terça-feira, 3 de maio de 2022

O que estamos perdendo

Renato Muniz B. Carvalho

 A menina — cerca de oito anos, pés descalços, blusa de bolinhas — catava pedrinhas coloridas e colocava numa latinha. Analisava cuidadosamente cada uma, descartava a maioria, guardava as que ela julgava mais bonitas, mais atraentes. Outras crianças brincavam no terreno baldio, corriam atrás de uma bola na área de terra solta, levantando poeira. Um dia, o terreno teve cerca, teve muro, restaram os testemunhos dos limites estabelecidos, dos indicadores de propriedade particular, do “não entre”, do “proibido jogar lixo” — avisos inúteis.

 Como que isolada do mundo, ela andava distraída, olhos perdidos no horizonte. Silenciosa, vez ou outra se abaixava para avaliar uma pedrinha. Quando encontrava uma de seu interesse, esfregava na roupa para limpar, lustrar, ressaltar o brilho. O destino da pedrinha estava em suas mãos: guardava na latinha ou descartava.

 As crianças deveriam estar na escola, abrigadas, protegidas, brincando em local seguro. No mínimo, deveriam estar num parque ou numa praça, com quadras, equipamentos adequados, árvores, flores e gramados. O discurso cínico grita pelos quatro cantos que a educação das crianças é o mais importante, mas não há espaços de liberdade e de aprendizagem, apoio pedagógico, possibilidades de encontros com a arte, com a literatura e a diversidade cultural. O discurso hipócrita é autoritário e excludente.

 A realidade denuncia o descaso: não há livros suficientes para todas as crianças, não há políticas de estímulo à leitura, não há verbas para aquisição de bibliografia e reforma ou construção de bibliotecas. Não há políticas públicas de incentivo à carreira docente. Predominam retrocessos e desvalorização da educação democrática e libertadora. Faltam verbas para a pesquisa. Não há políticas efetivas de combate ao racismo, ao machismo e à cultura da violência. “Armai-vos uns aos outros” virou o novo mandamento. Dissimulações, falsidades e interesses escusos caracterizam as práticas vigentes.

 As crianças não estão bem alimentadas, a água não é de boa qualidade, contaminada por venenos e metais pesados. Aceitam-se alimentos ultraprocessados na merenda e não há preocupação com a presença de agrotóxicos, aliás, “agrotóxico” virou palavra proibida, o termo a ser usado é “produto fitossanitário” ou “defensivo” — mas deveria ser considerado o que realmente é: veneno. O lixo acumula-se nas beiradas, em sacolas rasgadas, remexidas, garimpadas por persistentes recolhedoras e recolhedores de material reciclável. Restos de uma sociedade que não sabe o que fazer com os resíduos, com sobras reaproveitáveis, que são levados para deposição em aterros e remunerados por quantidade, ou seja, “quanto mais lixo, melhor”.

 A menina encheu a latinha. Pensativa, olhou o resultado do seu esforço, do tempo passado longe das demais crianças e das brincadeiras. Um adulto apareceu e gritou qualquer coisa ininteligível: hora de voltar para casa. A menina deixou cair a latinha no chão e foi embora. O presente e o futuro, deixados para trás, pouco lhe diziam respeito.


Publicada no Jornal da Manhã: https://jmonline.com.br/novo/?paginas/articulistas,67

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