quarta-feira, 11 de abril de 2018
Não basta ler, é preciso conhecer, debater, indicar, conversar... (4)
Leitura
no ônibus
Renato Muniz B.
Carvalho
Sem saber o que eu ia fazer da vida,
quando menos esperava comecei a dar aulas. O ano era 1976, eu nem tinha entrado
na faculdade, era apenas um garoto tentando terminar o colegial, sem muita
noção das coisas. Mas aceitei colaborar num projeto para alfabetização de adultos.
Nos anos 1970, a ditadura militar,
certamente pressionada pela comunidade externa, devido ao alto índice de
analfabetismo no país, criou um programa de alfabetização sob a responsabilidade
do MOBRAL. A meta era audaciosa e impossível de ser cumprida: em dez anos os
burocratas pretendiam erradicar o analfabetismo no Brasil. O programa acabou em
1985. Autoritário e baseado em princípios pedagógicos equivocados terminou sem
deixar saudades nem situação diferente da que existia quando começou.
Antes que se crie alguma confusão, quero
deixar claro que nunca dei aulas no MOBRAL. Aliás, “mobral”, naquele tempo,
tinha uma conotação bastante pejorativa. Por motivos que não cabe aqui explicar,
alguns amigos resolveram assumir núcleos de alfabetização na Grande São Paulo,
exercendo um papel que o governo não tinha interesse de executar. Trabalhávamos
com o Método Paulo Freire, sem poder dizer, líamos e discutíamos intensamente
seus livros e suas ideias. Um dia, eu conto melhor essa história.
Minha pequena e admirável sala de aula
ficava numa várzea úmida da Zona Leste da capital, em Guaianazes. O trajeto até
lá demorava cerca de duas horas, de ônibus. Logo compreendi que a melhor opção,
para ir sentado e não espremido, era pegar o ônibus no ponto final, no Parque
Dom Pedro, pertinho da Praça da Sé. Como as aulas iniciavam-se às 19h, antes
das 17h eu já estava no ponto. Foi uma época de muita aprendizagem e leituras.
Eu lia no ônibus, sentado nos últimos
bancos, tentando me concentrar nas histórias, sem me incomodar com os buracos das
ruas, as paradas constantes, embora atento aos passageiros e aos arredores. Li vários
livros do Graciliano Ramos, do Mário de Andrade, que eu pegava emprestado na
Biblioteca Circulante, e, também, algumas obras essenciais da literatura
latino-americana.
Nessa época, me chegaram às mãos alguns livrinhos
que me impressionaram bastante e ajudaram a definir caminhos: “A mãe e o filho
da mãe”, “O Menino e o Pinto do Menino” e “Os rios morrem de sede”. Seu autor
era o mineiro Wander Piroli (1931-2006). O entusiasmo foi grande, mudou meu
foco, ali estava uma literatura social contundente, cheia de ironias e de aflições.
Eu carregava os livros numa velha bolsa de lona, como verdadeiros tesouros,
ansioso por terminar cada conto antes do próximo solavanco do ônibus, e
suspeitava que os personagens dos contos fossem meus companheiros de viagem. Essas
leituras e esses trajetos foram minha “alfabetização” no mundo do trabalho, da
periferia, da política, da busca pela dignidade humana. Às vezes, dá uma vontade
danada de entrar num ônibus e de ler um livro até o ponto final.
Não basta ler, é preciso conhecer, debater, indicar, conversar... (3)
Quando
a água era farta
Renato Muniz B.
Carvalho
Quando a água ainda era farta, uma
brincadeira à qual meus irmãos e eu nos dedicávamos com prazer, nas férias passadas
na fazenda do meu avô, consistia em construir verdadeiras cidades, com
incontáveis pontes, para as formigas passarem sobre elas. O material que
usávamos era o que estivesse à mão, o que o improviso e a nossa habilidade
permitissem. Não existiam limites à criatividade, a não ser uma ordem, que geralmente
vinha no final da tarde: “Menino, vem tomar banho!” O banho, acompanhado do
jantar e das conversas com os adultos, antes do sono, eram as últimas
atividades da turma. No dia seguinte tinha mais.
