terça-feira, 21 de dezembro de 2021

O cronista do óbvio

Renato Muniz B. Carvalho

        Uma das características mais marcantes das crônicas é a presença do óbvio, mas o gênero vai muito além, com seus incontáveis predicados. Crônicas falam do cotidiano, das rotinas bestas, das esquinas, de ciúmes e de amores, de botecos, de quintais, de fogões a lenha, de comidas regionais, de árvores e de jardins. Aliás, do que não falam as crônicas? O material delas são os prazeres e as tristezas do dia a dia, as pequenas coisas que nos distraem, sem criar grandes expectativas, as paixões escondidas, os gestos espontâneos, além de proporcionar diferentes leituras do mundo. Tudo isso sem preocupação rígida com a realidade, com a exatidão dos fatos ou com a pesquisa científica; cronistas não fazem análise política, brincam com ela. Ainda que tangenciem o terreno da ficção, nelas não cabem embustes e calúnias, a não ser como ironia. Pensando bem, um pouco de poesia e lirismo é essencial.

O óbvio é quase invisível, discreto; é aí que entra a crônica, para falar dele, para cutucá-lo, para desvendar seus segredos. O óbvio nem sempre se nota, mas é transparente para quem tenha olhos de ver. Quando querem escondê-lo é quando precisa ser escancarado, exposto, às vezes de modo ostensivo, às vezes de forma sutil. Ao ser provocado, ele se sujeita a ser pensado e suscita inúmeras interpretações. Pois é, existem situações tão óbvias que ninguém enxerga! E é quando ele se mostra nítido e evidente que muita gente se espanta. Se os incrédulos negam as evidências, os oportunistas e os ignorantes não gostam do óbvio. Uns porque o escondem nas sombras, outros porque não o compreendem.

Será que precisamos das crônicas para nos revelar o óbvio? Para nos mostrar o que não conseguimos ver? Para nos dizer que árvores, flores e jardins são essenciais à vida de todas as pessoas? Para nos revelar a importância da leitura? Para denunciar desmandos? Para nos fazer sentir o aroma delicioso de café passado na hora acompanhado de pão de queijo? Para nos fazer rir das nossas bobeiras? Que seja!

Um dos problemas técnicos do óbvio é que cada um o vê como quer, apesar de inconfundível. Ou será que ele é um pra mim e outro pra você? Então ele não é tão explícito assim. Em tempos difíceis, faz-se necessário conversar sobre ele, mostrar as obviedades para evitar que o indigesto predomine e, pior, que o óbvio seja transformado em obscuro. Triste situação em que é preciso escancarar o óbvio. Seria melhor discutir o futuro, dar vazão às expressões artísticas, às loucuras criativas para não ficarmos prisioneiros da razão obtusa.

Por que falar do óbvio? Porque muitos não o enxergam. Porque uns e outros, neste momento em que estamos vivendo, preferem a dissimulação e o ódio, por incompetência e patifaria. O que fazer? Refutar as certezas autoritárias com dúvidas libertadoras. É óbvio!

Publicada no Jornal da Manhã: https://jmonline.com.br/novo/?paginas/articulistas,675,220592

Publicada no Recanto das Letras: https://www.recantodasletras.com.br/cronicas/7412076

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terça-feira, 14 de dezembro de 2021

Independência e modernidade

 Renato Muniz B. Carvalho

          Duas datas importantes vão exigir nossa atenção em 2022. Não estou me referindo às eleições, embora elas já estejam em pauta e não é de agora. É óbvio que a política vai dominar os debates, acirrar o ânimo belicoso que tem caracterizado a sociedade brasileira desde a segunda década do século XXI e acentuar as divergências que nos mobilizam desde sempre, com sensível piora nos últimos anos.

 São duas efemérides da mais alta relevância, mas que devem colaborar para o agravamento dos (des)acordos que nos (des)unem como nação. Certamente, estarão em disputa interpretações, análises, visões e o teor das comemorações. Pelo andar das carruagens que percorrem as estradas esburacadas da atualidade, teremos a visão governamental e outras, inúmeras, que se colocarão em cena, em palco aberto, encenando um espetáculo, que se espera não termine em tragédia — a sociedade brasileira não merece isso.

 Vamos abrir o jogo: em 2022, teremos de encarar o bicentenário da Independência e o centenário da Semana de Arte Moderna de 1922. Dois acontecimentos que já foram alvo de exaustivos estudos, publicações, teses, exposições etc. Dois eventos históricos que contribuíram para nos moldar enquanto povo. A Independência nos definiu como país independente de Portugal, nos colocou no cenário internacional como país e não como adendo ou possessão; deixamos de ser colônia para alcançar a maturidade política. De forma simplificada, foi isso o que aconteceu; talvez, não como muitos gostariam — afinal, o Brasil manteve o pior cenário: a escravidão. Além disso, um grupo ligado à metrópole assumiu o comando, com apoio reforçado da oligarquia rural, a mesma classe que se beneficiou durante o período colonial. Rompimentos efetivos, capazes de nos fazer superar os gargalos do passado, nunca se concretizaram. O ambiente social se arrasta pesadamente, quando não retrocede, e mantém o racismo e o machismo arraigados.

 A Semana de Arte de 1922 foi justamente uma tentativa de ruptura do quadro cultural e político. O “moderno” aqui foi uma tentativa de superar o passado, uma tentativa de construir, pela via das artes, uma nação autônoma no quadro internacional e nacional. E mais: a Semana influenciou, posteriormente, a política, a ciência, os costumes — como, aliás, as artes costumam fazer, basta reconhecer sua importância. A década de 1920 foi uma época de avanços na educação, trouxe melhorias na ciência, no campo do urbanismo, da saúde pública, do saneamento etc., e marcou o início da luta pelo voto feminino. Foi a chance de ouro para nos tornarmos de fato um país moderno. O impacto da Semana de 22 ecoa século XX afora e ela chega, agora centenária, ao século XXI. É uma boa hora para refletirmos sobre seu legado e o da Independência. O “problema” que se coloca é: como a sociedade brasileira e as diversas instituições vão fazer isso? Vamos pelo lado ufanista e estéril ou vamos abordar com senso crítico nossas demandas históricas?

Publicado no Jornal da Manhã, em 14-12-2021. Aqui

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quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

Uma pessoa qualquer

Renato Muniz B. Carvalho         

        O que é uma pessoa qualquer? Você conhece uma pessoa qualquer? Sabe onde encontrá-la? Como iniciar uma conversa com ela? Ela existe? Não estou ficando maluco nem estou sem assunto, essa é uma preocupação relevante para muita gente. Você nunca se deparou com uma pessoa assim? Nunca usou este termo para se referir a alguém? Sim, uma pessoa qualquer existe, trabalha, paga contas, faz compras no supermercado, recebe valores, conta pequenas mentiras, algumas assistem à TV até tarde da noite e outras leem livros.

 Uma pessoa qualquer pode ser homem, mulher, LGBTQIA+, nova, velha, estrangeira, feliz, infeliz, pouco importa, pode ser que ela nem queira se identificar, se mostrar ou revelar de fato quem é. Uma pessoa qualquer pode ser rica, pobre, miserável, pedinte, cientista, milionária excêntrica ou nada disso. Talvez, nós jamais descobriremos quem é esta pessoa.

 Ela pode estar do nosso lado, visível ou invisível, coladinha, pode estar a ponto de nos dar um beijo ou um soco no estômago. Também pode estar a quilômetros de distância, do outro lado do mundo, e nem sonha com nossa existência. No mínimo, isso faz dela uma pessoa instigante, ou não?

 Uma pessoa qualquer pode ser qualquer pessoa, e isso não é um trocadilho, muito menos uma armadilha semântica. Ela pode abrigar dentro de si todas as pessoas do mundo e ser única ao mesmo tempo. Só por esta razão, uma pessoa qualquer já merece nossa atenção. Imagine a potência criativa e existencial de uma pessoa com tais características! Nunca se sabe o que vem daí, qual o tamanho da sua riqueza humana e de sua diversidade cultural. As religiões, as artes e as ciências disputam-na, mas nenhuma delas conseguiu decifrá-la totalmente.

