segunda-feira, 9 de julho de 2012

Diário de uma professora (sexta parte)


Da esquerda para a direita: Romeu, Elisa e Joãozinho


Parece que o mundo está num constante processo de mudança; uma constatação óbvia. Também parece que, em alguns momentos, alguns elementos mudam mais ou mudam menos. Um observador um pouco mais minucioso pode ver que mudam alguns aspectos da vida social e outros não, e que ora mudam, ou não, os costumes, a política, a economia, as artes, ora de modo mais rápido, ora de modo mais lento. No início do século XX, mais especificamente na década de 1920, as artes e a educação passaram por um desses momentos rápidos, intensos e profundos de mudança.

As duas primeiras décadas do século XX foram de viva transformação. Avançaram significativamente, além das artes e da educação, as questões ligadas ao urbanismo e à tecnologia, em especial no campo da construção civil, com o uso combinado do aço e do cimento, do transporte automotivo e da aviação.

Embora tendo sua origem séculos antes, a produção automobilística se altera completamente com o advento da linha de produção. “A linha de produção em larga escala de automóveis a preços acessíveis foi lançada por Ransom Olds em sua fábrica Oldsmobile em 1902. Este conceito foi amplamente expandido por Henry Ford, com início em 1914. Como resultado, os carros da Ford saíam da linha em quinze intervalos de um minuto, muito mais rápido do que métodos anteriores, aumentando em oito vezes a produtividade.” (1)

No campo da aviação, Alberto Santos Dumont (1873 - 1932) é um nome que não pode ser deixado de lado. “Santos Dumont projetou, construiu e voou os primeiros balões dirigíveis com motor a gasolina. Esse mérito lhe é garantido internacionalmente pela conquista do Prêmio Deutsch em 1901, quando em um voo contornou a Torre Eiffel com o seu dirigível Nº 6, transformando-se em uma das pessoas mais famosas do mundo durante o século XX.” (2)

O início do século XX foi também um momento marcado por importantes movimentos políticos e sociais, como a Revolução Mexicana, de 1910, a Primeira Guerra Mundial, de 1914 a 1918, e a Revolução Russa, de outubro de 1917.  

Nas artes, no Brasil, tivemos a Semana de Arte Moderna (1922), com as suas consequências na vida cultural do país, com a formação de toda uma geração de escritores, intelectuais e artistas que iria influenciar o Brasil nos anos seguintes, com uma extensão que, sem dúvida, atravessou o século. Apenas para citar alguns contemporâneos de Elisa Wey: Mário de Andrade é de 1893, Tarsila do Amaral é de 1886, Anita Malfatti é de 1889, Heitor Villa-Lobos é de 1887.

Estudiosos da educação, dentre eles Ester Buffa e Paolo Nosela, estudando o processo de modernização geral da sociedade brasileira, no tocante à educação, destacam que foi um período marcado por “importantes acontecimentos no campo educacional”. Citam as reformas de São Paulo, em 1920, realizada por Sampaio Dória, a reforma do Ceará, feita por Lourenço Filho, e a do Distrito Federal, por Carneiro Leão, em 1922. Em 1930, cria-se o Ministério da Educação. Na visão dos autores, a industrialização, a urbanização e o desenvolvimento da ciência estão na raiz do processo de modernização educacional (3).

Foi um período onde se destacaram educadores como Anísio Spínola Teixeira (1900 - 1971). “Personagem central na história da educação no Brasil, nas décadas de 1920 e 1930, difundiu os pressupostos do movimento da Escola Nova, que tinha como princípio a ênfase no desenvolvimento do intelecto e na capacidade de julgamento, em preferência à memorização. Reformou o sistema educacional da Bahia e do Rio de Janeiro, exercendo vários cargos executivos. Foi um dos mais destacados signatários do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, em defesa do ensino público, gratuito, laico e obrigatório, divulgado em 1932. Fundou a Universidade do Distrito Federal, em 1935, depois transformada em Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil.” (4)

Anísio Teixeira


Outros educadores do período são:
- Fernando de Azevedo (1894 - 1974), professor, educador, crítico, ensaísta e sociólogo brasileiro.

