terça-feira, 1 de julho de 2014

O batizado da Saudade



Saudade

Renato Muniz Barretto de Carvalho
Como todas as vacas da fazenda tinham um nome, eu perguntei a meu pai porque a novilha bonita, de pelo liso, castanho, ainda não tinha um. Ele me explicou que as vacas, no caso as novilhas, só passavam a ter nome depois que tivessem a primeira cria, o primeiro bezerro. Como a novilha castanha ainda não tinha parido, não tinha nome. Convenceu, mas nem tanto, afinal nome é nome, e todo mundo merece ter um.
A novilha era meiga, amorosa e, quando o gado era fechado no curral, ela não devia se sentir acuada, como os demais, pois logo vinha até nós, chegava mansinha, devagar, nos procurava e aguardava um carinho, uma palavra de conforto, uma saudação qualquer. Meu avô, sempre que o serviço permitia, num momento que parecia de descontração, passava a mão na barbela da novilha e ela ficava agradecida. Barbela é aquela parte que fica na parte de baixo do pescoço dos bovinos, parece uma pele solta, uma pelanca macia, gostosa de passar a mão, lembra um abanador e alguns dizem que serve pra isso mesmo. Será? Não importa, o fato é que a novilha devia gostar bastante do carinho, pois ficava quietinha, se fosse um gato, ronronava.
Por minha conta, eu achei que ela já merecia um nome. Não tinha sentido uma habitante daquele universo rural, ainda mais uma rês tão amigável e tão afável, não ser batizada. Então, eu a batizei, silenciosa e intimamente, de Saudade. Não sei por quê. Afinal ela era castanha, ficava até mais fácil de lembrar. É claro que ela era um mimo da espécie bovina, daí poderia se chamar Mimosa, mas preferi Saudade. Guardei comigo o nome e fiquei só esperando quando ela parisse para sugerir aos responsáveis o nome que, a partir daquele instante, já era dela. Tinha só que me preocupar para que outra novilha não recebesse o mesmo nome antes dela.
Na fazenda, eu ficava intrigado com a criatividade dos nomes escolhidos para o gado, principalmente as fêmeas. Os machos também tinham nomes, mas em menor proporção. Recebiam nomes os touros reprodutores e os bois de carro. Os carreiros, como eram conhecidos, eram imponentes, imensos, e a impressão que eu tinha é a de que se não tivessem nomes nem puxariam o pesado carro de boi. "Laranjo", "Carvão", "Malhado", "Redondo" eram nomes que ouvíamos sempre. Esses ficavam em um pasto separado dos demais. Recebiam ração e trato diferenciados.
Os dois touros que serviam ao rebanho como reprodutores não podiam ficar juntos, senão brigavam, e cada briga muito feia! De arrebentar as tábuas do curral e fazer todo mundo subir nas cercas. Um era o Triunfo, e o outro o Centenário. Os demais, os garrotes e os bois da invernada, não tinham nome e pouco vinham ao curral.
Como a fazenda era uma propriedade leiteira, a maior atenção era dada às vacas. A variedade de nomes era interessante, curiosa. Só muito tempo depois é que percebi que existia uma lógica no batismo. Aliás, várias lógicas.

Nomes identificados com as pelagens, como Pintada, Fumaça, Mulata, Cabocla, etc. Nomes relacionados ao temperamento, como Onça, Mimosa, Sincera, etc. Nomes vinculados a acontecimentos, a flores, a virtudes, a outros animais, a frutas, nomes como Pitanga, Joia, Careta, Londrina, Cheirosa, Laranja, Fortuna, etc. E os nomes não podiam ser muito complexos, senão nem os homens e nem as próprias vacas compreenderiam. Nada de nome composto ou sofisticado. Todos continham uma certa poesia, uma sensibilidade, resultado de uma boa observação do mundo.

Na roça, todos têm nomes, sejam bovinos, cavalos, cachorros, gatos, cabritos, galinhas e até os lugares. Trata-se de reforçar a identidade entre humanos e a natureza, de nomear para entender, ou submeter.  

Ainda me recordo do batizado da Saudade como se fosse hoje. Nenhuma solenidade, nada formal, mas significou um momento de aprendizagem e de afirmação para mim. A questão é que, sem nome, como indicar, como chamar, como estabelecer uma relação que vá além da violência? O nome abranda a dominação, humaniza, constrói identidades e familiaridades.
No dia que a Saudade pariu, eu estava lá no curral, atento aos indicativos da hora do batismo. Assim que foi peada para a primeira ordenha, logo chamei: “Saudade, Saudade”, e ela atendeu, mansa, carinhosa com o bezerro, aguardando a hora de dar de mamar à cria. Não deu outra, o nome estava decidido e assim foi enquanto pude frequentar a fazenda. Depois, desaparecemos na poeira do tempo, sem destino, sem mais se preocupar em nomear quem quer que fosse diante das rápidas mudanças que alteraram as várias identidades rurais do interior do Brasil. Sem saudosismo. Vacas, bois e cavalos passaram a receber nomes estrangeiros, chiques, incompreensíveis para muita gente. Lugares passaram à condição de taliões, de glebas, numerados, quantificados, mapeados por satélites, outras identidades.
Mas, naquela manhã, quando chamei por ela, logo o Bastiãozinho, vaqueiro de primeira qualidade, emendou na hora: “Sardade, Sardade...vem Sardade”.  

Fazenda das Aroeiras

Fazenda das Aroeiras

Currais da fazenda

Vale do Ponte Alta na década de 1940
Pintura

 Índia

 Joia
 Soberana

Lindoia

Fartura

Pamonha

O touro Centenário