terça-feira, 25 de janeiro de 2022

Trocas, afetos, correspondências

 Renato Muniz B. Carvalho

A última coisa que eu devia ter feito naquela tarde chuvosa era mexer nas caixas em que eu guardo minha correspondência pessoal. Não sei que motivos me levam a guardar esses papéis, por isso ainda não os joguei fora. Ocupam espaço, empoeiram, mas trazem boas recordações — a maioria. Cartas, cartões e diversos bilhetinhos recebidos ao longo de mais de cinquenta anos. Fiquei envolvido a tarde inteira. Querem saber? Para mim, são um tesouro.

O que essa correspondência tem de especial? Muita coisa, a começar pela caligrafia, única, de cada pessoa que enviou. Da cor da tinta à forma de desenhar as letras, tudo é maravilhoso, carregado de sentimentos, de emoção. Os envelopes, os selos, os lugares de onde foram enviadas — muitas vieram do outro lado do mundo ou de recantos espalhados por esse brasilzão — compõem uma história, revelam preocupações pessoais e coletivas de um tempo que não existe mais, trazem informações e saudades.

Cartas dos pais, dos irmãos, dos amigos e amigas, de parentes distantes, de pessoas apaixonadas, de gente que não está mais entre nós, de alunos e alunas e até daqueles de quem eu não me lembro mais, sem contar os que eu nem sei quem são: por que guardei essas se nem sei quem são os remetentes? Razões misteriosas, curiosidade — um dia eu descubro!

A chuva não parou e eu segui remexendo a correspondência guardada. Lá fora, raios e trovões, muita água escorrendo, lavando ruas e calçadas, aqui dentro, relâmpagos estouravam na minha cabeça despertando memórias. Relâmpagos que se pareciam com transmissões sinápticas ligando neurônios adormecidos em algum canto do cérebro. Dava para mapear as cidades onde meus parentes passavam as férias no século XX; as praias preferidas dos amigos nos verões mágicos dos anos 1970; as angústias dos amigos e amigas durante os anos difíceis da censura, da repressão, do silêncio, quando desconfiávamos da possibilidade de alguém violar nossas correspondências. Quantos segredos? Quantas confidências deixaram de ser ditas?

Um caso à parte é o dos cartões postais. Uma das primeiras coisas que eu fazia ao chegar numa cidade nova, de férias ou a trabalho, era logo comprar postais para enviar aos amigos, aos meus pais e aos filhos: “olha, estive aqui!”. Não importava se a fotografia era de uma pracinha da cidade do interior ou de um monumento magnífico numa capital, era fundamental fazer o registro, ir aos Correios, escolher o selo e enviar aos destinatários, sem envelope, com muitas expectativas para saber se ia chegar.

Será que as mensagens eletrônicas, as mensagens de texto, de voz e de vídeo que trafegam pela Internet possuem a mesma magia? É impressão minha ou é mais fácil apagar um e-mail do que jogar uma cartinha fora? Se alguém souber a resposta, me conte.


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terça-feira, 18 de janeiro de 2022

Numa manhã chuvosa...

 Renato Muniz B. Carvalho

         Acordar e descobrir que o dia amanheceu chuvoso é desanimador para muita gente. Reconheça-se que para outros é muito bom: para quem pode ficar na cama, por exemplo, também para os agricultores que acabaram de plantar sua roça e, enfim, para quem precisa de água para beber, para viver, seja no meio rural ou na cidade. Sem a chuvinha — ou chuvona —, as nascentes não sobrevivem, não ocorre a recarga dos aquíferos, as plantas não crescem e não se desenvolvem etc.

Embora eu não faça parte do grupo que pode ficar na cama curtindo a manhã chuvosa, eu me permito uns minutinhos de contemplação e recordação. Quando eu era criança, lembro-me que a chuva ao amanhecer me deixava sorumbático, principalmente quando estava passando as férias na fazenda do meu avô. Significava que não poderia andar a cavalo, não poderia ir pescar no corguinho no fundo do quintal, nada de passeios pelos capões de mato em busca de frutas do cerrado e de lugares novos para ampliar minha geografia.

