segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Caminhos, curvas, estradas, entroncamentos


Renato Muniz Barretto de Carvalho

O menino acordou preocupado. Foi o primeiro a acordar naquela manhã de sábado. O motivo da preocupação era orientação ou, melhor dizendo, sinalização.
É que naquele fim de semana chegariam à fazenda primos de São Paulo, e era a primeira vez que eles vinham.
Acordado, pulou da cama, saiu pela janela do quarto, porque a mãe ainda estava dormindo, e foi ao curral. Sabia que o Sr. Joaquim já estaria por lá, ordenhando as vacas, pois esse serviço era o primeiro do dia e não se admitiam atrasos. Vacas e bezerros põem-se a berrar se não estão juntos logo cedo.
A atitude compenetrada do gerente da fazenda, o cuidado com a quantidade de leite fornecida a cada bezerro e a preocupação com a higiene do úbere das vacas não permitiu que o Sr. Joaquim fosse interrompido e a ele revelado o motivo de tanta ansiedade.
Na pressa com que saiu de casa, deixou para trás a caneca para tomar o leite tirado na hora e teve de voltar para buscá-la.
Ao estranhamento da mãe, que não entendeu o motivo de tanta correria, respondeu rápido e disse apenas que estava entretido com a chegada dos primos à fazenda. Disse que ia tomar leite no curral e, desta vez, apesar da pressa, saiu pela porta da cozinha.
 Ao chegar ao curral, procurando pelo Sr. Joaquim, foi informado que ele foi ao chiqueiro para ver se a porca prenha tinha parido de madrugada. Mas não pode sair em disparada, como era sua vontade e determinação, pois o Miguel, ajudante do Sr. Joaquim, disse que ia ordenhar a última vaca e se ele não tomasse o leite ia ficar sem, ou teria de se contentar com o que ia no balde para a cozinha da sede. O menino sabia que esse não tinha o mesmo sabor, sabia que a espuma do leite tirado na hora não se comparava ao que ia para o consumo do dia, para o pão de queijo, para o bolo e outras quitandas que Dona Josefa faria dali a pouco.
Meio que perdido em torno dessas divagações lácteas e decisões alimentícias, quase se esqueceu da vinda dos primos. Tomou o último gole de leite, limpou os lábios com a manga da camisa, eliminando o bigode branco que se formou, pediu ao Miguel que levasse sua caneca junto com o balde de leite que ia pra sede e correu para se encontrar com o Sr. Joaquim.
Passou pelo chiqueiro, mas foi encontrar o homem na varanda de casa, tomando a primeira xícara de café do dia. Ele já se preparava para arrear o cavalo em que ia buscar o lote de novilhas que seria apartado para venda naquela manhã de sábado. Mesmo sabendo da extensa agenda do Sr. Joaquim, era a ele que tinha de pedir que colocasse uma placa no entroncamento da estrada que descia para a fazenda, senão os primos passariam reto e poderiam perder o caminho, cheio de curvas e encruzilhadas.
Para quem conhecia a fazenda era fácil, para quem tinha nascido e se criado ali na região não tinha como se perder, cada curva e cada árvore eram sinais bem claros de orientação. Para o pessoal da cidade, o risco de passar direto pela entrada era grande. Daí a preocupação do menino com a colocação da placa que o pai tinha mandado fazer especialmente com a finalidade de indicar o caminho. 


 O tempo passou. Não horas, ou dias, mas anos... Naquela distante manhã de sábado a placa foi colocada e os primos passaram um delicioso fim de semana juntos. Hoje, a placa continua no mesmo lugar, só que bastante enferrujada. Sr. Joaquim, dona Josefa e Miguel foram embora para a cidade. O gado foi vendido e a fazenda arrendada. A casa e o curral foram demolidos, as cercas arrancadas e muitas árvores derrubadas. Alguns, apesar da desolação e saudade, diziam que não havia o que fazer, que não se  podia impedir o avanço do progresso...
Os caminhos foram modificados, as estradas foram cascalhadas, as curvas deram lugar a longas retas onde isso foi possível. Nesses caminhos de hoje circulam rápidos e pesados caminhões, carros e tratores, quase todos equipados com GPS e com ar condicionado.
Não há mais necessidade de placas nos entroncamentos ou nas bifurcações, os talhões são numerados, além disso, pra quê placas se não há mais a sede, o curral, o pomar, o banho de cachoeira? Naquele sábado, os primos aprenderam o caminho, mas nunca mais voltaram. A fazenda modernizou-se, mas perdeu o encanto. As preocupações e os sinais são outros. Restou a memória.




quinta-feira, 16 de outubro de 2014

A árvore no centro do mundo






Renato Muniz Barretto de Carvalho

Dependendo da idade, para algumas crianças tudo é visto de modo ampliado, superlativo e aumentativo. Um cavalo qualquer, por exemplo, desses de porte médio, vira um animal gigante, inesquecível nas lembranças da infância. Uma pinguela, aquele tronco usado para facilitar a passagem sobre o córrego fininho no fundo do quintal, transfigura-se numa enorme e perigosa ponte intransponível. Por isso mesmo, nas brincadeiras infantis, a necessidade, e a devida coragem, para se atravessar a tal pinguela quantas vezes se desejar. E que brincadeira gostosa! Comidas simples se transformam em iguarias e em paladares saudosos que nunca mais as pessoas esquecerão, e nunca mais vão provar de novo, porque esses sabores da infância não voltam. Árvores adquirem significados fantásticos e se transformam nos mais inusitados objetos, geralmente imensos, como uma escada para o céu, ou para a casa do gigante, num navio pirata, num castelo, e por aí vai.

Eu estava distraído, pensando nisso, na falta de chuva e no vento seco levantando a poeira no horizonte, quando reparei no frondoso pé de tamarindo à minha frente. O tronco cheio de ramificações, a copa densa, muitos galhos, carregados de vagens, daquelas cheias de polpa levemente amarga, conforme minhas lembranças. Recordei da pasta escura, amarronzada, que minha tia Alda fazia e guardava em grandes potes de vidro com tampas coloridas. Nas tardes quentes de verão, ela nos oferecia um suco delicioso e doce, feito da pasta de tamarindo, que nunca mais tomei igual àquele. Mudou o suco ou mudei eu? Ou o que mudou foi meu paladar, que envelheceu?

A visão daquela árvore grande, com seus galhos balançando ao vento, me recordou também a Dona Ciloca. Ela era esposa do Sr. Lico, proprietários da fazenda vizinha à dos meus avós. O casal tinha cinco filhos, todos com idade muito próxima, uma escadinha, como minha mãe dizia. Brincavam sempre juntos no quintal da sede. Às vezes se aventuravam no curral, em pescarias de lambari no rio que cruzava a propriedade rural da família, ora em passeios a cavalo, só permitidos aos três mais velhos.

Os meninos vinham nas férias escolares e aí ficavam até o retorno às aulas. Às vezes, aprontavam das suas, como atirar pedras em caixas de marimbondo ou nadar nos grandes cochos onde as vacas leiteiras bebiam água nos piquetes. Eu costumava participar de todas as atividades deles, pois era colega do seu filho mais velho.

Acordavam bem cedo e nunca começavam o dia sem antes tomar uma grande caneca de leite tirado na hora, com bastante espuma, acompanhada de um belo pedaço de pão sovado. Durante o dia, todas as frutas existentes no quintal e nos campos, como as gabirobas e os cajuzinhos, estavam permitidas. Almoço e jantar tinham hora certa e a base era arroz, feijão e bife acebolado.

Na maior parte do tempo os meninos estavam justamente ao redor de um bonito pé de tamarindo localizado bem no centro do quintal da sede. Brincavam de tudo que se possa imaginar e mais um pouquinho. Ora estavam debaixo da sombra gostosa daquela árvore aconchegante, ora cada um num galho, os mais velhos nas grimpas, os mais difíceis de alcançar, os mais novos nos galhos mais baixos.

Um dia, o Sr. Lico recebeu uma visita ilustre de um pintor famoso de São Paulo que foi passar uma temporada na fazenda. E que trouxe consigo pincéis, tintas, telas e outros apetrechos de pintura. Isso encantava a todos, aquele conjunto de maletas, cores e líquidos estranhos aguçava a curiosidade dos meninos.

O pintor pouco saía do casarão da sede e passava a maior parte do tempo na varanda, trabalhando em suas pinturas. Quando foi embora, deu de presente ao casal anfitrião um quadro bem bonito, que retratava os cinco filhos brincando debaixo do pé de tamarindo. Os meninos pareciam minúsculos pontos brancos diante de uma árvore imensa, colorida com infinitas tonalidades trabalhadas em mínimas pinceladas que iam do verde mais intenso ao amarelo mais brilhante. Aquele quadro retratava um mundo especial.

O tempo passou, e, como não podia deixar de ser, tudo mudou. Os meninos cresceram e foram embora, cada um seguiu seu destino. A fazenda foi vendida, os pastos viraram extensos canaviais.

Quando o Sr. Lico morreu, a família se reuniu para tratar das coisas de partilha, das dívidas e dos haveres, para resolver os créditos e os débitos a saldar. Depois, cada um voltou para suas vidas com alguns objetos da herança, com os faqueiros, as louças e as lembranças do patriarca. Dona Ciloca, para espanto de todos, só reclamou pra si um único objeto, o quadro do tamarindo. Aquele tinha sido, por muito tempo, o centro do seu mundo. Quem tem o centro do mundo em suas mãos precisa de mais alguma coisa?