 Outro dia encontrei uma dessas pessoas. Podem acreditar! Eu estava caminhando, ela também, ela olhou pra mim, eu olhei pra ela, e nos reconhecemos, como pessoas. Como eu sabia que estava diante de uma pessoa qualquer, dei um sorriso e recebi outro — reciprocidade. Na medida em que dava passos largos em direção a ela, imaginava as perguntas que faria. Quais são seus sonhos, o que ela pensa do aquecimento global e do futuro da humanidade, sobre a política — será que ela já definiu seus candidatos às próximas eleições? —, se tem filhos, se está na faculdade, se trabalha, se come bem, se vai viajar no fim do ano? Tantas perguntas…

 E se ela me fizesse as mesmas perguntas? O que eu responderia? Eu gostaria que ela perguntasse sobre minhas leituras preferidas, sobre os livros que estou lendo, sobre como eu vejo as perspectivas políticas atuais e qual foi o último filme a que assisti. Talvez eu lhe perguntasse que horas são ou onde fica a sorveteria mais próxima. Talvez ela só quisesse me dizer que o cadarço do meu sapato estava desamarrado.

Crônica  publicada no Jornal da Manhã, em 01-12-2021.

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segunda-feira, 6 de setembro de 2021

Brasilino e a independência do Brasil

 


Brasilino e a independência do Brasil

 

Renato Muniz B. Carvalho

 Todo mundo conhece alguém que, após uma breve convivência, some e, de uma hora pra outra, reaparece. Depois, some de novo. Por onde andou? Escondido nas entranhas escuras de uma caverna? Perdido em algum labirinto da Idade Média? Afundado num sofá confortável em alguma casa de montanha? Preso numa cela sórdida? Aí, do nada, aparece para pedir dinheiro emprestado, para pedir votos na próxima eleição ou filar um cafezinho.

Um dia desses, lembrei-me do Brasilino. Conhecem? Ele tem mais de sessenta anos, já rodou bastante, mas ressurgiu com vigor impressionante nos últimos anos. O que será que ele fez para se manter jovem? Na verdade, o cara nunca foi novo, sempre foi um indivíduo corroído pelo tempo, corrompido pelas próprias escolhas, um velho empedernido. Não quero ser injusto, apenas traçar um perfil sincero de alguém que sempre se prestou a papéis duvidosos na cena política nacional. Às vezes, foi o inocente útil, em outras vezes serviu como massa de manobra ou ponta de lança dos velhos caciques da política.

Não se trata de depreciar o meu conhecido, respeito seu jeito de ser, apenas discordamos. Ele sabe o que a sociedade brasileira pensa dele, historicamente falando. Por isso, ele vai e vem, sobe e desce, sempre tentando ocupar um lugarzinho no seio do poder. Neste ínterim, defende seus próprios interesses, se deixa manipular, embora, de fato, sempre tenha se portado como um bajulador convicto.

 Teve oportunidade de receber formação educacional, frequentou salões chiques, foi a restaurantes finos, a cinemas e a salas de teatro. É verdade que comprou poucos livros, leu menos ainda. Não se pode dizer que era um sujeito mal-informado. Talvez mal-intencionado… Sua essência é a ambiguidade, a insegurança intelectual e a dissimulação, daí ter sempre apoiado demandas equivocadas: defendeu o nacionalismo, o bairrismo, a tradição e a supremacia masculina.

 Sua história começou quando, numa bela manhã, acordou acreditando que era feliz. Passou o dia consumindo produtos e serviços de empresas multinacionais, sem admitir que o Brasil fosse dependente do capital internacional. Ao longo dos últimos 60 anos, não percebeu que o país esteve envolto em tristes contradições, que sofreu graves dificuldades políticas, econômicas e injustiças sociais. Nunca entendeu as verdadeiras razões de seus habitantes viverem na pobreza, alguns na miséria, passando fome. Enfim, ele nunca teve olhos para as causas da desigualdade do país, cuja frágil independência vive ameaçada.

Brasilino é o personagem de um folheto muito popular escrito por Paulo Guilherme Martins, com o título “Um dia na vida de Brasilino”, em 1961. De forma irônica, bem-humorada, o autor nos apresenta uma figura ingênua, desligada das questões políticas. Nacionalista, conservador, ignorante das mazelas do país, entusiasmado com o “progresso”, era o típico cidadão alienado de sua época. Passados sessenta anos, Brasilino bate às nossas portas, assombrando-nos novamente com o fantasma do retrocesso.


terça-feira, 12 de janeiro de 2021

Gumercindo: uma crônica

 Gumercindo

 Renato Muniz B. Carvalho

 O Gumercindo chegava ainda de madrugada. Como naquele tempo não era costume trancar os portões, ele entrava, ia até a varanda e sentava-se à espera de acordarmos. Era discreto e todo sorridente. Quando minha mãe abria a porta da varanda, lá estava ele, sentadinho, bem comportado, aguardando ser chamado para tomar café.

 Tão silencioso quanto vinha, da mesma forma ia embora. Chegava e partia sem dar muitas explicações. Nós gostávamos dele, embora não compreendêssemos suas excentricidades. A nossa convivência com ele foi um componente importante do aprendizado a respeito de questões relacionadas à diversidade cultural e social. Sempre de terno, o mesmo terno, ele fazia questão de etiquetas e de protocolos, sem nunca perder a cordialidade. Nós gostávamos de suas histórias fantasiosas de caçadas e de aventuras.

 Lembro-me de que houve uma única vez em que se desentendeu com minha mãe. Foi na hora do almoço, à mesa. Nesse dia, ela resolveu nos servir suco. Como éramos muito gulosos, ela já trazia os copos cheios e distribuía por igual para cada um, para evitar disputas. O Gumercindo fez cara feia e recusou o seu copo. Depois, dirigindo-se ao meu pai, recriminou minha mãe, disse que era inconcebível oferecer vinho aos filhos pequenos: “onde já se viu!” Foi difícil convencê-lo de que era suco de uva e não vinho.

 Gumercindo era escritor, já tinha publicado alguns livros. Gostava de conversar com meu pai sobre história, assuntos literários, sociologia e genealogia da família. Respeitavam-se mesmo quando discordavam. Sempre nos trazia livros de presente, geralmente os escritos por ele, e gostava de dar autógrafos. Mas envelheceu — era inevitável —, e ficou confuso, desorientado, cada vez mais irritado com um mundo que ele não mais compreendia; um mundo em rápido processo de transformação.

 Meu pai nos dizia que ele gostava de caminhar. Não tinha carro, não dirigia, e ficamos admirados quando soubemos que percorria grandes distâncias a pé. Ponderado, a seu modo, apesar de um tanto extravagante, fazia questão de não incomodar ninguém. Vez ou outra, deixava o silêncio tomar conta, olhava o vazio interior que só ele devia conhecer.

 Um dia, chegou sujo de terra, o mesmo terno, os mesmos hábitos, mas amarrotado e cheirando mal. Descobrimos que o odor forte vinha do fato de ter vários dentes de alho nos bolsos do terno. Perguntado sobre isso, disse que era para ter saúde e espantar coisas ruins. Não entendemos nada, mas tolerávamos sua anarquia e seu desalinho. Não me recordo a data, mas uma noite meu pai chegou triste e nos contou que o Gumercindo tinha morrido. Em seguida, foi à estante, pegou os livros dele, como se o parente estivesse ali, nos livros, folheou e guardou de volta. Tem pessoas que permanecem na memória da gente, alguns estão nos livros que guardamos. São pessoas de outros tempos, de outros lugares, que ficam conosco. O Gumercindo é um deles.

 Crônica  publicada no Jornal da Manhã, em 12-01-2021.

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