sábado, 26 de setembro de 2020

Saudade

 

Saudade. Crônica de Renato Muniz B. Carvalho.  

 

 Como eu já passei dos sessenta anos, me permito ter saudade e conversar sobre isso. Quando jovem, não tinha tempo nem sabia o que era saudade, a não ser num aspecto teórico. Chegava a recusá-la. Sabia que era uma palavra especial, mas não entendia seu significado; faltavam-me sensibilidade e maturidade. Com o tempo, adquiri as tais saudades, no plural, contrariando alguns linguistas. Não foi fácil, não foi um percurso simples. Será que é um sentimento que se adquire depois de certa idade? Do que eu tenho saudade?

 

Saudade é sentimento ligado ao passado, remete a algo que não está presente, que se encontra distante. Por exemplo: a avó mora longe e você sente saudade do abraço dela. Ou seja, você tem vontade de receber um abraço dela ou de abraçá-la, mas isso não é possível no momento. Fica combinado: quando puder, dê um abraço na sua avó!

 

Minhas saudades referem-se a coisas e situações que não faço mais. Tenho saudade de ler um livro até cansar, mesmo que isso significasse varar a madrugada lendo até clarear o dia. Hoje, não dou conta, pois eu durmo, o livro cai no chão, adormeço com a luz acesa. Melhor começar a leitura mais cedo e parar antes do sono vir. Nada contra quem faz, apenas diminuí minha ansiedade com leituras empolgantes. Continuo devorando bons livros, boas histórias, só mudei o horário.

 

Tenho saudade de algumas músicas, mas essa saudade refere-se principalmente ao contexto em que eu as ouvia. