Era uma vez...
domingo, 25 de junho de 2023
segunda-feira, 21 de novembro de 2022
Sobre o empréstimo de livros
Crônica de Renato Muniz B. Carvalho
Se há uma coisa polêmica sobre a
face da Terra — depois das preferências políticas e da escalação da seleção
brasileira — é o empréstimo de livros. O ser humano empresta tudo o que tem e, creio,
nesse ponto, os brasileiros são imbatíveis. Emprestamos roupa, carro, dinheiro,
uma xícara de açúcar, meio quilo de farinha de trigo, ovos, pó de café e por aí
afora. O que é um livro neste universo de coisas emprestadas!
Quando o item, cedido gratuitamente
e de forma temporária, retorna, o agradecimento é um capítulo à parte. É claro que
fica mais gostoso quando vem acompanhado de uma fatia de bolo e, talvez, de um convite
para tomar um cafezinho mais tarde. Nessas ocasiões, pode-se colocar a conversa
em dia, falar bem ou mal dos outros, reclamar de uma dorzinha no braço e trocar
uma receita deliciosa de torta recheada de palmito. Hum!
Ao longo da vida, já vi gente emprestando
sapato, casaco, óculos, ferramentas, caneta, celular… Dizem, mas eu não posso confirmar
a fonte, que uns e outros costumam emprestar marido, mulher e até cachorros. Já
pensou! Emprestar o bichinho de estimação, o xodó da família, é um ato extremo de
desprendimento, mas não me parece verossímil. Em todo caso, como tudo nesse país
se empresta, vamos admitir e abandonar o exemplo para não criar azedumes.
Dinheiro, quando as garantias são
boas e as condições bem-acertadas entre as partes, não costuma acarretar aborrecimentos.
Além disso, é batata, isto é, matemática: basta combinar os juros e a data de restituição
que ninguém pode reclamar, não é? Existem alguns dissabores no caso de recusa em
pagar, mas, se fosse ruim, bancos não teriam tanto lucro.
Complicado mesmo é emprestar livros.
Nunca se sabe se o exemplar vai retornar e em que estado. Tem livro que vai longe,
no sentido físico da coisa, de mão em mão é capaz de dar a volta ao mundo e o dono
nem ficar sabendo. O risco é não voltar nunca mais.
Pedir um livro emprestado é operação
tão delicada quanto pedir alguém em casamento. Se os compromissos não forem honrados,
amizades podem ser desfeitas, mágoas viram depressão, crises são desencadeadas.
Sempre tive muitas dúvidas sobre
o assunto. Emprestar ou não emprestar? Meu avô tinha um quadrinho na biblioteca
dele no qual estava escrito: “Livro emprestado, perdido, estropiado”. Por um tempo,
mantive uma caderneta, dessas que existiam nas antigas mercearias, onde eu anotava
o nome do comodatário, o título do livro, a data de saída e de retorno. Quando vi
que a coluna do regresso ficava em branco e muitos inadimplentes me olhavam amuados,
desisti de anotar. Joguei a caderneta fora. Satisfazia-me imaginar que, pelo menos,
alguém estaria lendo um livro. Nos tempos atuais, é melhor aumentar a quantidade
de leitores.
Crônica publicada no Jornal da Manhã: https://jmonline.com.br/novo/?paginas/articulistas,67
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sexta-feira, 14 de outubro de 2022
Dia do escritor
terça-feira, 11 de outubro de 2022
Praias: era só o que faltava
Renato Muniz B. Carvalho
O Brasil é um país abençoado. Tem
florestas incríveis, tem montanhas, cânions, orquídeas belíssimas, biodiversidade,
cachoeiras, um povo lindo e acolhedor. O que mais? Tem… Ah, tem praias, muitas praias!
Tem um litoral com cerca de oito mil quilômetros de extensão, com mais de duas mil
praias, cada uma mais bonita que a outra, algumas são famosas no mundo inteiro e
recebem milhares de turistas o ano todo. Praias extensas, praias escondidas, praias
paradisíacas, praias de areia fina, boas para caminhar, para apreciar a paisagem.
Se tem algo realmente democrático no país, além dos botecos, são as praias. Quando
se juntam botecos e praias, a felicidade está completa.
Desculpem a ironia, mas observem a seguir um exemplo do que alguns consideram boa gestão. Vendidas as praias, deve-se fazer um imenso alambrado, ok? Depois de cercadas, limitar o acesso, construir guaritas, cobrar ingressos, rever as concessões dos quiosques, estabelecer regras, definir quais as vestes permitidas, qual o tempo de uso, as práticas esportivas autorizadas, determinar o tamanho e formato dos guarda-sóis, a metragem permitida para cada família na faixa de areia, exigir licença para uso pedagógico dos castelinhos de areia, limites para se cobrir de areia etc. As cadeiras devem ser alugadas. Ah, não pode mais entrar com cerveja, bolacha ou biscoito nem sorvete. Só faltava essa!
Muda mundo
Renato Muniz B. Carvalho
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terça-feira, 7 de junho de 2022
Presta atenção!
Renato Muniz B. Carvalho
Tem uma coisa complicada no mundo:
prestar atenção. A minha vida inteira tentaram me ensinar a prestar atenção: no
quadro, ao atravessar a rua, na carteira que sempre levo no bolso de trás, no ponto
certo para descer do ônibus, nas entrelinhas do discurso político, na pessoa sentada
na cadeira ao lado e na estrada afora. Presta atenção! Atenção às coisas do mundo,
aos sinais do clima, às nuvens, à chuva, aos indícios de que os ventos podem mudar
de direção, aos acenos dos amigos, aos olhares enigmáticos.
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quarta-feira, 1 de junho de 2022
Esperar é uma arte
Renato Muniz B. Carvalho
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terça-feira, 24 de maio de 2022
O sapato abandonado
Renato Muniz B. Carvalho
Dia desses, ao passar por uma rua
da cidade, vi um sapato abandonado. Acreditem: a imagem era desoladora. O sapato,
um único pé, estava virado de lado, sujo, desgastado pelo uso e sem o salto. Era
um sapato feminino, com detalhes dourados, tamanho 34 ou 36, não dava para saber
ao certo.
Não sei, prefiro não ser trágico
nem pessimista, mas pensar positivamente. Por que não podemos abandonar um sapato
no meio da rua? Alguma lei proíbe? Claro, tem a questão da poluição, da sujeira
acumulada nos logradouros públicos. Se não há leis que impedem sapatos de serem
largados ao léu em vias públicas, melhor descartá-los nas lixeiras, melhor do que
um simples abandono, uma desistência.
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quarta-feira, 11 de maio de 2022
A vida por um fio
Renato Muniz B. Carvalho
Para alguém, como
eu, que passou parte da infância sem ter telefone em casa, me espanta o desespero
dos que, súbito, constatam a ausência de sinal de celular. A cara de susto e a angústia
da pessoa “descelularizada” são dignas de pesquisa antropológica — e de pena. Para
os mais agitados, é como perder uma perna, um braço, a cabeça. O que pensar disso?
Não é difícil, hoje, constatar que certos indivíduos vivem em função do celular e das redes sociais. Sua existência está atrelada a isso, caso contrário, desaparecem, socialmente falando. O celular virou personagem, virou ícone, virou mercadoria com notória elegância e apelo sensual. Mas o problema, para os obcecados, é que celulares são efêmeros, duram pouco, logo ficam desatualizados. Pobres aparelhos ultrapassados! Quando atingem o limite da validade, perdem o requinte, o poder e a modernidade. Os sedutores pedacinhos de metal, que até pareciam inteligentes, viram pó, vão para a reciclagem ou ficam esquecidos eternamente no fundo de uma gaveta. Quem diria! A solução é correr para comprar outro.
Desde quando nos tornamos “celular dependentes”? Ontem? Décadas atrás? Falando nisso, qual a “idade” das redes sociais? Uma busca rápida na internet nos informa que a mais conhecida delas surgiu nos anos 2000. Acabou se tornando popular, capaz de enviar mensagens com eficiência, incluindo textos, áudios e vídeos, além das figurinhas. Um caso de sucesso. Eu acho cedo para respostas definitivas. Uma finada rede social, que balançou o coração da moçada no início do século XXI, durou dez anos e desapareceu, alguém se lembra? Quantas mais surgirão e desaparecerão num piscar de tela? Fazem parte do novo mundo, em constante transformação, ao qual estão atentos políticos e empresários tentando aumentar seus lucros e dividendos.
A popularidade dos celulares e das redes sociais não se sustentaria sem os grupos, sem a ligação umbilical que se forma entre “amigos”, “seguidores” e “seguidos”. Grupos são formados a toda hora, existem em função de conveniências diversas: discutir e fazer política, debater arte e literatura, receber orientações de saúde, aleitamento materno etc., etc. Existem grupos de empresas, de órgãos públicos, de associações, de indivíduos que se juntam a partir de sabe-se lá o quê. Quem forma os grupos? Qual a duração de um grupo? Desconheço pesquisas sobre o assunto. As redes sociais ainda são muito recentes, mal ultrapassaram o limite de duas ou três décadas.
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terça-feira, 3 de maio de 2022
O que estamos perdendo
Renato Muniz B. Carvalho
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terça-feira, 26 de abril de 2022
A solidão
Renato Muniz B. Carvalho
Imaginem duas situações, ambas num domingo à tarde, dia ocioso, ar parado, um calor dos diabos, a chuva ameaça, mas não vem, nada para assistir na televisão, nada que justifique sair de casa ou tomar as ruas para fazer a revolução. Um daqueles dias em que temos a sensação de que não vamos fazer nada que preste. Ou melhor: não faremos nada do que é preciso fazer e muito menos o que gostaríamos de fazer. Que tristeza!
Num dia assim, o tempo não passa, a solidão se agrava e se torna um problema social. Não sei se para entendê-la é suficiente descrever o comportamento dos dois indivíduos hipotéticos que ilustram este texto. Mas vamos tentar.
Um deles está na porta de casa, de calção, camiseta, copo de cerveja numa mão e celular na outra. O sujeito parece inquieto, sem rumo, entra e sai do interior da casa, provavelmente para manter o copo sempre cheio. Talvez procure alguém, uma companhia, um cachorrinho, sabe-se lá! Não confundir com depressão, ainda que uma sensação de desamparo não esteja descartada.
Vamos às particularidades do fato: após o almoço, o sujeito acima dedicou pelo menos duas horas do seu precioso tempo para limpar o carro. Puxou a mangueira d’água para fora, municiou-se de bucha e sabão, ligou o som em alto volume e mãos à obra. Visto de longe, parecia que conversava com o carro, fazia-lhe carinho. Terminado o serviço, puxou um banquinho e por ali continuou, com o copo na mão. Até aí, temos um sujeito zeloso de seu automóvel, o que incomodava o outro era o som alto da música repetitiva: antes, durante e após a lavada. E daí se isso importunava os outros! E daí? O zeloso e solitário lavador compartilhava seu som com mais gente, talvez o bairro inteiro, o país e o mundo todo se pudesse — e se tivesse caixas de som mais potentes.
E o outro? Trata-se de um bisbilhoteiro, ou melhor, o outro era eu, querendo descansar um pouco no que me restava do domingo. Se fossem caracterizar a solidão que me assolava, poderiam dizer que eu apresentava desconexão, não conseguia articular o pensamento, construir frases inteligíveis, desenvolver alguma ideia coerente e edificante para fazer alguma coisa que prestasse. Confesso que estava confuso: quem aguenta um barulho desses? Devia chamar a polícia ou jogar pedra? Deveria lavar louça ou assistir a um filme? Dançar um tango ou um samba? Dormir nem pensar. Querem saber? Para não perder a dignidade e a decência, fui escrever uma crônica. Cá entre nós, o mundo está muito barulhento.
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sexta-feira, 22 de abril de 2022
O córrego do segredo
Renato Muniz B. Carvalho
Eu gosto de viajar, acho que já contei para vocês. Viajo por diversão, por necessidade, para visitar parentes, a trabalho, para estudos, por vários motivos. Vou à procura de novos ares, outros pontos de vista, de água limpa, de conhecimento, de estímulos para os olhos e para o cérebro. Já li em algum lugar que viajar faz bem à saúde, só não me perguntem a fonte. Quanto ao “fazer bem”, as viagens nos trazem alívio, amenizam as preocupações diárias, nos colocam desafios de mobilidade, de trânsito, de segurança, aguçam a curiosidade sobre paisagens, comidas, sons, cores e a interação com estranhos. Acho que só isso basta para você sair correndo e arrumar suas malas, nem que seja para ir até a cidade vizinha passar o fim de semana. Se me permite uma sugestão, coloque o item “viagem” como prioritário na sua vida.
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quarta-feira, 13 de abril de 2022
O lugar da crônica
Renato Muniz B. Carvalho
A crônica é uma tradição brasileira.
O país tem ótimos cronistas e um histórico notável em relação ao simpático texto,
presente na maioria dos jornais e revistas. Digamos que elas têm um lugar cativo
na literatura nacional. Sou suspeito para falar do assunto, pois, além de gostar
bastante delas, me considero um aprendiz no gênero.
Um autêntico bilhete, do tipo: “Fui comprar pão e já volto” ou “Fulana ligou pra você”, cabe num mero pedaço de papel. No máximo, numa folha daqueles bloquinhos que serviam para anotar a lista de compras da minha tia: “polvilho”, açúcar”, “sabonete” etc. Ela anotava com sua letra miudinha e aguardava alguém ir ao armazém do Seu Waldemar. Depois, rasgava, o papelzinho tinha cumprido sua missão.
Jornais, livros e revistas eram mais solenes. À tarde, quando chegavam do trabalho, meus pais sentavam-se na varanda. Gostavam de ler os jornais e de comentar as notícias. Do chão, brincando com meus carrinhos numa cidade imaginária, eu, que ainda não sabia ler, observava os dois. Prestava atenção e às vezes me levantava curioso para olhar o jornal. Tentava decifrar as razões de uma risada ou de um comentário aflito. Aquilo me deixou familiarizado com os jornais antes de reconhecer as palavras e descobrir os segredos da montagem das frases.
Com o tempo, aprendi onde estavam as notícias internacionais, o espaço dedicado aos anúncios, o cantinho das palavras cruzadas, dos quadrinhos e qual era o lugar da crônica. Quando entrei na escola, eu já conhecia o mundo da escrita, dos textos jornalísticos e da literatura.
Ao me tornar um leitor mais experiente, a sensação era a mesma de entrar no armazém do Seu Waldemar e localizar a prateleira onde estava o polvilho da lista da minha tia. Cada coisa em seu lugar, até o dia em que passou um redemoinho e espalhou as páginas dos jornais, misturando a análise do futebol com o avanço das tropas inimigas, a adorável crônica do Drummond com os sonhos da mulher mais elegante do ano segundo a coluna social.
Como num pé de vento, tudo aconteceu muito rápido, inesperado. De repente, minha tia foi embora, para sempre, e ninguém mais usou o bloquinho para anotar a lista de compras. Ao voltar do trabalho, solitários, passamos antes no supermercado e compramos comida pronta. Sem muita opção, passamos a ler as notícias pelo celular, em silêncio. Na tela brilhante e sedutora, parece que os assuntos estão fora de lugar. Eu ainda não organizei meu mapa mental para encontrar todas as informações e os textos que me interessam. A sequência das páginas me parece aleatória, há uma lógica que ainda não domino. Cadê a crônica? Só ela para possibilitar meu reencontro com o mundo e comigo mesmo.
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terça-feira, 5 de abril de 2022
Arroz com feijão
Renato Muniz B. Carvalho
O que fazia a comida da minha adolescência tão apetitosa? Apesar da distância no tempo, penso em diversos fatores: a preparação, os temperos, a qualidade dos ingredientes e a fome da turma. Poucas coisas vinham de fora: sal, açúcar, macarrão, cebola, alho, canela e cravo, conforme me recordo, eram os produtos trazidos da cidade. Arroz, feijão, milho, mandioca, verduras, frutas, ovos, banha e carnes eram produzidos na fazenda. Fundamentais eram a dedicação e o carinho da minha avó paterna, a dona da cozinha, das panelas e dos temperos. Numa sociedade machista, meu avô era o dono do tempo: vinha dele a definição dos horários. Hoje, engrenagens geopolíticas mais sofisticadas decidem turnos, ingredientes e processos, de preferência com pressa — o fast food não surgiu por acaso.
Meu avô cuidava da produção, do preparo da terra, da colheita e da comercialização. Até os anos 1960, ele guardava parte das sementes para a próxima safra. Num espaço curto de tempo, tudo mudou. Para começar, a decisão de desativar o moinho, onde se processava o milho, base da alimentação de pessoas e animais. Lembro-me das duas pedras imensas, solenes e pesadas, que trituravam os grãos transformando-os em fubá, quirela etc. Eram movidas pela força da água do córrego que passava no fundo do quintal. Eram admiráveis as pedras mó e o mecanismo que as fazia girar. Eu garanto: tinha algo de mágico.
Um dia, a partir dos anos 1970, já não se guardavam mais as sementes, elas seriam compradas a cada safra. Se isso, num primeiro instante, acarretou aumento de produtividade, também representou acréscimo no consumo de adubos e venenos, aumentando a dependência da “cidade”. Minha avó não gostou da novidade, mas o que ela podia fazer? Engoliu em seco e, depois, foi ela própria engolida pelas engrenagens do sistema. Em 1970, ela e meu avô morreram num trágico acidente de automóvel. Acho que eles não calcularam a velocidade do caminhão que passou por cima dos dois. Era a vida que se acelerava, trazendo novos costumes e ritmos; a comida de comer transformava-se em comida de vender.
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terça-feira, 29 de março de 2022
A taubinha
Renato Muniz B. Carvalho
Ah, as palavras! Tão simples e tão
complexas, dependendo do que fazemos com elas, de quem as utiliza. O que fazer?
Endeusar, engessar, ignorar, modificar, estudar… Eu prefiro brincar, prefiro rir,
sonhar, descobrir novos significados e usos. Prefiro guardá-las na algibeira, ou
será no alforje, no embornal, no bolso? Quando precisar de uma, eu pego e escrevo,
falo, grito, sussurro.
Será que alguém ainda sabe o que é um embornal? Melhor guardar na pochete. Pochete? Por acaso, os lexicógrafos já registraram esta palavra? Meu computador não reconhece. Se não está registrada, não pode? Mas está lá, nos dicionários: substantivo feminino, veio do francês “pochette”, perdeu um “t” e foi aportuguesada. Hoje, está nas cinturas, servindo para guardar dinheiro, documentos, bugigangas, além dos meus medos, que não os quero esparramados por aí. Alguns a consideram brega, fora de moda, mas eu gosto e sigo usando, o objeto e a palavra.
Na minha infância, eu gostava de prestar atenção nas conversas dos adultos, com o consentimento deles, é claro! Eu queria aprender muitas coisas, saber das novidades do mundo, conhecer palavras diferentes, até inventar algumas. Na fazenda do meu avô, convivíamos com uma realidade diferente daquela com a qual estávamos acostumados na cidade. Outra cultura, outros hábitos e palavras desconhecidas para mim. O que me deixava admirado eram as pronúncias, as gírias, os sons. Eu ficava curioso com os sotaques, com a articulação do texto, com a espontaneidade da fala.
Jovem inexperiente, abarrotado de ignorâncias, principiante quanto ao vocabulário e inábil com os códigos, eu enxergava erros, imperfeições, falhas. Mas o equivocado ali era eu. Mais tarde, reconheci os preconceitos e iniciei um longo caminho de superação. Quanto mais eu tentava compreender a multiplicidade da linguagem, mais eu ficava maravilhado, mais eu percebia sua riqueza. Um mundo fantástico. Depois, veio o tempo das leituras, das descobertas literárias, da fantasia e da vontade de mudar o mundo.
Tem coisas que a gente pega depressa, outras demandam mais tempo. Adolescentes são afobados, quase tudo relacionado a essa fase é urgente, é cachoeira, e não remanso. O exercício da paciência deveria fazer parte do currículo escolar. Com impaciência, passamos por cima de muita coisa, pulamos etapas, escalamos a montanha sem ter aproveitado a planície. Nesse processo, muitas palavras ficam pra trás, sentimentos são menosprezados, perdem-se conceitos, ganha a intolerância. Eu segui incorporando palavras.