Observação: o quadro que ilustra esta crônica é uma obra do pintor uberabense Hélvio Fantato (1920 - 1997), que aqui foi usado como mera fonte de inspiração literária, livre de qualquer relação com pessoas "reais"(pois somos todos uma grande ficção!).

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Faz tempo...




 Renato Muniz Barretto de Carvalho

Depois do almoço, meus irmãos e eu resolvemos pescar lambaris no corguinho da fazenda. É que tínhamos comprado três varas de pesca com a mais avançada das tecnologias: de plástico. Nada contra as antigas, de bambu, que nós mesmos fazíamos, mas as de plástico, embora caras, poderiam significar um ganho em termos da quantidade de peixes a serem pescados. Por quê? Não sei, mas podia ser por causa da novidade, da tecnologia, da maior flexibilidade, ou da curiosidade por usarmos algo diferente, novo. Coisas de menino.

Pescar não era uma atividade tão simples quanto parecia. Pelo menos para nós três. Exigia planejamento, estudos, decisões várias. Uma delas era a escolha dos locais, ou seja, dos poços. Subíamos e descíamos o córrego várias vezes em busca de um bom lugar. Tinha de ter sombra, muitas árvores, pois assim ficávamos protegidos do sol. Tinha de ser um local de fácil acesso, pois não dava pra chegar num lugar difícil carregando lanche, varas, iscas, e ainda subir barrancos ou passar por arbustos cheios de espinhos. Não podia ter caixas de marimbondo perto, nem formigueiros. E tinha de ter bastante peixe, é claro!

Cada um de nós tinha seu próprio conjunto de pesca: um embornal – pra quem não sabe, é uma sacolinha feita à mão, com algum retalho que sobra de uma roupa, colcha ou toalha –, a varinha de pesca, a latinha de massa de tomate com as iscas, o lanche, outra sacola para colocar os peixes, um canivete, chapéu de palha e uma garrafinha d’água. Pra quê mais? Dava para passar uma tarde inteira na beira do córrego. Mais conversávamos do que pescávamos. O que falávamos? Não sei mais, perdeu-se no tempo. Devia ser bem interessante, pois sempre tínhamos assunto. Passávamos a tarde inteira na beira do córrego, até o entardecer.

Naquela tarde, a expectativa maior era por conta das varas novas. Cada um escolheu a sua, uma diferente da outra, de cores variadas. A minha dividia-se em duas metades, coisa chique. Minha mãe fez uma capa, com retalho, para cada um. As linhas, os anzóis, os pesos, ou chumbadas, e demais utensílios já tínhamos. Então, era como se tivéssemos a obrigação de ter sucesso na pescaria, isto é, pescar bastante. E resolvemos apostar para ver quem pescava mais.

Os lambaris eram fartos, mas astutos, e o truque, a habilidade maior, era não deixar que roubassem as pobrezinhas das minhocas penduradas no anzol. Bem mais da metade ficava com eles, mas nossa esperteza era superior. E cada um foi enchendo seu embornal. A cada peixinho, a pergunta: quantos vocês já têm?

No fim da tarde, cada um devia ter pescado em torno de uns vinte peixinhos, e resolvemos ir embora. O Sol já estava bem baixo, o horizonte vermelho, tempo de poeira, de pouca chuva, período da seca.

No caminho, meu irmão mais novo distraiu-se e esbarrou a vara nova numa caixa enorme de marimbondos. A dele não se partia ao meio, então a ponta estava “lá em cima”, esbarrando em tudo quanto é galho, num deles... Era marimbondo vindo de tudo quanto é canto. O susto foi grande, e cada um foi para um lado, deixando para trás a tralha de pesca e os peixes, tentando salvar a própria pele das doloridas ferroadas.

Na correria, meu irmão tropeçou e foi ao chão, com vara, os peixes e tudo mais. A varinha nova partiu-se em três pedações. Estava irremediavelmente perdida. Essas varas não se consertam. A expressão dele revelava, mais do que a dor por conta de umas três ferroadas, o desapontamento por conta da perda da vara nova.

Juntamos as coisas de cada um, o que sobrou, e caminhamos lentamente até a sede da fazenda, onde já nos aguardava a Dona Auristela, pronta para limpar e fritar os peixinhos. Na hora de entregar a ela, juntei todos num monte só e disse pra fritar o que desse. Fomos tomar banho e jantamos cansados, silenciosos.

Nunca soubemos quem tinha pescado mais. Pouco importava. Naquele dia mesmo, aposentamos as varas de plástico e voltamos às de bambu. Pelo menos eram mais jeitosas, mais fáceis de carregar e, se quebrassem, o prejuízo era menor.

Hoje, não pesco mais, mas ao limpar um armário de guardados, deparei-me com as duas varinhas de plástico que sobraram, quase quarenta anos depois. Não sei o que fazer com elas, vou perguntar aos meus irmãos.