Gumercindo
Renato Muniz B. Carvalho
O Gumercindo chegava ainda de madrugada. Como naquele tempo não era costume trancar os portões, ele entrava, ia até a varanda e sentava-se à espera de acordarmos. Era discreto e todo sorridente. Quando minha mãe abria a porta da varanda, lá estava ele, sentadinho, bem comportado, aguardando ser chamado para tomar café.
Tão silencioso quanto vinha, da mesma forma ia embora. Chegava e partia sem dar muitas explicações. Nós gostávamos dele, embora não compreendêssemos suas excentricidades. A nossa convivência com ele foi um componente importante do aprendizado a respeito de questões relacionadas à diversidade cultural e social. Sempre de terno, o mesmo terno, ele fazia questão de etiquetas e de protocolos, sem nunca perder a cordialidade. Nós gostávamos de suas histórias fantasiosas de caçadas e de aventuras.
Lembro-me de que houve uma única vez em que se desentendeu com minha mãe. Foi na hora do almoço, à mesa. Nesse dia, ela resolveu nos servir suco. Como éramos muito gulosos, ela já trazia os copos cheios e distribuía por igual para cada um, para evitar disputas. O Gumercindo fez cara feia e recusou o seu copo. Depois, dirigindo-se ao meu pai, recriminou minha mãe, disse que era inconcebível oferecer vinho aos filhos pequenos: “onde já se viu!” Foi difícil convencê-lo de que era suco de uva e não vinho.
Gumercindo era escritor, já tinha publicado alguns livros. Gostava de conversar com meu pai sobre história, assuntos literários, sociologia e genealogia da família. Respeitavam-se mesmo quando discordavam. Sempre nos trazia livros de presente, geralmente os escritos por ele, e gostava de dar autógrafos. Mas envelheceu — era inevitável —, e ficou confuso, desorientado, cada vez mais irritado com um mundo que ele não mais compreendia; um mundo em rápido processo de transformação.
Meu pai nos dizia que ele gostava de caminhar. Não tinha carro, não dirigia, e ficamos admirados quando soubemos que percorria grandes distâncias a pé. Ponderado, a seu modo, apesar de um tanto extravagante, fazia questão de não incomodar ninguém. Vez ou outra, deixava o silêncio tomar conta, olhava o vazio interior que só ele devia conhecer.
Um dia, chegou sujo de terra, o mesmo terno, os mesmos hábitos, mas amarrotado e cheirando mal. Descobrimos que o odor forte vinha do fato de ter vários dentes de alho nos bolsos do terno. Perguntado sobre isso, disse que era para ter saúde e espantar coisas ruins. Não entendemos nada, mas tolerávamos sua anarquia e seu desalinho. Não me recordo a data, mas uma noite meu pai chegou triste e nos contou que o Gumercindo tinha morrido. Em seguida, foi à estante, pegou os livros dele, como se o parente estivesse ali, nos livros, folheou e guardou de volta. Tem pessoas que permanecem na memória da gente, alguns estão nos livros que guardamos. São pessoas de outros tempos, de outros lugares, que ficam conosco. O Gumercindo é um deles.
Crônica publicada no Jornal da Manhã, em 12-01-2021.
Revisão: Aqui
Um comentário:
Excelente! Memórias!
Postar um comentário