Minha tristeza foi quando, um dia, encontrei uma taubinha — para quem não sabe: “tábua pequena” —, e não pude usar. De uso muito comum no meio rural e presente na música popular brasileira, uma simpatia. Mas não constava dos dicionários. Logo apareceu alguém que desaprovou, até topei com um termo incomum: metátese. Negaram, assim como hoje pretendem impedir expressões capazes de incorporar a diversidade humana, promover maior inclusão. Com autoritarismo, querem congelar algo que não se controla: a língua. Será medo do futuro?
Adoniram Barbosa: Saudosa Maloca (1951): “Cada táuba que caia/Doía no coração”; e Tiro ao Álvaro (1960): “De tanto leva frechada do teu olhar/Meu peito até parece sabe o quê?/Táubua de tiro ao Álvaro...” Esta música, escrita em parceria com Osvaldo Molles, foi censurada pela ditadura militar “por conter uma letra humorística com palavras propositadamente incorretas”.
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terça-feira, 15 de março de 2022
Um diálogo possível
Renato Muniz B. Carvalho
Penso que, se alguém deseja cruzar as fronteiras da comunicação entre humanos e animais, uma das primeiras providências deve ser saber o nome do interlocutor, sejam papagaios, cãozinhos, bovinos, porquinhos, galinhas etc. Cavalos sempre tiveram personalidade forte. Um cavalo que me vem à memória é o famoso Rocinante, a magricela montaria de Dom Quixote, personagem do livro de Miguel de Cervantes. O cavalo do meu avô chamava-se Gavião. Qual cavalo vem à sua memória: Pégaso, Pé de Pano, Ventania? Uma vez nomeados e identificados, os bichos adquirem personalidade e espera-se deles que compreendam as ordens humanas ou, ao menos, deem algum retorno.
Na fazenda do meu avô, eu gostava de observar as várias “linguagens”. Eu gostava de ouvir o “ti ti ti”, da Dona Auxiliadora ao chamar as galinhas, o “cocho, cocho, cocho” do Bastiãozinho quando ele chamava os porcos no mangueiro. Os cachorros recebiam maior atenção e vocabulário diferenciado: “pega!”, “deita!”, “quieto!”, além de conversas mais elaboradas.
Atenção inconfundível também recebia a vacada leiteira. Elas tinham nomes e orientações específicas relacionadas a cada momento da vida: prenhez, parição, ordenha, desmama etc. Eu gostava de vê-las chegando ao curral, respondendo ao chamado: “vem, vem, vem…”.
Onomatopeias à parte, uma falsa ideia de superioridade leva muita gente boa a crer que os animais os compreendem e, portanto, os obedecem. Esperam respostas no mesmo nível de complexidade — o que para alguns humanos não é difícil —; respostas às ordens e aos comandos, na maior parte dos casos. Eis a origem de tanta incompreensão, de tantas agressões, distorções e desentendimentos. Ah, o desprezo pela comunicação! Não me refiro à correção gramatical, isso é outra coisa.
Eu presenciei, durante as férias passadas na fazenda, inúmeras tentativas frustradas de conversação. O lado mais triste disso tudo é que a aparente incapacidade animal de entender ordens era punida com pauladas, chicotadas e coisas piores. Inadmissível! Sempre existiam os mais pacientes e condescendentes — neste caso, refiro-me aos humanos, que tinham um carinho especial com as criações, e não ficavam irritados se não havia retorno. Reconheça-se, eram os que recebiam alguma resposta, os que sabiam ouvir o que tinham a dizer bezerros, cães e outros animais, fosse por vocalização, olhar ou expressão corporal. Muita gente não tem ideia da força de um olhar. Nesses momentos, é inútil ter pressa ou agir com violência, atitude comum da maioria, infelizmente. O diálogo, para humanos e animais, se há boa vontade, é possível. E imprescindível!
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quarta-feira, 9 de março de 2022
Minhas férias
Renato Muniz B. Carvalho
Penso que nenhum estudante do ensino
fundamental escapou do título acima nas redações obrigatórias de início do ano escolar.