O melhor de tudo é que raramente a chuva durava a manhã toda. Verdade que a angústia me dominava logo nas primeiras horas; antever que ela me forçaria a ficar em casa era terrível. Da janela do quarto ou da varanda, eu procurava sinais de que ela passaria em breve: o canto dos pássaros, as teias das aranhas, a direção do vento, o formato e o tamanho das nuvens e por aí afora. Eu me transformava num doutor em climatologia, especialista em previsão do tempo, desejando o fim imediato da chuva para que não atrapalhasse minhas atividades. Que ilusão!

Se a chuva continuasse, era bom partir para outros afazeres. Interrogar minha tia para extrair dela os segredos da família; convencer minha mãe de como eu era exímio cozinheiro; fuçar na caixa de ferramentas do meu pai e imaginar que eu daria conta de produzir móveis, brinquedos e soluções mágicas para o dia a dia, inclusive algum mecanismo para interromper a chuva. Se na fazenda estivessem mais pessoas, primos, primas, amigos e amigas, a solução eram os jogos de tabuleiro, o baralho e as brincadeiras para estimular o emocional: mímicas, competições e desafios. Em especial, conversas e reflexões. Leitura sim, televisão nem pensar! Se nesta época já existissem os celulares e as redes sociais, estaríamos todos apartados, com a solidão correndo solta nas ondas da internet. Ufa!

Não sou contra a tecnologia, é claro, mas acho que está sobrando delírio, tapeação, e anda faltando raciocínio nos dias de hoje. Será que precisamos de uma boa chuva para nos fazer repensar o mundo e a realidade que nos cerca? Uma manhã chuvosa para nos ajudar a refletir sobre as contradições sociais, a política e aberrações como o negacionismo científico, o autoritarismo, a apologia da ignorância e a distorção do passado.


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terça-feira, 11 de janeiro de 2022

Bom dia!

 Renato Muniz B. Carvalho

         Acordei disposto a dar um cordial bom-dia às pessoas ao meu redor. Não quero deixar ninguém de fora, mesmo porque, como dizem uns e outros, “fora” não existe. Antes de tudo, é preciso assumir as responsabilidades em relação ao dia que começa. Lixo, poluição, fumaça, ignorância, mentiras, ódio, tristezas e desigualdades sociais não combinam com um dia bom.

 Como tenho certeza da esfericidade do planeta, se pudesse dava a volta ao mundo dando bom-dia a toda a gente, sabendo que não posso me esquecer dos que estão mais próximos. Seria descortesia ignorá-los. Acho bom dar ampla publicidade ao singelo cumprimento. Admitindo a hipótese de que não estamos sozinhos no universo, e para não melindrar ninguém: bom dia, extraterrestres! Meu bom-dia vai para todas as pessoas em todos os cantos, não importa quem, embora nem todos correspondam. Sempre é tempo de ser atencioso. Afinal, eu não dormi com essas pessoas. Conforme meu avô me ensinou: “Como você não dormiu comigo, diga bom-dia ao seu avô!”.

Meu sincero bom-dia ao porteiro do prédio onde moro, bom-dia ao rapaz dos correios que traz a correspondência, bom-dia ao entregador de pizza do aplicativo, bom-dia à faxineira com seus paninhos, seus apetrechos e seu bom humor. Bom dia aos funcionários silenciosos e compenetrados que varrem as ruas e recolhem o lixo urbano. Bom dia aos jardineiros, pelo cuidado constante com os jardins e gramados que nos alegram a vida. O bom-dia há de ser também para aqueles que começam cedo sua jornada e trabalham de sol a sol, incansáveis batalhadores.

Bom dia, ranzinzas! Embora eu discorde de sua visão de mundo, vocês que se julgam superiores, acordam tarde e não dão sequer bom-dia àqueles que, segundo vocês, nasceram para servir-lhes; não vou entrar no seu jogo mesquinho. Bom dia também aos egocêntricos que passam por nós e fingem que não nos enxergam.

