sábado, 31 de outubro de 2020

Voar como um pássaro


Voar como um pássaro,
crônica publicada no Jornal da Manhã, em 21 de outubro de 2020

 Renato Muniz B. Carvalho

 Logo cedo, abro a janela e observo os pássaros voando no céu da manhã. Vão de um lado pro outro, pousam nas raras árvores que sobraram, vasculham telhados, fios elétricos, gritam, cantam, vocalizam avisos, chamados, demarcam territórios… Cá entre nós, é bonito!

 Olho além e imagino: e se as pessoas tivessem asas? Ah, voar! Seria tão bom! Não num avião ou num helicóptero, mas voar de forma independente, sem precisar passar por aeroportos, heliportos, sem pagar passagens caras nem se submeter a horários insensatos, voar quando bem entender. Voar para admirar a paisagem, para planar entre as nuvens… Voar até o trabalho, até a mercearia da esquina, até a casa da avó, à casa dos pais ou dos filhos, sair por aí com os amigos… Sonho antigo.

 Será que daria certo? Será que não criaríamos um caos no céu? Já imaginaram a confusão que seria todo mundo sair voando por aí? Sem fornecer plano de voo para autoridades competentes, sem hora de voltar pra casa, sem limitação de espaço aéreo… No nível do chão, existem linhas, faixas, ilhas, placas delimitando, regulando, coibindo abusos. Nas ruas, está tudo definido, pronto, onde pode e não pode estacionar, quando parar nos cruzamentos, qual a velocidade máxima e a mínima, regras, leis, regulamentações e multas, uma infinidade de situações que tem hora que até desanima. Tudo bem, no espaço aéreo os aviões seguem rotas, caminhos, mas isso é complexo, depende de formação específica, treinamento e suporte das torres de controle de tráfego aéreo. O voo independente, o voo livre e desimpedido, o voo por gosto e vontade não teria regras, seria algo parecido com a vontade de ir ao boteco, visitar um amigo, beijar a namorada, fazer uma caminhada na avenida. Bastaria sair pela janela…

 Teria tudo pra dar certo. Por que não? Melhoraria a qualidade do ar, desafogaria o trânsito, propiciaria maior liberdade às pessoas para se deslocarem como quisessem. O empecilho seria a interferência dos burocratas. Imagina isso: para voar na altura de um prédio de dez andares, taxa de 10%; para voar acima de dez andares, 20%; para voar a longa distância, brevê de piloto amador, cursinho de avoante independente mediante pagamento de imposto sobre voo autônomo. Tou fora!

Claro que só uma sociedade avançada, que respeitasse princípios éticos e a cidadania, é que poderia se dar ao luxo de ter seus membros voando por aí. Não voariam sobre quintais com o intuito de espreitar o que as pessoas estão fazendo, nada de roubar jabuticabas, fazer xixi lá do alto ou bisbilhotar a vida alheia, nada de jogar latinhas de cerveja ou bituca de cigarros no chão, nada de voar com caixas de som amarradas no peito e som alto atrapalhando o descanso dos outros… Deixa disso! Melhor fechar a janela e cuidar da minha vida.

Revisão: ReviseReveja. Quer saber mais? Clique aqui.

 

terça-feira, 29 de setembro de 2020

A ignorância

 


A ignorância, crônica de Renato Muniz B. Carvalho. Publicada em 29/09/2020 no Jornal da Manhã (Uberaba, MG).

Outro dia, pesquisando bobagens na internet como quem folheia uma revista de variedades no consultório do dentista, vi uma pesquisa que me chamou a atenção. Era uma avaliação sobre as consequências, para a saúde humana, de se olhar durante muito tempo para a tela do computador ou do celular. Os resultados não eram nada bons. A conclusão dizia que esse hábito, cada vez mais comum e constante na sociedade atual, quase impossível de ser controlado, podia deixar as pessoas com algum grau de bobeira. Epa! Como assim?

 Calma! Como ocorre com a maioria dos problemas de saúde, algumas pessoas são mais afetadas do que outras. Talvez não seja o nosso caso. Pelo que entendi, a pesquisa concluiu que a bobeira, ou a ignorância, pode ter, entre outras causas, a exposição intensiva à tela brilhante de aparelhos eletrônicos. Isso explicaria muitas ocorrências na atualidade! É possível, por que não? As consequências são diversas e dependem de inúmeras variáveis. É bom esclarecer que os resultados não são definitivos e muita água vai passar por baixo da ponte até a ignorância findar.

 Vamos tentar entender. Há um fato inquestionável: os brasileiros permanecem um tempo excessivo junto aos seus celulares e computadores. À frente, atrás, do lado, muitos dormem com seus celulares... Isso provoca reações negativas, não tenham dúvidas! Uma delas, já bastante estudada, refere-se à ocorrência de distúrbios oculares, com possíveis danos à retina. Sabe-se, também, que o uso constante dos celulares é prejudicial para a saúde mental: irritação, raiva, arrogância, empáfia já foram comportamentos identificados. Agora isso: a ignorância, o comprometimento da inteligência, da lucidez, do discernimento.

 A boa notícia é que há esperanças. Nem tudo está perdido, mas é preciso considerar deixar o celular guardado ou, em casos extremos, desligado, esquecido numa gaveta. As pesquisas já revelaram que passar um tempo em praças, em jardins, em parques e à beira de um rio, pode reverter os danos. O ideal é que seja em silêncio. O problema é que esse tipo de equipamento, também chamado de área verde, diminui a cada dia, sem contar as sucessivas ameaças de privatização e corte de verbas. Que ignorância!

 Visitar museus, exposições de arte, ir ao cinema e ao teatro já foi comprovado como altamente benéfico à recuperação e à manutenção da saúde mental, bem como primordial para o combate à imbecilidade. Quando reabrirem, reserve logo seu ingresso!

 Um dado muito animador está relacionado à leitura de livros, de preferência romances, livros de contos, livros de poesia, — todos os gêneros são importantes. Melhor ainda é conversar sobre os livros lidos, estimular que outras pessoas leiam, frequentar bibliotecas e apoiar os escritores, os eventos relacionados aos livros e à produção literária.

 Ah, não se deve esperar muito para agir, senão os prejuízos se tornam irreversíveis. Dependendo da situação, pode virar uma pandemia. Seria terrível!

 
Revisão e leitura atenta de Hugo Maciel de Carvalho (se quiser saber mais sobre o trabalho dele, clique aqui).

sábado, 26 de setembro de 2020

Saudade

 

Saudade. Crônica de Renato Muniz B. Carvalho.  

 

 Como eu já passei dos sessenta anos, me permito ter saudade e conversar sobre isso. Quando jovem, não tinha tempo nem sabia o que era saudade, a não ser num aspecto teórico. Chegava a recusá-la. Sabia que era uma palavra especial, mas não entendia seu significado; faltavam-me sensibilidade e maturidade. Com o tempo, adquiri as tais saudades, no plural, contrariando alguns linguistas. Não foi fácil, não foi um percurso simples. Será que é um sentimento que se adquire depois de certa idade? Do que eu tenho saudade?

 

Saudade é sentimento ligado ao passado, remete a algo que não está presente, que se encontra distante. Por exemplo: a avó mora longe e você sente saudade do abraço dela. Ou seja, você tem vontade de receber um abraço dela ou de abraçá-la, mas isso não é possível no momento. Fica combinado: quando puder, dê um abraço na sua avó!

 

Minhas saudades referem-se a coisas e situações que não faço mais. Tenho saudade de ler um livro até cansar, mesmo que isso significasse varar a madrugada lendo até clarear o dia. Hoje, não dou conta, pois eu durmo, o livro cai no chão, adormeço com a luz acesa. Melhor começar a leitura mais cedo e parar antes do sono vir. Nada contra quem faz, apenas diminuí minha ansiedade com leituras empolgantes. Continuo devorando bons livros, boas histórias, só mudei o horário.

 

Tenho saudade de algumas músicas, mas essa saudade refere-se principalmente ao contexto em que eu as ouvia. Música latino-americana, por exemplo. Nós nos reuníamos, entre amigos, para escutar, íamos a shows, comprávamos discos juntos. Será que a saudade que sinto é das músicas ou das pessoas? Das duas coisas, com certeza! Ouvir músicas de artistas como Violeta Parra, Victor Jara, Mercedes Sosa e outros nos dava o sentido de pertencimento a uma região, a uma cultura, a uma história. O tempo e as circunstâncias nos dividiram, nos empurraram cada um para seu canto; dá até pra desconfiar que foi intencional, que foi um golpe na nossa latinidade. Será?

