quarta-feira, 11 de abril de 2018
Não basta ler, é preciso conhecer, debater, indicar, conversar... (1)
O
empréstimo
Renato Muniz B.
Carvalho
Comi tanto no jantar que acordei
passando mal. Não era a quantidade, mas a qualidade: muita gordura, temperos
duvidosos, higiene péssima... O resultado desagradável foi ter perdido a
primeira aula da manhã. Como ainda tinha uma chance de evitar levar falta e de
não arruinar meu dia por completo, vesti o uniforme, calcei os sapatos, saí
apressado e corri até o colégio, com dor de barriga e sem nada no estômago.
Duas
aulas chatas e, no intervalo, a Daniela me olhou desconfiada e deu o veredito
certeiro: “Você comeu alguma comida estragada!” Estava tão na cara assim? Pedi
socorro: “O que eu faço?” A recomendação veio rápida: “Passe na cantina e peça
iogurte, pão com queijo quente e tomate”. Salvou minha manhã! Na saída, eu
estava agradecido a ela, já pensando no almoço: batatas fritas, feijoada, doce
de leite e sei lá mais o quê. Pura imprudência!
Ela deve ter percebido que eu era um
caso perdido e mudou logo de assunto: “Já leu João Antônio?” Ah, ela se referia
ao livro de contos “Malagueta, Perus e Bacanaço”, excelente obra desse autor genial,
livro publicado em 1963, mas uma raridade desde o lançamento. Diziam que não
era leitura bem vista pelos conservadores de plantão, pelos guardiões da moral
e dos bons costumes, seja lá o que isso significasse; hipócritas, isso sim! Era
literatura de primeira qualidade, jogo duro, adversidades, malandragem, jogos
de bilhar e amor nas quebradas da madrugada paulista. Era um desses livros que não
se discutia na escola, mas nos barzinhos, nas saídas das últimas seções de
cinema, nas sextas-feiras de muita pizza, apaixonadamente.
Como assíduo frequentador de sebos, eu tinha
comprado um exemplar em bom estado de conservação e devorado em seguida. Ela
foi direta: “Me empresta?” Ih! Se há uma coisa que eu nunca gostei foi de emprestar
livros. Como eu estava agradecido pela sugestão do lanche, não tinha como
recusar: “Amanhã, trago pra você”.
Não abusei da comida, fiz um breve lanche
à tarde e coloquei na bolsa o João Antônio, pesaroso porque ia emprestá-lo. Que
seja! A Daniela era uma boa amiga, já me salvara em outras ocasiões, mas fiz-lhe
severas recomendações: “não suje a capa, não engordure as páginas, não dobre,
não durma em cima dele...” Se eu fosse tão cuidadoso com minha alimentação como
era com os meus livros, não teria problemas estomacais. Nunca mais me devolveu.
Anos depois, comprei outro. A Daniela sumiu, o ano letivo terminou e jamais nos
encontramos novamente. Onde andará? Quanto à minha alimentação, tornei-me mais
exigente, quanto à literatura e aos livros, continuo guloso.
Observação:
João Antônio Ferreira Filho (1937 – 1996) era jornalista e destacou-se como escritor
de contos que retratavam o subúrbio e a periferia. É considerado o criador do
“conto-reportagem” no jornalismo brasileiro.
Crônica publicada no Jornal da Manhã, de Uberaba (MG), em 28/01/2018.
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