Provavelmente, uma boa parte das narrativas relacionava-se às férias passadas em
fazendas de parentes ou amigos, sobretudo no interior, onde a ligação com o meio
rural era significativa.
Para ter acesso ao Relatório completo, clicar aqui: https://www.unep.org/pt-br/resources/fronteiras-2022-barulho-chamas-e-descompasso
Publicada no Jornal da Manhã:
https://jmonline.com.br/novo/?paginas/articulistas,675
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terça-feira, 22 de fevereiro de 2022
Desobediência
Renato
Muniz B. Carvalho
Tomávamos banho todo dia; as refeições eram feitas à mesa da sala, com os mais velhos; tínhamos nossas responsabilidades em relação aos cômodos onde dormíamos e brincávamos. Os horários definidos para comer, estudar, dormir e brincar eram respeitados. Existiam normas, mas não eram impostas, eram negociadas. Não era perfeito, nem tinha a exatidão de um relógio, mas funcionava. Isso afetava os relacionamentos com as outras pessoas, pois muita gente nos tachava de, no mínimo, excêntricos, mesmo parentes próximos. Alguns nos enxergavam como um bando de bagunçados. Nunca quebrávamos as normas? Quase sempre! Ora, o que é a aprendizagem senão avançar além dos limites? Éramos uma família comum, com seus problemas, fragilidades e dificuldades, mas a maioria das questões polêmicas era resolvida na base da conversa: Posso sair hoje à noite? Que horas devo voltar? Posso dormir na casa do meu colega? Posso viajar com meu tio? Não quero ir à escola hoje. Não estou com fome. Posso ficar pelado no meio da casa? Tentativas, experimentos e verificação dos limites eram relevantes. Em outras palavras: aprendizagem para a vida, com seus inevitáveis erros e acertos. Não foi fácil! As imposições da época exigiam: “regras existem e não devem ser quebradas”. O comportamento padrão e patriarcal reforçou, em muitas pessoas, atitudes amarguradas, desconfiadas, acanhadas, conservadoras. É triste constatar isso.
Passar as férias na fazenda do meu avô ampliava a sensação de liberdade. Tínhamos espaço à disposição, contato com árvores, animais, rios, cachoeiras e pessoas diferentes, que ali trabalhavam ou que por ali passavam. A orientação era respeitar e entender as diferenças. Não maltratar o cavalo que nos carregava nos passeios, não estragar troncos nem quebrar os galhos das árvores, não causar danos às plantações, seja na hortinha de couve ou nas extensas lavouras de milho e arroz, e jamais discriminar, humilhar ou debochar das pessoas.
Éramos livres e abertos para indagações e questionamentos diversos. Sabíamos que não viriam safanões ou cara feia por desejar saber como funcionava o mundo, embora soubéssemos que certas perguntas eram inconvenientes para uns, enquanto outras eram restritas ao mundo adulto. Meus pais rebolavam para se desviar das armadilhas pedagógicas quando o assunto era controverso. Política, sexo e religião eram os assuntos mais delicados, mas nunca escamoteados.
De modo geral, salvou-se uma melhor compreensão do mundo e de suas contradições. O melhor de tudo: uma educação não repressora apresenta melhores resultados, mas muita gente não compreende e não está disposta a abrir mão de seu micropoder. É pena!
Publicada no Jornal da Manhã: https://jmonline.com.br/novo/?paginas/articulistas,675
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terça-feira, 15 de fevereiro de 2022
Viva o progresso!
Renato Muniz B. Carvalho
Os deslocamentos sempre representaram um quebra-cabeça para a espécie humana. Apesar disso, correr atrás das grandes manadas, realizar travessias marítimas intermináveis, enfrentar filas de restaurante no fim de semana tem algo de épico. Ah, como é bom poder ir aonde queremos, cruzar fronteiras e atravessar desertos! Durante muito tempo, para realizar essas façanhas só dependíamos de combustível barato, malha rodoviária razoável e uma boa rede de assistência mecânica. O sonho se tornou realidade, pelo menos para alguns. Os outros continuaram dependendo de ônibus ou trens lotados.
