terça-feira, 5 de abril de 2022

Arroz com feijão

 Renato Muniz B. Carvalho

         Você é daqueles que se preocupa com a origem da sua comida, com o modo de preparo e com os ingredientes? Muitas pessoas não estão nem aí para essas coisas, o que importa é comer, de preferência comida saborosa. Na fazenda do meu avô, a comida era muito óbvia, mas extremamente gostosa. O que será que eu quero dizer com “comida óbvia”? É que ela tinha por base arroz com feijão, verduras da hortinha do quintal, alguma carne e, para finalizar a refeição, queijo fresco acompanhando compotas de frutas ou doce de leite. Tudo muito simples e saudável. Somente anos depois, ao me mudar para São Paulo, conheci a comida internacional, a gastronomia como um saber aprimorado e complexo.

O que fazia a comida da minha adolescência tão apetitosa? Apesar da distância no tempo, penso em diversos fatores: a preparação, os temperos, a qualidade dos ingredientes e a fome da turma. Poucas coisas vinham de fora: sal, açúcar, macarrão, cebola, alho, canela e cravo, conforme me recordo, eram os produtos trazidos da cidade. Arroz, feijão, milho, mandioca, verduras, frutas, ovos, banha e carnes eram produzidos na fazenda. Fundamentais eram a dedicação e o carinho da minha avó paterna, a dona da cozinha, das panelas e dos temperos. Numa sociedade machista, meu avô era o dono do tempo: vinha dele a definição dos horários. Hoje, engrenagens geopolíticas mais sofisticadas decidem turnos, ingredientes e processos, de preferência com pressa — o fast food não surgiu por acaso.

Meu avô cuidava da produção, do preparo da terra, da colheita e da comercialização. Até os anos 1960, ele guardava parte das sementes para a próxima safra. Num espaço curto de tempo, tudo mudou. Para começar, a decisão de desativar o moinho, onde se processava o milho, base da alimentação de pessoas e animais. Lembro-me das duas pedras imensas, solenes e pesadas, que trituravam os grãos transformando-os em fubá, quirela etc. Eram movidas pela força da água do córrego que passava no fundo do quintal. Eram admiráveis as pedras mó e o mecanismo que as fazia girar. Eu garanto: tinha algo de mágico.

Um dia, a partir dos anos 1970, já não se guardavam mais as sementes, elas seriam compradas a cada safra. Se isso, num primeiro instante, acarretou aumento de produtividade, também representou acréscimo no consumo de adubos e venenos, aumentando a dependência da “cidade”. Minha avó não gostou da novidade, mas o que ela podia fazer? Engoliu em seco e, depois, foi ela própria engolida pelas engrenagens do sistema. Em 1970, ela e meu avô morreram num trágico acidente de automóvel. Acho que eles não calcularam a velocidade do caminhão que passou por cima dos dois. Era a vida que se acelerava, trazendo novos costumes e ritmos; a comida de comer transformava-se em comida de vender.

Publicada no Jornal da Manhã: https://jmonline.com.br/novo/?paginas/articulistas,67

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