- Manuel Bergström Lourenço Filho (1897 - 1970). “Foi um educador brasileiro conhecido sobretudo por sua participação no movimento dos pioneiros da Escola Nova. Foi duramente criticado por ter colaborado com o Estado Novo de Getúlio. Sua obra nos revela diversas facetas do intelectual educador, extremamente ativo e preocupado com a escola em seu contexto social e nas atividades de sala de aula. Nascido no interior de São Paulo, teve uma formação marcada pela influência do pai, o português Manuel Lourenço Filho, comerciante criativo e empreendedor ávido, casado com a sueca Ida Christina Bergström. Desde menino, em contato com vasta literatura, tornou-se um leitor compulsivo. Nas suas próprias palavras: lia com "bulimia e indiscriminação”. (5)

- Júlio Afrânio Peixoto (1876 - 1947). “Foi um médico, político, professor, crítico literário, ensaísta, romancista e historiador brasileiro. Em 1902, mudou-se para a capital do país, na época, Rio de Janeiro, onde foi inspetor de Saúde Pública e diretor do Hospital Nacional de Alienados, em 1904. Ministrou aulas de Medicina legal na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (1907) e assumiu os cargos de professor extraordinário da Faculdade de Medicina (1911); diretor da Escola Normal do Rio de Janeiro, em 1915 e diretor da Instrução Pública do Distrito Federal no ano seguinte. Teve uma passagem pela política quando foi eleito deputado federal pela Bahia, ficando no cargo no período de 1924 a 1930. Após isto, voltou à atividade do magistério sendo professor de História da Educação no Instituto de Educação do Rio de Janeiro, em 1932. Foi reitor da Universidade do Distrito Federal em 1935 e, após 40 anos de relevantes serviços, aposentou-se.” (6)

Em 1932, é lançado o "Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova". Este Manifesto “foi escrito durante o governo de Getúlio Vargas e consolidava a visão de um segmento da elite intelectual que, embora com diferentes posições ideológicas, vislumbrava a possibilidade de interferir na organização da sociedade brasileira do ponto de vista da educação. Redigido por Fernando de Azevedo, dentre 26 intelectuais, entre os quais Anísio Teixeira, Afrânio Peixoto, Lourenço Filho, Roquette Pinto, Delgado de Carvalho, Hermes Lima e Cecília Meireles. Ao ser lançado, em meio ao processo de reordenação política resultante da Revolução de 30, o documento se tornou o marco inaugural do projeto de renovação educacional do país. Além de constatar a desorganização do aparelho escolar, propunha que o Estado organizasse um plano geral de educação e defendia a bandeira de uma escola única, pública, laica, obrigatória e gratuita. O movimento reformador foi alvo da crítica forte e continuada da Igreja Católica, que naquela conjuntura era forte concorrente do Estado na expectativa de educar a população, e tinha sob seu controle a propriedade e a orientação de parcela expressiva das escolas da rede privada.” (7)

Justamente, em 1932, ano do Manifesto, Elisa aposenta-se.

A primeira sensação que tive ao ler o Diário de Elisa é que ela passou alheia a tudo isso. Não creio que seja só uma impressão apressada, embora ainda seja preciso pensar melhor sobre o assunto. Alguns trechos do seu Diário, transcritos abaixo, revelam, entretanto, uma postura pedagógica mais liberal, quando faz, por exemplo, uma crítica a um professor do seu filho Lúcio. Talvez os leitores e a família possam ajudar a traçar melhor seu perfil. O fato é que ela não faz reflexões ou sequer observações a respeito desses acontecimentos todos, mas sua trajetória nos informa que ela estava no interior do processo, no meio dos acontecimentos. Ela viveu o momento de mudança. Seu tempo é o da mudança, mas vivida em cidades do interior, vivida para a família, envolvida com a educação das crianças, seus alunos, e dos seus filhos, muitas vezes sem a presença do marido. Da memória que ficou, destaco seu caráter íntegro e reto, sua postura sempre carinhosa e justa. Serão reflexos desses tempos? Dessas ideologias transformadoras? As respostas vão ficar mais para frente.

Na próxima postagem, vou tentar detalhar mais o impacto do contexto histórico na sua vida, com ênfase nas Revoluções de 1924 e na de 1932, cujos 80 anos se comemora neste mês de julho.