Logo que surgiram, os automóveis tornaram-se merecedores de regalias, dentre elas cômodos exclusivos, também chamados de garagem, vaga ou estacionamento. Prédios antigos e construções históricas foram derrubados para dar lugar aos carros, áreas verdes ficaram cada vez mais escassas. Aos espaços específicos e delimitados seguiram-se regras gerais de circulação, controle de velocidade, sinais, semáforos, linhas, signos, placas etc. Uma complexidade de dar inveja aos burocratas. Até gatos e cachorros respeitam o trânsito: já viram cachorros atravessando uma rua movimentada? A atenção com que atravessam é impressionante, alguns inclusive usam as faixas de pedestre, comportamento que muitos humanos têm dificuldade de executar.
Com o passar do tempo, os automóveis se tornaram cada vez mais inteligentes. Dos modelos que estacionavam sozinhos aos que ganharam plena autonomia, foi um passo ou, melhor dizendo, uma volta do pneu. Não sei bem quando foi, mas, um dia, um dos mais tecnológicos veículos da nova safra, totalmente informatizado, desses que circulam sem motorista, virou-se para seu proprietário e se ofereceu para ir à farmácia comprar um analgésico: “Pode deixar que eu vou, continue assistindo à TV, não saia daí”.
Pronto! Nunca mais a história foi a mesma, desde o tempo em que os beduínos atravessavam o deserto em camelos. Os carros dominaram o mundo. Tentativas de controle foram inúteis: radares, legislação restritiva, pedágios, buracos na pista, falta de vagas e preços dos combustíveis nas alturas não impediram o aumento da frota. A forte e desigual relação de dependência se consolidou — a favor dos automóveis! Até o dia em que os carros cercaram as portas das residências, bloquearam as vias de circulação e grandes congestionamentos se formaram. Foi o caos! A partir daí, os humanos passaram a trabalhar para os carros: encher o tanque, deixá-los limpos e brilhantes, econômicos, ergonômicos, confortáveis…
Hoje, nós entramos nos carros sem saber aonde vamos, por que, quando e se chegaremos. Eles, os veículos, dizem que tudo se fez e se faz em nome do progresso, da riqueza da nação. Então tá!
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quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022
Mudança de paradigma
Renato Muniz B. Carvalho
Melhoria da produtividade, sanidade do rebanho e adequação da atividade às novas regras, que mais cedo ou mais tarde viriam, eram imprescindíveis, segundo meu avô. Vacinas, antibióticos, controle de parasitas, métodos de manejo racionais eram tendências que não podiam ser ignoradas. Mas o choque cultural inicial foi grande, eu me lembro.
As práticas tradicionais começavam na hora do nascimento da bezerrada. Após o parto, no piquete, mãe e filho eram conduzidos ao curral. Se a vaca era brava ou novilha de primeira parição, vinha debaixo de muita pancadaria; dizia-se que ela tinha ciúmes da cria. Uma vez apartados, o pobre filhote era jogado no chão e recebia uma boa quantidade de desinfetante no umbigo. Em seguida, era levado para um lugar onde já estavam os outros bezerros, que só voltavam a ter contato com a mãe na manhã do dia seguinte. O colostro era destinado à porcada. Dias depois, a língua era raspada a canivete para eliminar uma enfermidade denominada “sapinho”. Os animais acometidos por ela não conseguiam mamar, aparentavam fraqueza, levando muitos à morte. Se acaso surgisse uma bicheira, o animal era derrubado e tratado onde estivesse, geralmente retirando os parasitas com o canivete de sempre e enchendo o buraco, a ferida, com tecido velho e, não raro, esterco seco. É claro que o Dr. Veterinário condenava essas práticas e apresentava outras soluções. Incomodava-me observar que, às vezes, bastava ele virar as costas para tudo voltar a ser como antes.
Lembranças boas eu tenho dos dias de vacinação do rebanho. Meu avô gostava de começar cedo, zeloso da caixa de isopor cheia de frascos e gelo. Todo o gado passava no curral, oportunidade para conferências e apartações. A vacinação passou a ser obrigatória, mas o que deixava meu avô atônito era saber que alguns fazendeiros recusavam-se a vacinar. Isso foi nos anos 1960 e 1970. Hoje, imagino, todos compreendem a importância das vacinas e da ciência, afinal, o mundo mudou. Ou não?
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