A partir de algum ponto de água, que
podia ser uma torneira aberta ou um rego d’água, construíamos inúmeros canais,
como se fossem ruas, avenidas, uma cidade inteira, estimulados por nossas fantasias
e utopias. Cada um se responsabilizava por seu setor e aí só a ele cabia
definir o que bem quisesse, tentando interagir com os demais setores numa
harmonia espontânea, sem hierarquia ou determinações prévias. Com gravetos
fazíamos as pontes, por onde os citadinos cruzariam de um lado a outro a cidade
imaginária. Difícil era convencer as formigas e outros insetos a entrarem na
brincadeira.
Os grandes inimigos do planejamento
urbano eram os cachorros, que volta e meia vinham solicitar participação no
empreendimento. Grandes e desajeitados, a cidade ideal não tinha sido pensada
para eles. Alguns prédios eram delicados, as pontes não suportavam peso
superior a um grilo ou uma lesma, de cada vez. Tínhamos de exigir que
respeitassem o perímetro urbano.
De onde brotavam tantas informações,
tanto engenho e inventividade? Nos anos 1960, não tínhamos televisão, pouco se
ouvia o rádio e não havia eletricidade na fazenda do meu avô. Só podia vir da
atenta observação do mundo e dos inúmeros livros que líamos, sempre à nossa
disposição. Livros, revistas de quadrinhos, tiras em jornais, o que nos chegasse
às mãos e conseguisse chamar nossa atenção, estimular e aguçar a percepção da
realidade.
O que líamos? Não sei mais, muitos livros
se perderam pelo caminho, foram passados adiante, se estragaram pelo manuseio
de mãozinhas sujas de terra e a vontade de construir um mundo diferente,
melhor, mais condizente com nossas expectativas, nossos anseios por liberdade e
autonomia. Além dos livros e revistas, ouvíamos músicas em antigas vitrolas,
íamos ao teatro infantil nos domingos, ao cinema, nas matinês de sábado, e
gostávamos de ver fotografias e postais do mundo todo. Do que eu me recordo,
líamos Tarzan, nas traduções feitas pelo Monteiro Lobato, autores como o
próprio Lobato, contos de fadas, fábulas e lendas. Quando não estávamos
brincando, lendo ou escutando música, ouvíamos causos e participávamos de gostosas
conversas. Sem dúvida, as possibilidades abertas pela leitura e pelas artes representam
significativas contribuições para ampliarem-se canais, pontes e horizontes!
A criança, o celular e os livros
A
criança, o celular e os livros
Renato Muniz B.
Carvalho
Qual é a idade certa para dar um celular
a uma criança? Esta pergunta tem sido feita com certa frequência nos últimos
tempos, mas ainda não há consenso. Num sentido pedagógico, ela incomoda professores,
pais, diretores, curiosos de plantão e até vereadores. O incômodo aqui se
refere às incertezas causadas pela inexistência de uma resposta “curta e
grossa”, o que existem são hipóteses, sugestões e ideias vagas.
O celular é relativamente recente na
vida social, daí as dúvidas, em especial nas escolas. Como Educação é um
terreno em que todo mundo acha que pode dar palpites, o que é diferente de
estudar e pesquisar o assunto, muitos têm suas “teorias”. O legislativo tenta disciplinar
o assunto, inclusive determinando proibições de uso em sala de aula. Dentro de
casa é diferente, os pais resolvem a peleja. Alguns vão contra a onda
consumista, outros se sucumbem a ela ou contemporizam. Muitos são flexíveis, para
outros, poucos, o dinheiro está sobrando, uns ganham da titia, do vovô...
Resultado: hoje, no Brasil, existem mais celulares do que habitantes. Curioso,
né?
O senso comum indica que não se deve dar
um celular a uma criança antes dela completar seis ou sete anos de idade. Sete?
Dez? Doze? Desconheço estudos conclusivos. Confesso que minha preocupação não
são os celulares, eles não me seduzem tanto. Minha preocupação são os livros.
Qual é a idade certa para dar um livro a uma criança?