P.S.: não sei se domingo é um bom dia para postar o Diário. Na próxima semana vou tentar postar na sexta-feira ou no sábado. Nem sempre será possível.

O Diário - Parte VI

Em Avaí (8) fomos morar em uma casa tão pequena, que os móveis ficaram amontoados e a escola ficava tão próxima do mato, que em certo dia uma cobra entrou na sala de aula, alvoratando a criançada.

Mais tarde, as escolas foram reunidas e tivemos um bom diretor. Durante a nossa estadia em casa de mamãe, em Sorocaba, Lúcio, Olga e Dulce tiveram cataporas e, no dia em que viajávamos para Avaí, elas (as cataporas), atacaram Romeu, pois as bolhas iam aparecendo no rosto dele, no pescoço e nas mãos.

Lúcio aprendeu a ler sozinho e mais tarde foi para o grupo em Barretos. Fez o terceiro ano com o professor Ernesto Penteado. Mais tarde é que ele frequentou e escola em Avaí. Lúcio teve a pouca sorte de ir para uma escola cujo professor era muito ignorante. Os seus alunos estudavam a tabuada em voz alta e cantada e quando se passava pela frente da escola tinha-se a impressão de que ali havia uma grande caixa de marimbondos. Ele teimava com Lúcio dizendo que não se pronuncia Anchieta e sim “Anquieta”. Deve-se dizer “alambaris” (peixe), e não lambaris. Uma calamidade!

Romeu veio interno para o Archidiocesano, pois já estava crescido e em Avaí não havia escola para ele. Olga ficou na minha escola e Dulce começou a ler comigo.

Romeu não gostava do Colégio e, no fim do ano, não queria mais voltar, porém Joãozinho insistiu que ficasse mais um pouco.

No ano seguinte, ele falou com o Diretor e disse que estava doente, pedindo permissão para ir tratar-se em casa. Quando menos esperávamos, ele chegou (em Barretos, onde estávamos pela 2ª vez).

Durante a nossa residência em Avaí (7 anos), Joãozinho resolveu fazer o curso de medicina no Rio de Janeiro. Ele havia adquirido a Coletoria Estadual de Avaí, para estudar, tirava licença de julho a dezembro e seguia para o Rio. E assim foram os seis anos dos seus estudos. Nós passávamos, todos os anos, seis meses sem nos vermos. Foi um grande sacrifício que fizemos!

O senhor Joaquim Natel, diretor das Escolas Reunidas, resolveu tirar uma licença e escolheu-me para substituí-lo. Fiquei sobrecarregada, pois éramos três professoras e seis classes, o que quer dizer que lecionávamos em dois períodos de três horas cada um.

Além das classes, fiquei com o serviço todo da diretoria e, para cúmulo, ainda estava a meu cargo a fiscalização da Coletoria, se bem que o escrivão era muito correto e pouco trabalho eu tinha.

Nessa ocasião, Lúcio com onze anos, muito me ajudava. Ele se levantava cedo e fazia o café. Depois punha o feijão ao fogo, rachava lenha, tirava água da cisterna, fazia compras e preparava o almoço. Quando eu chegava da escola (primeiro período) o almoço estava pronto. E depois que almoçávamos, ele arrumava a cozinha. Quem fazia o jantar era a Olga; mas esta, muito amiga de andar a cavalo, punha o arroz ao fogo e ia ao pasto buscar o cavalo. Resultado: quando vinha de volta, o arroz estava queimado.

Dulce, apesar de pequena, auxiliava no arranjo da casa, tirando o pó dos móveis e fazendo outros pequenos trabalhos. Mais tarde, as Escolas Reunidas foram transformadas em Grupo e então tivemos maior número de professoras e passamos a trabalhar em um só período.

Como eu trabalhava à tarde, fiquei com a manhã disponível e aceitei alunos de preparatório. Carminha preparou-se para o Normal, Sebastiana para farmácia e os outros, isto é, Lúcio, Joaquim e João estudavam matemática, português, francês, geografia e história.

Mais tarde, mandamos para [São Paulo] Lúcio e Olga afim de frequentarem o  Conservatório Musical. Antes, Romeu também passou uma temporada aqui [SP] estudando flauta e progrediu bastante.

