sexta-feira, 27 de junho de 2014

Tio Júlio, a praia e o leite derramado





Renato Muniz Barretto de Carvalho

Foi uma vergonha enorme a que senti ao ver o saquinho de leite cair no chão e uma parte do líquido branco esparramar-se pelo chão da barca. Fazíamos, Tio Júlio, meu irmão mais novo e eu, a travessia entre Santos e Guarujá. Íamos passar uns dias na praia do Perequê.
Tio Júlio devia conhecer bem o trajeto, que ele preferia fazer de ônibus e barca ao invés de carro. De início, eu achei estranho, acostumado que estava a ir de carro para todo canto, depois, pensando bem, para quê esquentar a cabeça com trânsito, carro, estacionamento, combustível, etc.? Minha admiração por ele até aumentou.
O Perequê, quando o conheci naquela época, anos 1960/70, era um paraíso. Lugar de águas limpas, praia sossegada, pouca gente, poucos banhistas. A família do Tio Júlio tinha uma casinha nas proximidades da foz do rio Perequê com o mar. O movimento da maré era, pelo menos para mim, apenas um menino do interior de Minas, impressionante e maravilhoso. Em certas horas do dia o rio era um fiozinho d’água, correndo rápido até o mar e se desmanchando nas ondas, numa mescla confusa entre rio e mar, entre a água doce e a água salgada. Dava para atravessá-lo andando, era possível tomar um banho tranquilo, nadar no rasinho. Noutros momentos, quando a maré subia, transformava-se num rio enorme, fundo, impossível de atravessar a pé.
A casinha ficava a poucos metros do rio, escondida na confluência entre o rio e o mar. Era de madeira, bastante simples, e, junto com outras poucas casas de parentes, compunha o cenário de modo harmônico, como se dele fizesse parte há bastante tempo. Parecia de brinquedo, plantada na areia, cercada de vegetação litorânea, sem nada de extravagante, quase um elemento da paisagem natural.
Lá no Perequê, nunca um dia era igual ao outro. Mas fosse com sol ou chuva, frio ou calor, o lugar era especial. Pelo menos, foi assim que ficou guardado na minha memória. A presença do Tio Júlio ali certamente influenciava a paisagem e o que quer que acontecesse em volta. Às vezes eu tinha a impressão que ele tinha sumido, evaporado, depois reaparecia, mágico, tranquilo. Tinha ido buscar umas madeirinhas mais adiante, estava nos fundos da casa remendando uma rede, ou limpando peixes no tanque, sem falar nada, sem pedir nada, conversando consigo mesmo e com o universo.
Os dias que passamos no Perequê nessas férias foram muito proveitosos. De manhã íamos ao mar, depois líamos a tarde toda. Levei vários livros, na esperança de dias calmos, e foi o que aconteceu. Metade da nossa bagagem eram livros. Li Capitães de Areia, do Jorge Amado, li A Ciociara, do Alberto Moravia, e Ratos e Homens, do John Steinbeck. Meu irmão também leu bastante.
No fim da tarde, voltávamos ao mar para lançar a rede do dia seguinte. As noites eram curtas, como curto foi o tempo nosso naquele lugar mágico. A lembrança que marcou o instante seguinte é que a especulação imobiliária veio rápida, a poluição chegou arrasadora, o lugar se encheu de bares, de lixo, de barulho e perdeu-se no tempo, como algo escrito na areia da praia.
A recordação que também ficou foi a do saquinho de leite indo ao chão e eu tentando impedir que todo o líquido se perdesse, na certeza de ter cometido um grave erro, me julgando inútil e besta naquela atitude de salvar o leite derramado. Mas o Tio Júlio foi bem rápido, pegou o saquinho, amarrou com um barbante a parte que rasgou e fez um furinho na outra ponta. Em seguida, ofereceu a todos os passageiros da barca, gente simples, que sorriu descontraída pelo gesto inusitado. E ele falou: “aceitam leite? Não vamos desperdiçar, né?” Ele mesmo esguichou um gole boca abaixo e depois circulou o saquinho entre o pessoal. Parecia que todos ali eram amigos de longa data.
Existem pessoas e fatos que marcam nossa memória de um modo muito bonito. Tio Júlio, praia, leite derramado, é interessante observar como construímos as várias visões do mundo, pois cada momento tem sua história, seu encanto. No fundo, a questão é entender que as histórias podem ser lidas por diversos ângulos. Leitura de mundo é assim mesmo, cada um lê de um jeito. O importante é ler.


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