 

Muita gente vai torcer o nariz, vai me julgar bronco, mas eu sinto saudade de beber vinho porcaria, de preferência de garrafão, desses de cinco litros. Eu não vou fazer isso, só sinto saudade. Era muito bom, também pelas companhias, mas gostoso era o sentido de liberdade, de autonomia e entrada no mundo adulto. Sensação semelhante a se empanturrar de pizza em rodízios, com amigos. Comer até não aguentar mais!

 

E viajar com uma mochila nas costas? Sem saber aonde íamos, sem passagens compradas, sem saber se teríamos onde dormir, não dormir, pegar carona, andar nas carrocerias de caminhões, andar em ônibus velhos sem nos importarmos com conforto…

 

A pior saudade é a saudade do futuro, a saudade de um amanhã que deveríamos ter construído solidário, inclusivo, justo e que não veio. Pois é…

 

  Crônica publicada no Jornal da Manhã, em 24 de setembro de 2020. Revisão e leitura atenta de Hugo Maciel de Carvalho (se quiser saber mais sobre o trabalho dele, clique aqui).

 

terça-feira, 15 de setembro de 2020

Que medo!

Que medo! Crônica de Renato Muniz B. Carvalho.  

Você tem medo de quê? Medo de barata? Medo de cobra? Ou medo do cobrador? Medo do escuro? Medo de altura? Medo de vacina? Medo de livros? Um medo inconfessável? Cá entre nós, existem medos estranhíssimos, não é? Tem gente que tem medo de bicho-papão! Eu me refiro a gente grande, porque criança merece desconto.

Bicho-papão é o quê? É bicho, é gente, é o homem do saco? É o homem da mala? O assunto é o medo, medos fascinantes, medos bestas, de todo tipo. Bicho-papão é um monstro que come criancinhas? E a Cuca? Aquela Cuca que vem te pegar se você não dormir… Bicho-papão cospe fogo? Ele vai te devorar? Que medo!

Alguns têm medo do monstro que mora embaixo da cama. Não vão dormir enquanto não fiscalizam direitinho se não tem nada ali. Outros acordam várias vezes à noite para verificar. Eu conheci um camarada que dormia com uma lanterna na mesinha de cabeceira só para olhar debaixo da cama. Bem, nesse capítulo tem gente que dorme com coisas piores…

Reconheça-se que uns morrem de medo do castigo divino. Devem ter alguma culpa escondida. Alguns ficam apavorados com cara feia: “não vou lá, pois ele fez cara feia pra mim”. Cara feia espanta, intimida. Os valentes dizem: “não tenho medo de cara feia!” Os pais, quando estão zangados com os filhos, fazem cara feia. A namorada, quando desconfia que está sendo passada pra trás, faz cara feia. A cara feia é pedagógica, ensina, normatiza. Falando em educação, há estudantes que têm medo da prova, medo de falar em público, medo de errar… Vencer o medo é uma etapa importante do crescimento pessoal, do amadurecimento da criança e do adolescente.

Ter medo significa manter distância de alguma coisa, que pode ser real ou imaginária. Medo de uma situação, de uma pessoa, de um objeto, de um animal. O medo gera ansiedade, provoca estresse, pode ser irracional ou motivado por uma ocorrência concreta. O medo está relacionado ao instinto de sobrevivência. O problema é saber dosar o medo, senão vira trauma ou se banaliza e aí não faz mais efeito.

Eu não sou psicólogo pra traçar perfis, para dissertar cientificamente sobre o tema, mas acho curiosos os comportamentos relacionados a esses sentimentos de pânico e temor. Tenho dó de quem tem medo sem saber por que sente medo. Há medos que são incutidos na cabeça dos simplórios e dos ingênuos, dos que repetem bobagens sem refletir; servem para dominar, explorar, tirar vantagens. O medo mobiliza e imobiliza. Você tem coragem de enfrentar o medo?

