Educação
em tempos de pandemia
A pandemia do novo coronavírus nos
revelou – ou confirmou – o despreparo da sociedade e de muitas autoridades em
quase todas as esferas, embora mais nuns países do que em outros, a respeito de
aspectos importantes da educação atual. A sociedade brasileira poderia estar
preparada, avisos não faltaram, mas muitos não acreditaram, não levaram a
sério. Claro que não se sabia exatamente como e quando viria um “desastre”
(como tantos!), mas as pesquisas, tanto na área de saúde quanto na área
ambiental, de certa forma indicavam graves problemas que iam estourar a
qualquer momento. A tragédia atual explodiu no final de 2019 e início de 2020
na forma da Covid-19. Se não forem modificadas as causas que conduziram à
pandemia e potencializaram os danos, outras situações semelhantes ou piores
surgirão no futuro – se houver futuro para muitos!
No caso das escolas, como instituições
sociais, elas estavam despreparadas, assim como a sociedade, para a pandemia.
Este despreparo não é fruto de uma questão específica; o despreparo é
estrutural. A escola, de modo geral, vive uma séria crise, sofre ataques e
carece de verbas. As deficiências se manifestam na infraestrutura, na desvalorização
dos docentes, e isso ocorre tanto na escola pública quanto na escola privada,
embora com impactos diferenciados. Para piorar, as ferramentas dos professores
vinham sendo paulatinamente retiradas de seu controle ao longo do tempo. Isso
significa a diminuição de sua autonomia, o empobrecimento do debate e o aumento
das dificuldades para evolução profissional na docência, além da questão
salarial.
Quanto à questão da tecnologia, há um
debate em curso, que já dura um tempo, porém não incluía todos. A questão é
complexa, não se resume a “aulas virtuais”, a “home office” e a ensino a distância. Isso é apenas um pedacinho do
problema. As fragilidades envolvem a desigualdade de acesso à Internet e a outras
ferramentas por parte da comunidade escolar. A sociedade brasileira perdeu uma
boa oportunidade de discutir melhor e de efetivar a democratização da internet,
o acesso livre e universal. Sem tocar nos aspectos pedagógicos e políticos da
questão, uma coisa é acessar aulas e conteúdos colocados à disposição de
estudantes e professores em computadores, notebooks etc. em redes domésticas de
alto desempenho. Outra coisa é acessar usando aparelhos celulares básicos, com
poucos recursos, através de redes ruins em termos de transmissão de dados e
velocidade, entre outros obstáculos técnicos e sociais. De pouco adiantam
aparelhos celulares e notebooks, ainda que ultrapassados, sem o sinal da
internet.
Existem desdobramentos a serem
considerados: os professores usam seus computadores pessoais e pagam com seus próprios
recursos pelo uso da Internet, não existem mecanismos para garantir que seja
respeitado o tempo destinado ao processo etc. O que acabou acontecendo:
acentuou-se a desigualdade social e tecnológica, o tempo dos professores
extrapolou suas condições de trabalho, extrapolou sua formação, acentuou a
exploração do trabalho docente etc. Tenho ouvido inúmeras queixas de
professores estressados, cansados, desmotivados por causa das aulas virtuais. Portanto,
o despreparo (das escolas, dos governos, da sociedade) existia, vinha de longa
data e piorou com a pandemia.
Com raríssimas exceções, professores, em
todas as circunstâncias, nunca estiveram numa “zona de conforto”. Os “verdadeiros”
docentes, os que são, acima de tudo, educadores, nunca se limitaram à
reprodução de conteúdo. O que sempre esteve em jogo, em risco e sob ataque foi
o pensamento crítico. Uma parcela da sociedade, ainda que pequena, “morre de
medo” do pensamento crítico e tentam de todas as maneiras o cerceamento da
atuação autônoma dos professores e professoras, em todos os níveis de ensino.
Quanto à questão das dificuldades no uso
de novas tecnologias, constata-se a falta de diálogo com a comunidade
(docentes, estudantes, pais, gestores, auxiliares de modo geral), a falta de
investimentos (infraestrutura em geral, equipamentos, redes suficientes e
eficazes, locais adequados etc.) e a ausência de políticas públicas para a
modernização, que já estava atrasada. É injusto responsabilizar o corpo docente
por essas deficiências e ausências.
O que será da escola no futuro? Penso
que a escola do futuro deve investir mais na felicidade e no bem-estar dos
estudantes, no aperfeiçoamento do processo ensino-aprendizagem como algo
dinâmico e contemporâneo e na oferta de boas condições de trabalho para os
professores. A escola deveria ser um espaço público aberto e acolhedor, um
espaço que tenha uma boa biblioteca física e outros equipamentos que permitam a
convivência, uma escola comprometida com a comunidade. A escola deve se
preocupar com a vida em toda sua plenitude, e não com “caixinhas” isoladas umas
das outras, como alguns costumam pensar as disciplinas, o espaço escolar, a
organização pedagógica etc. Se fizer isso, vai conseguir superar o trauma da
Covid-19. Não existem respostas prontas e fáceis, mas o caminho passa pelo
diálogo com a comunidade.
