terça-feira, 24 de maio de 2022

O sapato abandonado

Renato Muniz B. Carvalho

Dia desses, ao passar por uma rua da cidade, vi um sapato abandonado. Acreditem: a imagem era desoladora. O sapato, um único pé, estava virado de lado, sujo, desgastado pelo uso e sem o salto. Era um sapato feminino, com detalhes dourados, tamanho 34 ou 36, não dava para saber ao certo.

 Diminuí o passo, olhei para os lados, observei os arredores e não obtive resposta para algo que me incomodou: onde estará o outro pé? Para muita gente, esta pode ser uma dúvida frívola, mas eu queria saber. Devia existir outro pé ou, no mínimo, um salto descolado, estropiado. Em algum lugar estava um sapato perdido, esquecido do mundo e das atenções do público. Não podia estar longe. Ninguém anda com um pé calçado e outro descalço, não em sã consciência. Já vi pessoas com meias trocadas, com cadarços desamarrados, com chinelos de dedo diferentes, mas faltando um pé não. Deve ser muito incômodo andar assim, manquitolando, melhor andar descalço, levar nas mãos os sapatos avariados ou abandoná-los juntos. Qual é o sentido de salvar um pé e deixar o outro? Alguém sem uma perna? Sem um pé? Fui investigar o assunto.

 Como as lojas ainda não vendem sapatos separados, apenas o par, achei que ali tinha um enigma, uma história triste. Quando o sapato foi abandonado? De madrugada? Era um sapato de festa? De trabalho? De uma secretária, de uma travesti, de uma noiva, de uma turista que se perdeu? Da Cinderela? Tantas dúvidas! Pode ser que um cachorro tenha carregado. Terá sido briga de casal e o pé ausente foi levado como álibi ou suvenir? Terá sido um acidente automobilístico, um atropelamento, a vítima conduzida na ambulância deixou o pé para trás? Que azar! 

Não sei, prefiro não ser trágico nem pessimista, mas pensar positivamente. Por que não podemos abandonar um sapato no meio da rua? Alguma lei proíbe? Claro, tem a questão da poluição, da sujeira acumulada nos logradouros públicos. Se não há leis que impedem sapatos de serem largados ao léu em vias públicas, melhor descartá-los nas lixeiras, melhor do que um simples abandono, uma desistência.

 E alguém desiste de um único pé? Seria como pensar com apenas um lado do cérebro, se é que isso já não foi constatado pelos neurocientistas. Mastigar só com um lado da boca, abandonar metade do país à própria sorte, achar que só uma margem do rio vai ser afetada pela descarga de produtos tóxicos, coisas assim.

 Aquilo não me saiu da cabeça enquanto não entendi que as pessoas se deixam perder, por inteiro ou em partes: a dignidade, o raciocínio, o amor, a capacidade de compreender a vida e o mundo. Queria ter encontrado o pé que faltava. Significaria o fim do mistério, seria mais fácil continuar minha jornada, mas a realidade é mais complexa.


Publicada no Jornal da Manhã: https://jmonline.com.br/novo/?paginas/articulistas,67

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