Um tipo de medo tem me preocupado nos últimos tempos. É o medo pernicioso, com finalidade política, medo escuso, criado para apavorar incautos; esse medo indica uma atitude repugnante e covarde, desnuda a baixeza de quem produz e difunde. Precisa falar mais?

 

Crônica publicada no Jornal da Manhã, em 15 de setembro de 2020. Revisão e leitura atenta de Hugo Maciel de Carvalho (se quiser saber mais sobre o trabalho dele, clique aqui).

 

 

sábado, 15 de agosto de 2020

As perguntas certas

 

 

As perguntas certas

 Renato Muniz B. Carvalho

 Os seres humanos gostam de fazer perguntas. Desde perguntas simples como “o que tem para o almoço hoje?” até as famosas: “de onde viemos, para onde vamos, quem somos?”. O ser humano é curioso por princípio. Uns são mais, outros menos, mas a evolução dependeu em grande parte das perguntas feitas e das respostas encontradas. Claro que só isso não bastou, foi preciso colocar a mão na massa, tomar atitudes, pôr o pé na estrada e seguir em frente.

 No campo das perguntas, em busca de alguma classificação, existem as que se podem chamar de perguntas inteligentes, as ingênuas, as capciosas, as incômodas, as indecentes — eu adoro essas! —, as indelicadas e por aí afora. Quando eu era criança e começava a perguntar coisas indiscretas para uma tia ela me olhava brava e dizia que não queria saber de “espicula de rodinha.” Não sabia o significado da expressão, sabia que estava bisbilhotando onde não devia e desviava o assunto. Mais tarde, daria um jeito de descobrir o que era isso. Meninos e meninas são perguntadores por essência. Não se pode ter medo de perguntar, afinal, perguntar não ofende, não é? Já ouvi muita gente boa dizer que mais importante do que ter respostas é preciso saber fazer as perguntas certas. Acho que muitos de vocês também já ouviram isso. Não ouviram? Sem medo de fazer perguntas, então!

Existem perguntas recorrentes, isto é, nunca vão embora: “quer se casar comigo?”, “onde você está?”, “isso são horas?”, “quem foi que quebrou isso?”, “onde deixei as chaves?”, entre outras. Algumas são difíceis de responder, chega a ser constrangedor.

Adolescentes têm uma brincadeira formidável para seu crescimento emocional. Trata-se de uma relação de perguntas capazes de indicar o caráter, as preocupações e até o futuro de quem responde, mas que, principalmente, expõem sentimentos e interesses. Tipo assim: “qual é seu signo?”, “o que te deixa com raiva?”, “qual a sua maior qualidade e o seu pior defeito?”, “qual é seu esporte favorito?”, “qual é seu filme predileto?”, “o que você mais gosta de comer?”, “quem você levaria para uma ilha deserta?” e, a principal delas: “de quem você gosta?”. Ah, essa é irresistível! Não vale deixar de responder. As perguntas e a brincadeira revelam leituras de mundo e fazem parte do amadurecimento pessoal. Você já brincou disso?

Algumas relações incluem esta: “qual livro marcou sua vida?” Já vi muita gente pular a pergunta. Simplesmente porque não leu, não se lembrou do que leu, não soube responder. Para mim, é uma das perguntas mais reveladoras, desde que bem interpretada, tanto é que os adultos continuam fazendo a pergunta ao longo da vida. Você já pensou nisso? Já te fizeram essa pergunta? Você respondeu ou pulou? Não vamos deixar para mais tarde, diga logo: qual livro marcou sua vida?

terça-feira, 11 de agosto de 2020

Fluxos e refluxos

 

 

Fluxos e refluxos

 Renato Muniz B. Carvalho

     Alguns poucos talvez ainda se lembrem, mas a maioria só de ouvir contar ou nem isso. Refiro-me à maneira como o leite era distribuído há cinquenta anos: de carroça, de porta em porta. Na minha memória, a carroça descia a rua e logo a freguesia sabia que o leite estava chegando. Era transportado a granel, num tanque de metal, com torneirinha. O carroceiro vestia avental branco, todo solene e prestativo. Quando estava nas redondezas de casa, minha mãe saía com os frascos de vidro de um litro, colocava debaixo da torneira e esperava encher. Lembro-me que sempre existia a preocupação em deixar os frascos limpos, à espera do dia seguinte.

