quarta-feira, 11 de abril de 2018
Não basta ler, é preciso conhecer, debater, indicar, conversar... (3)
Quando
a água era farta
Renato Muniz B.
Carvalho
Quando a água ainda era farta, uma
brincadeira à qual meus irmãos e eu nos dedicávamos com prazer, nas férias passadas
na fazenda do meu avô, consistia em construir verdadeiras cidades, com
incontáveis pontes, para as formigas passarem sobre elas. O material que
usávamos era o que estivesse à mão, o que o improviso e a nossa habilidade
permitissem. Não existiam limites à criatividade, a não ser uma ordem, que geralmente
vinha no final da tarde: “Menino, vem tomar banho!” O banho, acompanhado do
jantar e das conversas com os adultos, antes do sono, eram as últimas
atividades da turma. No dia seguinte tinha mais.
A partir de algum ponto de água, que
podia ser uma torneira aberta ou um rego d’água, construíamos inúmeros canais,
como se fossem ruas, avenidas, uma cidade inteira, estimulados por nossas fantasias
e utopias. Cada um se responsabilizava por seu setor e aí só a ele cabia
definir o que bem quisesse, tentando interagir com os demais setores numa
harmonia espontânea, sem hierarquia ou determinações prévias. Com gravetos
fazíamos as pontes, por onde os citadinos cruzariam de um lado a outro a cidade
imaginária. Difícil era convencer as formigas e outros insetos a entrarem na
brincadeira.
Os grandes inimigos do planejamento
urbano eram os cachorros, que volta e meia vinham solicitar participação no
empreendimento. Grandes e desajeitados, a cidade ideal não tinha sido pensada
para eles. Alguns prédios eram delicados, as pontes não suportavam peso
superior a um grilo ou uma lesma, de cada vez. Tínhamos de exigir que
respeitassem o perímetro urbano.
De onde brotavam tantas informações,
tanto engenho e inventividade? Nos anos 1960, não tínhamos televisão, pouco se
ouvia o rádio e não havia eletricidade na fazenda do meu avô. Só podia vir da
atenta observação do mundo e dos inúmeros livros que líamos, sempre à nossa
disposição. Livros, revistas de quadrinhos, tiras em jornais, o que nos chegasse
às mãos e conseguisse chamar nossa atenção, estimular e aguçar a percepção da
realidade.
O que líamos? Não sei mais, muitos livros
se perderam pelo caminho, foram passados adiante, se estragaram pelo manuseio
de mãozinhas sujas de terra e a vontade de construir um mundo diferente,
melhor, mais condizente com nossas expectativas, nossos anseios por liberdade e
autonomia. Além dos livros e revistas, ouvíamos músicas em antigas vitrolas,
íamos ao teatro infantil nos domingos, ao cinema, nas matinês de sábado, e
gostávamos de ver fotografias e postais do mundo todo. Do que eu me recordo,
líamos Tarzan, nas traduções feitas pelo Monteiro Lobato, autores como o
próprio Lobato, contos de fadas, fábulas e lendas. Quando não estávamos
brincando, lendo ou escutando música, ouvíamos causos e participávamos de gostosas
conversas. Sem dúvida, as possibilidades abertas pela leitura e pelas artes representam
significativas contribuições para ampliarem-se canais, pontes e horizontes!
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário