puxou a mangueira d’água para fora, municiou-se de bucha e sabão, ligou o som em alto volume e mãos à obra. Visto de longe, parecia que conversava com o carro, fazia-lhe carinho. Terminado o serviço, puxou um banquinho e por ali continuou, com o copo na mão. Até aí, temos um sujeito zeloso de seu automóvel, o que incomodava o outro era o som alto da música repetitiva: antes, durante e após a lavada. E daí se isso importunava os outros! E daí? O zeloso e solitário lavador compartilhava seu som com mais gente, talvez o bairro inteiro, o país e o mundo todo se pudesse — e se tivesse caixas de som mais potentes.

E o outro? Trata-se de um bisbilhoteiro, ou melhor, o outro era eu, querendo descansar um pouco no que me restava do domingo. Se fossem caracterizar a solidão que me assolava, poderiam dizer que eu apresentava desconexão, não conseguia articular o pensamento, construir frases inteligíveis, desenvolver alguma ideia coerente e edificante para fazer alguma coisa que prestasse. Confesso que estava confuso: quem aguenta um barulho desses? Devia chamar a polícia ou jogar pedra? Deveria lavar louça ou assistir a um filme? Dançar um tango ou um samba? Dormir nem pensar. Querem saber? Para não perder a dignidade e a decência, fui escrever uma crônica. Cá entre nós, o mundo está muito barulhento.


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sexta-feira, 22 de abril de 2022

O córrego do segredo

 Renato Muniz B. Carvalho

         Eu gosto de viajar, acho que já contei para vocês. Viajo por diversão, por necessidade, para visitar parentes, a trabalho, para estudos, por vários motivos. Vou à procura de novos ares, outros pontos de vista, de água limpa, de conhecimento, de estímulos para os olhos e para o cérebro. Já li em algum lugar que viajar faz bem à saúde, só não me perguntem a fonte. Quanto ao “fazer bem”, as viagens nos trazem alívio, amenizam as preocupações diárias, nos colocam desafios de mobilidade, de trânsito, de segurança, aguçam a curiosidade sobre paisagens, comidas, sons, cores e a interação com estranhos. Acho que só isso basta para você sair correndo e arrumar suas malas, nem que seja para ir até a cidade vizinha passar o fim de semana. Se me permite uma sugestão, coloque o item “viagem” como prioritário na sua vida.

 Dá para viajar a pé, de bicicleta, de carro, de moto, de trem, de navio, de avião etc. De carroça não recomendo, deixe o pobre do cavalo em paz! O importante é seguir em frente, mas voltar é sempre uma possibilidade e se desviar do caminho também. De preferência, vá devagar para poder apreciar o visual, conversar com as pessoas, curtir lugares diferentes.

 Eu gosto de observar o horizonte, o uso do solo, as cidades, as estradas, as árvores. Cursos d’água me chamam atenção, sejam rios, córregos, riachos, arroios ou ribeirões, todos têm sua importância. Aliás, nenhum rio nasce grande, caudaloso, em algum momento é tão somente um manancial escondido no meio da vegetação, um olho d’água na encosta do morro, daí a importância de preservarmos as nascentes e as matas. Pequenos, médios, grandes, anônimos ou famosos, todos me encantam. E os nomes? Ah, os nomes! Muitos se chamam “Córrego Fundo”, “Rio Claro”, “Rio Escuro”. Use a imaginação, observe a diversidade e o cenário que os cerca. Muitos devem ter sido nomeados devido aos animais existentes nos arredores: “Córrego da Capivara”, “Córrego da Onça”, “Rio Sucuri”, “Ribeirão da Anta”. Do jeito que as coisas andam, restaram apenas os nomes. Pobre onça, que já foi dona de um córrego e hoje é só uma placa na rodovia! Outros foram batizados para marcar fatos históricos: “Ribeirão da Conquista”, “Córrego da Batalha”, “Rio da Vitória”. Tinha um que se chamava “Rio da Dúvida”. Têm os que receberam nomes de santos: “Rio São Francisco”, quem não conhece? Vários têm nomes indígenas: “Rio Tietê”, “Ribeirão Anhumas”, “Rio Paraopeba”.

 Um dos que eu mais gosto é o “Córrego do Segredo”. Que eu saiba, existe mais de um, talvez você conheça. Que segredos se escondem nas suas águas, ou será nas suas margens? Uma história de amor? Um tesouro enterrado? Uma tragédia? Tomara que não! Lugar ideal para descansar, sossegado, bom para ouvir a água contar histórias e fazer confidências.


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quarta-feira, 13 de abril de 2022

O lugar da crônica

Renato Muniz B. Carvalho

A crônica é uma tradição brasileira. O país tem ótimos cronistas e um histórico notável em relação ao simpático texto, presente na maioria dos jornais e revistas. Digamos que elas têm um lugar cativo na literatura nacional. Sou suspeito para falar do assunto, pois, além de gostar bastante delas, me considero um aprendiz no gênero.