     Um dia, provavelmente no final dos anos 1960, o leite passou a ser vendido em armazéns, em padarias, e as carroças foram aposentadas. Por um tempo, os recipientes continuaram a ser de vidro, que deviam ser reaproveitados, depois vieram os saquinhos plásticos e, hoje, as embalagens do tipo longa vida. O “leite de saquinho” resistiu, imbatível, mas já está dando sinais de decadência. Dizem que, no interiorzão, ainda se vende leite direto do latão, de porta em porta. As normas sanitárias não recomendam, mas…

     O fornecimento de leite ao consumidor, e o de outros produtos também, mudou muito nesse período. Palavras como “logística”, “varejo”, “atacado”, “engenharia de distribuição” etc. não são apenas moda passageira. Vivemos o reino do consumo, do descartável, tudo se transforma em mercadoria, tudo deve ser colocado à disposição do público no menor tempo possível, gerando, inclusive, muitos resíduos. Os fluxos se intensificaram com reflexos na quantidade e na qualidade das mercadorias. Do leite ao lixo, percebe-se a preocupação de serem atendidas as expectativas do consumidor, assim como a rápida eliminação da “sujeira”, do esgoto doméstico à casca da banana.

     A globalização, a difusão da informática e as facilidades da comunicação trouxeram alterações profundas na convivência social e nos padrões de consumo. As cidades se modernizaram e intensificaram-se as conexões, mas falta diálogo entre os atores sociais, falta estímulo à participação política e maior compromisso com a saúde da população. Um grave risco é a terceirização das decisões, como se disséssemos: “você decide por mim e nem quero saber o que foi decidido!” É isso que queremos?

     Fico pensando na reação da minha mãe se descobrisse que o leite estava contaminado. Daria uma vassourada no carroceiro? Puxaria a orelha dele? Ora, foi para melhorar a qualidade que o leite deixou de ser distribuído daquela maneira. Hoje, mecanismos de controle, acesso à informação e pesquisa científica garantem melhor qualidade dos alimentos, mesmo diante de complexas redes de produção e distribuição. Descuidar de questões como alimentação segura, democratização do consumo e saúde universal é abrir mão de conquistas históricas; significa voltar a um passado bem anterior ao tempo das carroças de leite!

 

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Educação em tempos de pandemia

Educação em tempos de pandemia

A pandemia do novo coronavírus nos revelou – ou confirmou – o despreparo da sociedade e de muitas autoridades em quase todas as esferas, embora mais nuns países do que em outros, a respeito de aspectos importantes da educação atual. A sociedade brasileira poderia estar preparada, avisos não faltaram, mas muitos não acreditaram, não levaram a sério. Claro que não se sabia exatamente como e quando viria um “desastre” (como tantos!), mas as pesquisas, tanto na área de saúde quanto na área ambiental, de certa forma indicavam graves problemas que iam estourar a qualquer momento. A tragédia atual explodiu no final de 2019 e início de 2020 na forma da Covid-19. Se não forem modificadas as causas que conduziram à pandemia e potencializaram os danos, outras situações semelhantes ou piores surgirão no futuro – se houver futuro para muitos!

No caso das escolas, como instituições sociais, elas estavam despreparadas, assim como a sociedade, para a pandemia. Este despreparo não é fruto de uma questão específica; o despreparo é estrutural. A escola, de modo geral, vive uma séria crise, sofre ataques e carece de verbas. As deficiências se manifestam na infraestrutura, na desvalorização dos docentes, e isso ocorre tanto na escola pública quanto na escola privada, embora com impactos diferenciados. Para piorar, as ferramentas dos professores vinham sendo paulatinamente retiradas de seu controle ao longo do tempo. Isso significa a diminuição de sua autonomia, o empobrecimento do debate e o aumento das dificuldades para evolução profissional na docência, além da questão salarial.