Recomenda-se que as mães leiam para seus
bebês quando eles ainda estão na barriga. Já vi nenéns de poucos meses
receberem livros de presente. Existem livros de pano, de plástico, de diversos
materiais e conteúdos. Livros não fazem mal aos bebês, fazem bem! Eles
distraem, desenvolvem a atenção, a criatividade etc.
Se os livros não fazem mal algum às
crianças, se são até recomendados, por que quando elas crescem e ganham um
celular se esquecem dos livros? Isso não acontece apenas com os pequenos, mas com
os adultos também. O que aconteceu com os livros? Ou foi com as crianças? Alguém,
caso se sinta culpado, pode justificar o lapsus
linguae social agarrando-se aos e-books, mas ocorre que a passagem da idade
do livro para a idade do celular é muito brusca e algo se quebra. Neste
caminho, os livros se perdem, e a garotada, seduzida pelo mundo eletrônico, já
não consegue fazer o retorno ao livro tradicional. Pior é ouvir aquela cantilena
esfarrapada: “Ah, mas eles leem no celular...” Não leem! A maioria não lê,
talvez leia mensagens rápidas, figurinhas, mas livros... O risco é se dissolverem
os nexos existentes entre o mundo real e o imaginário.
Ficam algumas indagações: se os livros não
fazem mal entre a gravidez e a chegada à “idade digital”, por que quase desaparecem
da vida dos adolescentes? Quais as consequências disso? É preciso investigar!
Não basta ler, é preciso conhecer, debater, indicar, conversar... (2)
O
brilho da poesia
Renato Muniz B.
Carvalho
Eu nunca tinha visto coisa igual ao
brilho das panelas de Dona Auristela, elas reluziam. Que capricho! Sua cozinha
estava sempre limpa, nada fora do lugar. Como curiosidade de menino não tem cabresto,
um dia eu perguntei como era possível deixar as panelas tão brilhantes. Ela
disse que areava. Fiquei sem entender e não me dei por satisfeito, mais tarde
eu voltaria ao assunto.
Dona Auristela cuidava da sede na
fazenda do meu avô. Quando estávamos lá, ela fazia a nossa comida. O sabor era
delicioso, o tempero, o arroz soltinho, o feijão no ponto, até a salada ficava
boa; difícil menino gostar de verdura, né?
Mais tarde, dei um jeitinho de entrar na
cozinha, ela não gostava que entrássemos ali, mas eu fui de enxerido, e tratei logo
de xeretar a pia. Vi sabão, desses feitos na roça, palha de milho, uma pedra e
um potinho cheio de areia. Foi aí que compreendi que arear tinha tudo a ver com
areia, ela passava areia fina nas panelas, lavava com perfeição, quase
obstinação.
Enquanto brincávamos no quintal, acompanhávamos
os serviços no curral, nadávamos nos poços limpos do ribeirão da Ponte Alta, ela
cuidava da cozinha, lavava e pendurava as panelas nas paredes, passava pano no
chão. Na hora do jantar, tudo estava pronto, preparado, gostoso.
Aquela organização me encantava. A
lenha, cortada em tamanho padronizado, separada dos gravetos, dos sabugos, da
palha. Os panos de enxugar as mãos, pegar as panelas quentes e secar a louça eram
lavados diariamente. O fogão encerado com vermelhão, tudo muito simples, mas
feito com dedicação e carinho. Vez ou outra, ela se espantava com nossa
displicência, com nosso descaso em relação às regras, incompreensíveis para
nós, como horários, a proibição de leite com manga e outras normas que
quebrávamos, ainda que com reverência.
Nessa época, eu estava encantado com “Libertinagem”,
do Manuel Bandeira. Seus 38 poemas apresentavam uma poesia livre, solta...
Alguns deles fazem parte, até hoje, da minha memória poética: “Diga trinta e
três, trinta e três...” Que maravilha! “Pneumotórax” e seu “tango argentino”. "Poética”:
“Estou farto do lirismo comedido/do lirismo bem comportado...”. Era uma espécie
de senha revolucionária: “Não quero mais saber do lirismo que não é
libertação”. Sei lá como interpretávamos, mas era mágico. Se algo desse errado,
iríamos embora: "Vou-me embora pra Pasárgada". Não tinha coisa
melhor!