Quando Joãozinho se formou em medicina, a população de Avaí recebeu-o com banda de música na estação e foi-lhe oferecido um banquete no principal hotel da cidade. Ele começou logo a trabalhar e sua clientela aumentava dia-a-dia, quando rebentou a Revolução de 24. Foi um desastre para nós.

Notas e referências

(1) Wikipedia

(2) Wikipedia

(3) BUFFA, Ester; NOSELLA, Paolo. A educação negada: Introdução ao estudo da educação brasileira contemporânea. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 1997. 

(4) Wikipedia

(5) Wikipedia

(6) Wikipedia

(7) Wikipedia

(8) Avaí situa-se no centro do Estado de São Paulo. Está a 325 km da cidade de São Paulo. População (2010): 4.959 habitantes.

Avaí, SP

Histórico de Avaí:

No final do século XIX, João Batista Dias, o "João Guari", acompanhado de sua família e de alguns colonos, vindos de São Manuel, chegou às margens do Rio Batalha, onde fixou residência. Procedeu à derrubada das matas e efetuou os primeiros plantios. Outras famílias, mais tarde, ai também se estabeleceram fazendo surgir um pequeno povoado, que ficou conhecido por Jacutinga, em virtude de ser comum na região o pássaro desse nome.

Em 1905, o Major Gasparino de Quadros, proprietário na região, doou dez alqueires de terras à João Batista Dias e Francisco Tosoni Decarlis, que fundaram o povoado. No ano seguinte, com a chegada da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, foram fixados os limites do perímetro e a divisão em lotes, do terreno doado.

Com a construção da Capela, o povoado passou a denominar-se São Sebastião do Jacutinga, tendo este Santo como Padroeiro.

Em 1910 foi criado o Distrito de Paz de Jacutinga.

O nome da cidade de Jacutinga para Avaí, distinguindo-a de outra de igual nome, em Minas Gerais, e também para rememorar a batalha do Avaí, da guerra do Paraguai, vencida sob o comando de Duque de Caxias. Do tupi " aba-y", o rio do homem, ou o rio do povo.

Fonte: IBGE

Avaí, SP


Sobre a Estrada de Ferro:
A Estrada de Ferro Noroeste do Brasil foi aberta em 1906, seguindo a partir de Bauru, onde a Sorocabana havia chegado em 1905, até Presidente Alves, em setembro de 1906. Em janeiro de 1907 atingia Lauro Müller, em 1908 Araçatuba e em 1910 atingia as margens do rio Paraná, em Jupiá, de onde atravessaria o rio, de início com balsas, para chegar a Corumbá, na divisa com a Bolívia, anos depois. O trecho entre Araçatuba e Jupiá, que até 1937 costeava o rio Tietê em região infestada de malária, foi substituído nesse ano por uma variante que passou a ser parte do tronco principal, enquanto a linha velha se tornava o ramal de Lussanvira. Em 1957, a Noroeste passou a fazer parte da Refesa. Transportou passageiros até cerca de 1995, quando esse transporte foi suprimido. Em 1996, a Refesa deu a concessão da linha para a Novoeste, que transporta cargas até hoje.

A estação de Avaí: A estação foi aberta com o nome de Jacutinga em 1906. "(...) no km 43 o rio Batalha, no 48 a estação de Jacutinga e respectiva vila, adiante passam mais duas chaves que servem serrarias e a fazenda de café do Sr. R. Swenger" (Breve Histórico sobre a E. F. Noroeste do Brasil, Sylvio Saint Martin, junho de 1913). O atual município de Avaí nasceu em volta da estação, que recebeu o nome atual mais tarde. Em 1942 foi construída a estação atual; antes, era outra, talvez ainda a original. Hoje (2006) ela está abandonada, e seus desvios já foram retirados.

(Fontes: José H. Bellorio; Daniel Gentili, 2009; Ricardo Frontera, 2001; Breve Histórico sobre a E. F. Noroeste do Brasil, Sylvio Saint Martin, junho de 1913; relatórios oficiais da Noroeste do Brasil, 1930-1954; Guia Geral das Estradas de Ferro do Brasil, 1960; O Avaiense, 2008; IBGE, 1973; Mapas - acervo R. M. Giesbrecht)

Fonte: Estações Ferroviárias do Brasil
Disponível em: http://www.estacoesferroviarias.com.br/a/avai.htm


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