Quanto à questão da tecnologia, há um debate em curso, que já dura um tempo, porém não incluía todos. A questão é complexa, não se resume a “aulas virtuais”, a “home office” e a ensino a distância. Isso é apenas um pedacinho do problema. As fragilidades envolvem a desigualdade de acesso à Internet e a outras ferramentas por parte da comunidade escolar. A sociedade brasileira perdeu uma boa oportunidade de discutir melhor e de efetivar a democratização da internet, o acesso livre e universal. Sem tocar nos aspectos pedagógicos e políticos da questão, uma coisa é acessar aulas e conteúdos colocados à disposição de estudantes e professores em computadores, notebooks etc. em redes domésticas de alto desempenho. Outra coisa é acessar usando aparelhos celulares básicos, com poucos recursos, através de redes ruins em termos de transmissão de dados e velocidade, entre outros obstáculos técnicos e sociais. De pouco adiantam aparelhos celulares e notebooks, ainda que ultrapassados, sem o sinal da internet.

Existem desdobramentos a serem considerados: os professores usam seus computadores pessoais e pagam com seus próprios recursos pelo uso da Internet, não existem mecanismos para garantir que seja respeitado o tempo destinado ao processo etc. O que acabou acontecendo: acentuou-se a desigualdade social e tecnológica, o tempo dos professores extrapolou suas condições de trabalho, extrapolou sua formação, acentuou a exploração do trabalho docente etc. Tenho ouvido inúmeras queixas de professores estressados, cansados, desmotivados por causa das aulas virtuais. Portanto, o despreparo (das escolas, dos governos, da sociedade) existia, vinha de longa data e piorou com a pandemia.

Com raríssimas exceções, professores, em todas as circunstâncias, nunca estiveram numa “zona de conforto”. Os “verdadeiros” docentes, os que são, acima de tudo, educadores, nunca se limitaram à reprodução de conteúdo. O que sempre esteve em jogo, em risco e sob ataque foi o pensamento crítico. Uma parcela da sociedade, ainda que pequena, “morre de medo” do pensamento crítico e tentam de todas as maneiras o cerceamento da atuação autônoma dos professores e professoras, em todos os níveis de ensino.

Quanto à questão das dificuldades no uso de novas tecnologias, constata-se a falta de diálogo com a comunidade (docentes, estudantes, pais, gestores, auxiliares de modo geral), a falta de investimentos (infraestrutura em geral, equipamentos, redes suficientes e eficazes, locais adequados etc.) e a ausência de políticas públicas para a modernização, que já estava atrasada. É injusto responsabilizar o corpo docente por essas deficiências e ausências.

O que será da escola no futuro? Penso que a escola do futuro deve investir mais na felicidade e no bem-estar dos estudantes, no aperfeiçoamento do processo ensino-aprendizagem como algo dinâmico e contemporâneo e na oferta de boas condições de trabalho para os professores. A escola deveria ser um espaço público aberto e acolhedor, um espaço que tenha uma boa biblioteca física e outros equipamentos que permitam a convivência, uma escola comprometida com a comunidade. A escola deve se preocupar com a vida em toda sua plenitude, e não com “caixinhas” isoladas umas das outras, como alguns costumam pensar as disciplinas, o espaço escolar, a organização pedagógica etc. Se fizer isso, vai conseguir superar o trauma da Covid-19. Não existem respostas prontas e fáceis, mas o caminho passa pelo diálogo com a comunidade.

Nesses tempos de muitas incertezas, muita gente tem se questionado sobre os livros físicos, indagam se eles serão substituídos por e-books. Ora, a publicação de e-books deve aumentar, é natural e já vinha acontecendo, embora de forma lenta. Deve se acelerar. Mas não creio que os livros físicos vão desaparecer. É o mesmo que afirmar que a televisão vai levar ao desaparecimento do teatro e do cinema, que a fotografia vai acabar com a pintura e com os quadros, que os aparelhos de som e os aplicativos de músicas vão acabar com os instrumentos musicais e com as apresentações de artistas em shows e concertos ou que as relações virtuais vão substituir as relações físicas. Basta observar, durante a pandemia, com as restrições que foram estabelecidas em termos de distanciamento social, como as pessoas ficaram aflitas por contato presencial, por festas, bares, por encontros familiares etc. Os livros em plataformas digitais serão uma opção, entre outras.

Alguns insistem: e o futuro? As aulas continuarão sendo virtuais? Penso que, até termos maior segurança quanto às formas de contágio, até as vacinas estarem disponíveis, entre outras variáveis, será difícil que as aulas voltem ao “normal”. As aulas virtuais não são um “normal”. Segundo informações divulgadas na imprensa, essas aulas (o aprendizado) não estão acessíveis a toda a comunidade. Este é apenas um primeiro ponto. Boas práticas, boas iniciativas foram feitas, mas não resolvem o “problema da aprendizagem” e das aulas, da educação. Do jeito que está colocado, as aulas virtuais não atendem aos objetivos educacionais, porque educação não é só disponibilizar conteúdo para os estudantes. Para voltar a “algum normal”, é preciso ter maiores cuidados com o espaço físico das escolas (desinfecção, limpeza, salas arejadas, pessoal preparado para novas regras de limpeza etc.), acompanhamento mais próximo e constante dos estudantes no seu cotidiano escolar e familiar. Além disso, é preciso inserir a família de forma ativa no controle da doença, é preciso estabelecer conexões estreitas com o pessoal da saúde, acompanhar e verificar casos de contaminação na família etc. Isso exige uma mudança de concepção, de postura, é preciso mudar o entendimento e, da consideração isolada das questões, caminhar para uma visão global e integrada.

Como vai ficar o aprendizado das crianças? Crianças sempre aprendem, de uma forma ou de outra. O aprendizado sempre vai estar presente, de uma forma ou de outra. Aprender, por exemplo, como trabalhar a higiene, preservar o meio ambiente, ter uma alimentação saudável etc., também faz parte do aprendizado. O que não dá pra substituir é a presença física, o olho no olho, os encontros, a comunhão, o convívio social. O aprendizado é uma prática coletiva. Ninguém aprende sozinho, a não ser uma determinada técnica ou um determinado aspecto de um problema. Estudantes e professores não são máquinas, escolas não devem ser confundidas com linha de produção, com fábricas de robozinhos. Portanto, as crianças vão aprender alguma coisa, certamente vão desenvolver algumas habilidades, mas isso não substitui o valor do aprendizado social, representado e realizado pela e na escola. A inteligência não caminha numa única direção, é preciso desenvolver o emocional, a leitura, a escrita, a diversidade, o diálogo, a afetividade, a ligação com o meio ambiente, o raciocínio lógico, a importância da democracia, diferentes visões do mundo, da realidade. Não existe aprendizado sem mundo, com toda sua complexidade.

Existe o risco das crianças desaprenderem a se relacionar com outras crianças ou jovens? Penso que esse risco existe e as consequências podem ser graves. Fazendo uma analogia, seria o mesmo que inserir as crianças no mundo adulto sem passar pela infância. Muito triste, embora alguns gestores, ao que parece, estão “pagando pra ver”. A não convivência pode dificultar o aprendizado de aspectos importantes da educação para a saúde, para a higiene e para o meio ambiente (educação ambiental), que são componentes essenciais no processo pedagógico e que devem permear toda a escola e não apenas áreas específicas. Por isso, é preciso repensar a própria escola e a educação, de forma integrada.

Concluindo, é preciso lembrar sempre: a educação não deve se restringir a ambientes fechados, a espaços delimitados de salas de aula, no sentido tradicional. A rua é uma “sala de aula”, a sombra de uma árvore é uma “sala de aula”, a quadra de esportes, a praça, o parque público etc., todos esses “lugares” são “salas de aula”. A sociedade deve aproveitar este momento para discutir o papel das aulas virtuais, o papel da educação a distância, debater a utilização correta das redes sociais, debater e cobrar dos responsáveis a democratização e o acesso à Internet. Pode ser um bom momento para refletir sobre o futuro da educação e da própria humanidade. 

E aí, mandamos as crianças para a escola? Esta não é uma pergunta simples e a resposta deve ser discutida com a comunidade, com especialistas da área de saúde, com o pessoal da área pedagógica, com o pessoal da linha de frente na escola, com a comunidade, com os agentes comunitários de saúde, com os pais e responsáveis etc. Só tenho uma certeza: não podemos comprometer o futuro!