terça-feira, 29 de setembro de 2020

A ignorância

 


A ignorância, crônica de Renato Muniz B. Carvalho. Publicada em 29/09/2020 no Jornal da Manhã (Uberaba, MG).

Outro dia, pesquisando bobagens na internet como quem folheia uma revista de variedades no consultório do dentista, vi uma pesquisa que me chamou a atenção. Era uma avaliação sobre as consequências, para a saúde humana, de se olhar durante muito tempo para a tela do computador ou do celular. Os resultados não eram nada bons. A conclusão dizia que esse hábito, cada vez mais comum e constante na sociedade atual, quase impossível de ser controlado, podia deixar as pessoas com algum grau de bobeira. Epa! Como assim?

 Calma! Como ocorre com a maioria dos problemas de saúde, algumas pessoas são mais afetadas do que outras. Talvez não seja o nosso caso. Pelo que entendi, a pesquisa concluiu que a bobeira, ou a ignorância, pode ter, entre outras causas, a exposição intensiva à tela brilhante de aparelhos eletrônicos. Isso explicaria muitas ocorrências na atualidade! É possível, por que não? As consequências são diversas e dependem de inúmeras variáveis. É bom esclarecer que os resultados não são definitivos e muita água vai passar por baixo da ponte até a ignorância findar.

 Vamos tentar entender. Há um fato inquestionável: os brasileiros permanecem um tempo excessivo junto aos seus celulares e computadores. À frente, atrás, do lado, muitos dormem com seus celulares... Isso provoca reações negativas, não tenham dúvidas! Uma delas, já bastante estudada, refere-se à ocorrência de distúrbios oculares, com possíveis danos à retina. Sabe-se, também, que o uso constante dos celulares é prejudicial para a saúde mental: irritação, raiva, arrogância, empáfia já foram comportamentos identificados. Agora isso: a ignorância, o comprometimento da inteligência, da lucidez, do discernimento.

 A boa notícia é que há esperanças. Nem tudo está perdido, mas é preciso considerar deixar o celular guardado ou, em casos extremos, desligado, esquecido numa gaveta. As pesquisas já revelaram que passar um tempo em praças, em jardins, em parques e à beira de um rio, pode reverter os danos. O ideal é que seja em silêncio. O problema é que esse tipo de equipamento, também chamado de área verde, diminui a cada dia, sem contar as sucessivas ameaças de privatização e corte de verbas. Que ignorância!

 Visitar museus, exposições de arte, ir ao cinema e ao teatro já foi comprovado como altamente benéfico à recuperação e à manutenção da saúde mental, bem como primordial para o combate à imbecilidade. Quando reabrirem, reserve logo seu ingresso!

 Um dado muito animador está relacionado à leitura de livros, de preferência romances, livros de contos, livros de poesia, — todos os gêneros são importantes. Melhor ainda é conversar sobre os livros lidos, estimular que outras pessoas leiam, frequentar bibliotecas e apoiar os escritores, os eventos relacionados aos livros e à produção literária.

 Ah, não se deve esperar muito para agir, senão os prejuízos se tornam irreversíveis. Dependendo da situação, pode virar uma pandemia. Seria terrível!

 
Revisão e leitura atenta de Hugo Maciel de Carvalho (se quiser saber mais sobre o trabalho dele, clique aqui).

sábado, 26 de setembro de 2020

Saudade

 

Saudade. Crônica de Renato Muniz B. Carvalho.  

 

 Como eu já passei dos sessenta anos, me permito ter saudade e conversar sobre isso. Quando jovem, não tinha tempo nem sabia o que era saudade, a não ser num aspecto teórico. Chegava a recusá-la. Sabia que era uma palavra especial, mas não entendia seu significado; faltavam-me sensibilidade e maturidade. Com o tempo, adquiri as tais saudades, no plural, contrariando alguns linguistas. Não foi fácil, não foi um percurso simples. Será que é um sentimento que se adquire depois de certa idade? Do que eu tenho saudade?

 

Saudade é sentimento ligado ao passado, remete a algo que não está presente, que se encontra distante. Por exemplo: a avó mora longe e você sente saudade do abraço dela. Ou seja, você tem vontade de receber um abraço dela ou de abraçá-la, mas isso não é possível no momento. Fica combinado: quando puder, dê um abraço na sua avó!

 

Minhas saudades referem-se a coisas e situações que não faço mais. Tenho saudade de ler um livro até cansar, mesmo que isso significasse varar a madrugada lendo até clarear o dia. Hoje, não dou conta, pois eu durmo, o livro cai no chão, adormeço com a luz acesa. Melhor começar a leitura mais cedo e parar antes do sono vir. Nada contra quem faz, apenas diminuí minha ansiedade com leituras empolgantes. Continuo devorando bons livros, boas histórias, só mudei o horário.