As panelas e a comida da Dona Auristela
eram pura poesia, assim como o texto do Manuel Bandeira, que brilhava no nosso
imaginário adolescente. Certa vez, me distraí e esqueci o livro sobre a mesa,
deixei pra trás o livrinho de estimação. Fiquei chateado, mas, na hora do
jantar, vi que ela tinha guardado, embrulhadinho num pedaço de papel pardo. Que
alívio! Afinal, estava em boas mãos.
Manuel
Bandeira (1886 – 1968). Para nos lembrarmos do grande poeta no cinquentenário
de sua morte. “Libertinagem” foi publicado em 1930.
Não basta ler, é preciso conhecer, debater, indicar, conversar... (1)
O
empréstimo
Renato Muniz B.
Carvalho
Comi tanto no jantar que acordei
passando mal. Não era a quantidade, mas a qualidade: muita gordura, temperos
duvidosos, higiene péssima... O resultado desagradável foi ter perdido a
primeira aula da manhã. Como ainda tinha uma chance de evitar levar falta e de
não arruinar meu dia por completo, vesti o uniforme, calcei os sapatos, saí
apressado e corri até o colégio, com dor de barriga e sem nada no estômago.
Duas
aulas chatas e, no intervalo, a Daniela me olhou desconfiada e deu o veredito
certeiro: “Você comeu alguma comida estragada!” Estava tão na cara assim? Pedi
socorro: “O que eu faço?” A recomendação veio rápida: “Passe na cantina e peça
iogurte, pão com queijo quente e tomate”. Salvou minha manhã! Na saída, eu
estava agradecido a ela, já pensando no almoço: batatas fritas, feijoada, doce
de leite e sei lá mais o quê. Pura imprudência!
Ela deve ter percebido que eu era um
caso perdido e mudou logo de assunto: “Já leu João Antônio?” Ah, ela se referia
ao livro de contos “Malagueta, Perus e Bacanaço”, excelente obra desse autor genial,
livro publicado em 1963, mas uma raridade desde o lançamento. Diziam que não
era leitura bem vista pelos conservadores de plantão, pelos guardiões da moral
e dos bons costumes, seja lá o que isso significasse; hipócritas, isso sim! Era
literatura de primeira qualidade, jogo duro, adversidades, malandragem, jogos
de bilhar e amor nas quebradas da madrugada paulista. Era um desses livros que não
se discutia na escola, mas nos barzinhos, nas saídas das últimas seções de
cinema, nas sextas-feiras de muita pizza, apaixonadamente.
Como assíduo frequentador de sebos, eu tinha
comprado um exemplar em bom estado de conservação e devorado em seguida. Ela
foi direta: “Me empresta?” Ih! Se há uma coisa que eu nunca gostei foi de emprestar
livros. Como eu estava agradecido pela sugestão do lanche, não tinha como
recusar: “Amanhã, trago pra você”.
Não abusei da comida, fiz um breve lanche
à tarde e coloquei na bolsa o João Antônio, pesaroso porque ia emprestá-lo. Que
seja! A Daniela era uma boa amiga, já me salvara em outras ocasiões, mas fiz-lhe
severas recomendações: “não suje a capa, não engordure as páginas, não dobre,
não durma em cima dele...” Se eu fosse tão cuidadoso com minha alimentação como
era com os meus livros, não teria problemas estomacais. Nunca mais me devolveu.
Anos depois, comprei outro. A Daniela sumiu, o ano letivo terminou e jamais nos
encontramos novamente. Onde andará? Quanto à minha alimentação, tornei-me mais
exigente, quanto à literatura e aos livros, continuo guloso.
Observação:
João Antônio Ferreira Filho (1937 – 1996) era jornalista e destacou-se como escritor
de contos que retratavam o subúrbio e a periferia. É considerado o criador do
“conto-reportagem” no jornalismo brasileiro.
Crônica publicada no Jornal da Manhã, de Uberaba (MG), em 28/01/2018.
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