Renato Muniz B. Carvalho
A menina — cerca de oito anos, pés
descalços, blusa de bolinhas — catava pedrinhas coloridas e colocava numa latinha.
Analisava cuidadosamente cada uma, descartava a maioria, guardava as que ela julgava
mais bonitas, mais atraentes. Outras crianças brincavam no terreno baldio, corriam
atrás de uma bola na área de terra solta, levantando poeira. Um dia, o terreno teve
cerca, teve muro, restaram os testemunhos dos limites estabelecidos, dos indicadores
de propriedade particular, do “não entre”, do “proibido jogar lixo” — avisos inúteis.
Como que isolada do mundo, ela andava
distraída, olhos perdidos no horizonte. Silenciosa, vez ou outra se abaixava para
avaliar uma pedrinha. Quando encontrava uma de seu interesse, esfregava na roupa
para limpar, lustrar, ressaltar o brilho. O destino da pedrinha estava em suas mãos:
guardava na latinha ou descartava.
As crianças deveriam estar na escola,
abrigadas, protegidas, brincando em local seguro. No mínimo, deveriam estar num
parque ou numa praça, com quadras, equipamentos adequados, árvores, flores e gramados.
O discurso cínico grita pelos quatro cantos que a educação das crianças é o mais
importante, mas não há espaços de liberdade e de aprendizagem, apoio pedagógico,
possibilidades de encontros com a arte, com a literatura e a diversidade cultural.
O discurso hipócrita é autoritário e excludente.
A realidade denuncia o descaso: não
há livros suficientes para todas as crianças, não há políticas de estímulo à leitura,
não há verbas para aquisição de bibliografia e reforma ou construção de bibliotecas.
Não há políticas públicas de incentivo à carreira docente. Predominam retrocessos
e desvalorização da educação democrática e libertadora. Faltam verbas para a pesquisa.
Não há políticas efetivas de combate ao racismo, ao machismo e à cultura da violência.
“Armai-vos uns aos outros” virou o novo mandamento. Dissimulações, falsidades e
interesses escusos caracterizam as práticas vigentes.
As crianças não estão bem alimentadas,
a água não é de boa qualidade, contaminada por venenos e metais pesados. Aceitam-se
alimentos ultraprocessados na merenda e não há preocupação com a presença de agrotóxicos,
aliás, “agrotóxico” virou palavra proibida, o termo a ser usado é “produto fitossanitário”
ou “defensivo” — mas deveria ser considerado o que realmente é: veneno. O lixo acumula-se
nas beiradas, em sacolas rasgadas, remexidas, garimpadas por persistentes
recolhedoras e recolhedores de material reciclável. Restos de uma sociedade que
não sabe o que fazer com os resíduos, com sobras reaproveitáveis, que são levados
para deposição em aterros e remunerados por quantidade, ou seja, “quanto mais lixo,
melhor”.
A menina encheu a latinha. Pensativa,
olhou o resultado do seu esforço, do tempo passado longe das demais crianças e das
brincadeiras. Um adulto apareceu e gritou qualquer coisa ininteligível: hora de
voltar para casa. A menina deixou cair a latinha no chão e foi embora. O presente
e o futuro, deixados para trás, pouco lhe diziam respeito.
Publicada no Jornal da Manhã: https://jmonline.com.br/novo/?paginas/articulistas,67
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