Nesses tempos de muitas incertezas, muita
gente tem se questionado sobre os livros físicos, indagam se eles serão
substituídos por e-books. Ora, a publicação de e-books deve aumentar, é natural
e já vinha acontecendo, embora de forma lenta. Deve se acelerar. Mas não creio
que os livros físicos vão desaparecer. É o mesmo que afirmar que a televisão
vai levar ao desaparecimento do teatro e do cinema, que a fotografia vai acabar
com a pintura e com os quadros, que os aparelhos de som e os aplicativos de
músicas vão acabar com os instrumentos musicais e com as apresentações de
artistas em shows e concertos ou que as relações virtuais vão substituir as
relações físicas. Basta observar, durante a pandemia, com as restrições que
foram estabelecidas em termos de distanciamento social, como as pessoas ficaram
aflitas por contato presencial, por festas, bares, por encontros familiares
etc. Os livros em plataformas digitais serão uma opção, entre outras.
Alguns insistem: e o futuro? As aulas
continuarão sendo virtuais? Penso que, até termos maior segurança quanto às
formas de contágio, até as vacinas estarem disponíveis, entre outras variáveis,
será difícil que as aulas voltem ao “normal”. As aulas virtuais não são um
“normal”. Segundo informações divulgadas na imprensa, essas aulas (o
aprendizado) não estão acessíveis a toda a comunidade. Este é apenas um
primeiro ponto. Boas práticas, boas iniciativas foram feitas, mas não resolvem
o “problema da aprendizagem” e das aulas, da educação. Do jeito que está
colocado, as aulas virtuais não atendem aos objetivos educacionais, porque
educação não é só disponibilizar conteúdo para os estudantes. Para voltar a “algum
normal”, é preciso ter maiores cuidados com o espaço físico das escolas
(desinfecção, limpeza, salas arejadas, pessoal preparado para novas regras de
limpeza etc.), acompanhamento mais próximo e constante dos estudantes no seu cotidiano
escolar e familiar. Além disso, é preciso inserir a família de forma ativa no
controle da doença, é preciso estabelecer conexões estreitas com o pessoal da
saúde, acompanhar e verificar casos de contaminação na família etc. Isso exige
uma mudança de concepção, de postura, é preciso mudar o entendimento e, da
consideração isolada das questões, caminhar para uma visão global e integrada.
Como vai ficar o aprendizado das
crianças? Crianças sempre aprendem, de uma forma ou de outra. O aprendizado
sempre vai estar presente, de uma forma ou de outra. Aprender, por exemplo,
como trabalhar a higiene, preservar o meio ambiente, ter uma alimentação
saudável etc., também faz parte do aprendizado. O que não dá pra substituir é a
presença física, o olho no olho, os encontros, a comunhão, o convívio social. O
aprendizado é uma prática coletiva. Ninguém aprende sozinho, a não ser uma
determinada técnica ou um determinado aspecto de um problema. Estudantes e
professores não são máquinas, escolas não devem ser confundidas com linha de
produção, com fábricas de robozinhos. Portanto, as crianças vão aprender alguma
coisa, certamente vão desenvolver algumas habilidades, mas isso não substitui o
valor do aprendizado social, representado e realizado pela e na escola. A
inteligência não caminha numa única direção, é preciso desenvolver o emocional,
a leitura, a escrita, a diversidade, o diálogo, a afetividade, a ligação com o meio
ambiente, o raciocínio lógico, a importância da democracia, diferentes visões
do mundo, da realidade. Não existe aprendizado sem mundo, com toda sua
complexidade.
Existe o risco das crianças desaprenderem
a se relacionar com outras crianças ou jovens? Penso que esse risco existe e as
consequências podem ser graves. Fazendo uma analogia, seria o mesmo que inserir
as crianças no mundo adulto sem passar pela infância. Muito triste, embora
alguns gestores, ao que parece, estão “pagando pra ver”. A não convivência pode
dificultar o aprendizado de aspectos importantes da educação para a saúde, para
a higiene e para o meio ambiente (educação ambiental), que são componentes
essenciais no processo pedagógico e que devem permear toda a escola e não
apenas áreas específicas. Por isso, é preciso repensar a própria escola e a
educação, de forma integrada.
Concluindo, é preciso lembrar sempre: a
educação não deve se restringir a ambientes fechados, a espaços delimitados de
salas de aula, no sentido tradicional. A rua é uma “sala de aula”, a sombra de
uma árvore é uma “sala de aula”, a quadra de esportes, a praça, o parque
público etc., todos esses “lugares” são “salas de aula”. A sociedade deve
aproveitar este momento para discutir o papel das aulas virtuais, o papel da
educação a distância, debater a utilização correta das redes sociais, debater e
cobrar dos responsáveis a democratização e o acesso à Internet. Pode ser um bom
momento para refletir sobre o futuro da educação e da própria humanidade.
E aí,
mandamos as crianças para a escola? Esta não é uma pergunta simples e a
resposta deve ser discutida com a comunidade, com especialistas da área de
saúde, com o pessoal da área pedagógica, com o pessoal da linha de frente na
escola, com a comunidade, com os agentes comunitários de saúde, com os pais e
responsáveis etc. Só tenho uma certeza: não podemos comprometer o futuro!