 

Tenho saudade de algumas músicas, mas essa saudade refere-se principalmente ao contexto em que eu as ouvia. Música latino-americana, por exemplo. Nós nos reuníamos, entre amigos, para escutar, íamos a shows, comprávamos discos juntos. Será que a saudade que sinto é das músicas ou das pessoas? Das duas coisas, com certeza! Ouvir músicas de artistas como Violeta Parra, Victor Jara, Mercedes Sosa e outros nos dava o sentido de pertencimento a uma região, a uma cultura, a uma história. O tempo e as circunstâncias nos dividiram, nos empurraram cada um para seu canto; dá até pra desconfiar que foi intencional, que foi um golpe na nossa latinidade. Será?

 

Muita gente vai torcer o nariz, vai me julgar bronco, mas eu sinto saudade de beber vinho porcaria, de preferência de garrafão, desses de cinco litros. Eu não vou fazer isso, só sinto saudade. Era muito bom, também pelas companhias, mas gostoso era o sentido de liberdade, de autonomia e entrada no mundo adulto. Sensação semelhante a se empanturrar de pizza em rodízios, com amigos. Comer até não aguentar mais!

 

E viajar com uma mochila nas costas? Sem saber aonde íamos, sem passagens compradas, sem saber se teríamos onde dormir, não dormir, pegar carona, andar nas carrocerias de caminhões, andar em ônibus velhos sem nos importarmos com conforto…

 

A pior saudade é a saudade do futuro, a saudade de um amanhã que deveríamos ter construído solidário, inclusivo, justo e que não veio. Pois é…

 

  Crônica publicada no Jornal da Manhã, em 24 de setembro de 2020. Revisão e leitura atenta de Hugo Maciel de Carvalho (se quiser saber mais sobre o trabalho dele, clique aqui).

 

terça-feira, 15 de setembro de 2020

Que medo!

Que medo! Crônica de Renato Muniz B. Carvalho.  

Você tem medo de quê? Medo de barata? Medo de cobra? Ou medo do cobrador? Medo do escuro? Medo de altura? Medo de vacina? Medo de livros? Um medo inconfessável? Cá entre nós, existem medos estranhíssimos, não é? Tem gente que tem medo de bicho-papão! Eu me refiro a gente grande, porque criança merece desconto.

Bicho-papão é o quê? É bicho, é gente, é o homem do saco? É o homem da mala? O assunto é o medo, medos fascinantes, medos bestas, de todo tipo. Bicho-papão é um monstro que come criancinhas? E a Cuca? Aquela Cuca que vem te pegar se você não dormir… Bicho-papão cospe fogo? Ele vai te devorar? Que medo!

Alguns têm medo do monstro que mora embaixo da cama. Não vão dormir enquanto não fiscalizam direitinho se não tem nada ali. Outros acordam várias vezes à noite para verificar. Eu conheci um camarada que dormia com uma lanterna na mesinha de cabeceira só para olhar debaixo da cama. Bem, nesse capítulo tem gente que dorme com coisas piores…

Reconheça-se que uns morrem de medo do castigo divino. Devem ter alguma culpa escondida. Alguns ficam apavorados com cara feia: “não vou lá, pois ele fez cara feia pra mim”. Cara feia espanta, intimida. Os valentes dizem: “não tenho medo de cara feia!” Os pais, quando estão zangados com os filhos, fazem cara feia. A namorada, quando desconfia que está sendo passada pra trás, faz cara feia. A cara feia é pedagógica, ensina, normatiza. Falando em educação, há estudantes que têm medo da prova, medo de falar em público, medo de errar… Vencer o medo é uma etapa importante do crescimento pessoal, do amadurecimento da criança e do adolescente.

Ter medo significa manter distância de alguma coisa, que pode ser real ou imaginária. Medo de uma situação, de uma pessoa, de um objeto, de um animal. O medo gera ansiedade, provoca estresse, pode ser irracional ou motivado por uma ocorrência concreta. O medo está relacionado ao instinto de sobrevivência. O problema é saber dosar o medo, senão vira trauma ou se banaliza e aí não faz mais efeito.

Eu não sou psicólogo pra traçar perfis, para dissertar cientificamente sobre o tema, mas acho curiosos os comportamentos relacionados a esses sentimentos de pânico e temor. Tenho dó de quem tem medo sem saber por que sente medo. Há medos que são incutidos na cabeça dos simplórios e dos ingênuos, dos que repetem bobagens sem refletir; servem para dominar, explorar, tirar vantagens. O medo mobiliza e imobiliza. Você tem coragem de enfrentar o medo?

Um tipo de medo tem me preocupado nos últimos tempos. É o medo pernicioso, com finalidade política, medo escuso, criado para apavorar incautos; esse medo indica uma atitude repugnante e covarde, desnuda a baixeza de quem produz e difunde. Precisa falar mais?

 

Crônica publicada no Jornal da Manhã, em 15 de setembro de 2020. Revisão e leitura atenta de Hugo Maciel de Carvalho (se quiser saber mais sobre o trabalho dele, clique aqui).