Um autêntico bilhete, do tipo: “Fui comprar pão e já volto” ou “Fulana ligou pra você”, cabe num mero pedaço de papel. No máximo, numa folha daqueles bloquinhos que serviam para anotar a lista de compras da minha tia: “polvilho”, açúcar”, “sabonete” etc. Ela anotava com sua letra miudinha e aguardava alguém ir ao armazém do Seu Waldemar. Depois, rasgava, o papelzinho tinha cumprido sua missão.

Jornais, livros e revistas eram mais solenes. À tarde, quando chegavam do trabalho, meus pais sentavam-se na varanda. Gostavam de ler os jornais e de comentar as notícias. Do chão, brincando com meus carrinhos numa cidade imaginária, eu, que ainda não sabia ler, observava os dois. Prestava atenção e às vezes me levantava curioso para olhar o jornal. Tentava decifrar as razões de uma risada ou de um comentário aflito. Aquilo me deixou familiarizado com os jornais antes de reconhecer as palavras e descobrir os segredos da montagem das frases.

Com o tempo, aprendi onde estavam as notícias internacionais, o espaço dedicado aos anúncios, o cantinho das palavras cruzadas, dos quadrinhos e qual era o lugar da crônica. Quando entrei na escola, eu já conhecia o mundo da escrita, dos textos jornalísticos e da literatura.

Ao me tornar um leitor mais experiente, a sensação era a mesma de entrar no armazém do Seu Waldemar e localizar a prateleira onde estava o polvilho da lista da minha tia. Cada coisa em seu lugar, até o dia em que passou um redemoinho e espalhou as páginas dos jornais, misturando a análise do futebol com o avanço das tropas inimigas, a adorável crônica do Drummond com os sonhos da mulher mais elegante do ano segundo a coluna social.

Como num pé de vento, tudo aconteceu muito rápido, inesperado. De repente, minha tia foi embora, para sempre, e ninguém mais usou o bloquinho para anotar a lista de compras. Ao voltar do trabalho, solitários, passamos antes no supermercado e compramos comida pronta. Sem muita opção, passamos a ler as notícias pelo celular, em silêncio. Na tela brilhante e sedutora, parece que os assuntos estão fora de lugar. Eu ainda não organizei meu mapa mental para encontrar todas as informações e os textos que me interessam. A sequência das páginas me parece aleatória, há uma lógica que ainda não domino. Cadê a crônica? Só ela para possibilitar meu reencontro com o mundo e comigo mesmo.


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terça-feira, 5 de abril de 2022

Arroz com feijão

 Renato Muniz B. Carvalho

         Você é daqueles que se preocupa com a origem da sua comida, com o modo de preparo e com os ingredientes? Muitas pessoas não estão nem aí para essas coisas, o que importa é comer, de preferência comida saborosa. Na fazenda do meu avô, a comida era muito óbvia, mas extremamente gostosa. O que será que eu quero dizer com “comida óbvia”? É que ela tinha por base arroz com feijão, verduras da hortinha do quintal, alguma carne e, para finalizar a refeição, queijo fresco acompanhando compotas de frutas ou doce de leite. Tudo muito simples e saudável. Somente anos depois, ao me mudar para São Paulo, conheci a comida internacional, a gastronomia como um saber aprimorado e complexo.

O que fazia a comida da minha adolescência tão apetitosa? Apesar da distância no tempo, penso em diversos fatores: a preparação, os temperos, a qualidade dos ingredientes e a fome da turma. Poucas coisas vinham de fora: sal, açúcar, macarrão, cebola, alho, canela e cravo, conforme me recordo, eram os produtos trazidos da cidade. Arroz, feijão, milho, mandioca, verduras, frutas, ovos, banha e carnes eram produzidos na fazenda. Fundamentais eram a dedicação e o carinho da minha avó paterna, a dona da cozinha, das panelas e dos temperos. Numa sociedade machista, meu avô era o dono do tempo: vinha dele a definição dos horários. Hoje, engrenagens geopolíticas mais sofisticadas decidem turnos, ingredientes e processos, de preferência com pressa — o fast food não surgiu por acaso.

Meu avô cuidava da produção, do preparo da terra, da colheita e da comercialização. Até os anos 1960, ele guardava parte das sementes para a próxima safra. Num espaço curto de tempo, tudo mudou. Para começar, a decisão de desativar o moinho, onde se processava o milho, base da alimentação de pessoas e animais. Lembro-me das duas pedras imensas, solenes e pesadas, que trituravam os grãos transformando-os em fubá, quirela etc. Eram movidas pela força da água do córrego que passava no fundo do quintal. Eram admiráveis as pedras mó e o mecanismo que as fazia girar. Eu garanto: tinha algo de mágico.

Um dia, a partir dos anos 1970, já não se guardavam mais as sementes, elas seriam compradas a cada safra. Se isso, num primeiro instante, acarretou aumento de produtividade, também representou acréscimo no consumo de adubos e venenos, aumentando a dependência da “cidade”. Minha avó não gostou da novidade, mas o que ela podia fazer? Engoliu em seco e, depois, foi ela própria engolida pelas engrenagens do sistema. Em 1970, ela e meu avô morreram num trágico acidente de automóvel. Acho que eles não calcularam a velocidade do caminhão que passou por cima dos dois. Era a vida que se acelerava, trazendo novos costumes e ritmos; a comida de comer transformava-se em comida de vender.

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