quarta-feira, 11 de abril de 2018
Não basta ler, é preciso conhecer, debater, indicar, conversar... (2)
O
brilho da poesia
Renato Muniz B.
Carvalho
Eu nunca tinha visto coisa igual ao
brilho das panelas de Dona Auristela, elas reluziam. Que capricho! Sua cozinha
estava sempre limpa, nada fora do lugar. Como curiosidade de menino não tem cabresto,
um dia eu perguntei como era possível deixar as panelas tão brilhantes. Ela
disse que areava. Fiquei sem entender e não me dei por satisfeito, mais tarde
eu voltaria ao assunto.
Dona Auristela cuidava da sede na
fazenda do meu avô. Quando estávamos lá, ela fazia a nossa comida. O sabor era
delicioso, o tempero, o arroz soltinho, o feijão no ponto, até a salada ficava
boa; difícil menino gostar de verdura, né?
Mais tarde, dei um jeitinho de entrar na
cozinha, ela não gostava que entrássemos ali, mas eu fui de enxerido, e tratei logo
de xeretar a pia. Vi sabão, desses feitos na roça, palha de milho, uma pedra e
um potinho cheio de areia. Foi aí que compreendi que arear tinha tudo a ver com
areia, ela passava areia fina nas panelas, lavava com perfeição, quase
obstinação.
Enquanto brincávamos no quintal, acompanhávamos
os serviços no curral, nadávamos nos poços limpos do ribeirão da Ponte Alta, ela
cuidava da cozinha, lavava e pendurava as panelas nas paredes, passava pano no
chão. Na hora do jantar, tudo estava pronto, preparado, gostoso.
Aquela organização me encantava. A
lenha, cortada em tamanho padronizado, separada dos gravetos, dos sabugos, da
palha. Os panos de enxugar as mãos, pegar as panelas quentes e secar a louça eram
lavados diariamente. O fogão encerado com vermelhão, tudo muito simples, mas
feito com dedicação e carinho. Vez ou outra, ela se espantava com nossa
displicência, com nosso descaso em relação às regras, incompreensíveis para
nós, como horários, a proibição de leite com manga e outras normas que
quebrávamos, ainda que com reverência.
Nessa época, eu estava encantado com “Libertinagem”,
do Manuel Bandeira. Seus 38 poemas apresentavam uma poesia livre, solta...
Alguns deles fazem parte, até hoje, da minha memória poética: “Diga trinta e
três, trinta e três...” Que maravilha! “Pneumotórax” e seu “tango argentino”. "Poética”:
“Estou farto do lirismo comedido/do lirismo bem comportado...”. Era uma espécie
de senha revolucionária: “Não quero mais saber do lirismo que não é
libertação”. Sei lá como interpretávamos, mas era mágico. Se algo desse errado,
iríamos embora: "Vou-me embora pra Pasárgada". Não tinha coisa
melhor!
As panelas e a comida da Dona Auristela
eram pura poesia, assim como o texto do Manuel Bandeira, que brilhava no nosso
imaginário adolescente. Certa vez, me distraí e esqueci o livro sobre a mesa,
deixei pra trás o livrinho de estimação. Fiquei chateado, mas, na hora do
jantar, vi que ela tinha guardado, embrulhadinho num pedaço de papel pardo. Que
alívio! Afinal, estava em boas mãos.
Manuel
Bandeira (1886 – 1968). Para nos lembrarmos do grande poeta no cinquentenário
de sua morte. “Libertinagem” foi publicado em 1930.
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