Acordei cedo e abri logo a janela. Olhei para a rua desejando gritar bem alto meu bom-dia para quem vai à luta, para o motorista do ônibus, que certamente começou sua jornada quando ainda estava escuro, para o cara esforçado que pedala sua bicicleta com afinco, de olho no trânsito louco. Bom dia, distinta senhora que saiu de casa com seu pet para que ele faça suas necessidades matinais! Não se esqueça de recolher o cocô do cãozinho! Não gritei porque não quis atrapalhar o sono dos que dormiram mal, não quis interferir na angústia dos insones; provavelmente, eles não compreenderiam essa manifestação de civilidade.

Do fundo do coração, meu bom-dia, mesmo que você não esteja nesta lista. Eu teria de me apoderar do espaço inteiro do jornal se fosse contemplar a todos. Minha especial saudação a você que estiver lendo esta crônica, tenha um bom dia!


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domingo, 2 de janeiro de 2022

A lanterninha

 Renato Muniz B. Carvalho

             Eu tenho poucas certezas. Uma delas, talvez a mais forte, é que existem os dias e as noites. O resto é pura especulação, matéria para a linguística, a história e a filosofia. Foi devido a essa constatação que eu decidi nunca abrir mão de uma boa lanterna. 

Minha primeira lanterna eu ganhei de presente do meu pai. Nós íamos passar as férias na fazenda do meu avô e lá não tinha energia elétrica, tudo dependia de lampiões e velas, as noites eram escuras e misteriosas. A lanterninha me proporcionou autonomia diante da escuridão e tornou-se item indispensável nos passeios e viagens. Que felicidade a minha! Se no início servia para olhar o jardim, o vão debaixo da escada e se o portão da entrada estava fechado, depois me permitiu investigar os seres noturnos: morcegos, insetos, vagalumes, aranhas, curiangos e corujas, mas vou parar por aqui, a lista é longa. Pouco a pouco, fui mais longe, para verificar se vacas e cavalos estavam mesmo dormindo, se a água do córrego no fundo do quintal continuava correndo e se as estrelas não tinham caído do céu. Ingenuidade? Que criança nunca se perguntou isso e muito mais? 

A energia elétrica não demorou a chegar e a lanterna adquiriu outras serventias. Memoráveis pescarias só foram possíveis graças a ela. Preparada a tralha de pesca, nós — meus irmãos, amigos e eu — descíamos para o córrego e ali ficávamos até tarde da noite, incomodando os peixes nos poços calmos e profundos. Mais conversávamos do que pescávamos. As boas sensações vinham de poder estar ao relento, sob o céu das noites frescas do Cerrado, ouvindo o sussurro da água escorrendo entre as pedras, os pios e os chiados de animais desconhecidos para nós e outros sons não identificados. 

As lâmpadas das lanternas eram frágeis, queimavam-se com facilidade, as pilhas eram grandes e caras. Por isso, economizávamos o uso. Não raro, na volta subíamos em fila indiana, com o primeiro iluminando o caminho para os demais. Na beira do barranco, a luz era acessa só em caso de fisgada certeira ou para trocar a minhoca no anzol. Ficávamos preocupados com cobras, mas não nos metíamos em locais com mato alto e troncos caídos. O pior que podia acontecer era a linha enroscar num galho, perder o anzol e quebrar-se a frágil varinha de bambu. 

Com o tempo, as lanternas se transformaram. Nós e o mundo também. Chegaram as importadas dos países asiáticos, as lâmpadas de LED, e sumiram as pilhas grandes, substituídas por baterias e pilhas recarregáveis. As pescarias acabaram. As conversas agora giram em torno da poluição dos rios, da falta de tempo, das doenças, dos atropelos da vida. Hoje, muitas pessoas não estão nem aí para lanternas, meio ambiente e ciência. Acho que não ligam de ficar no escuro.


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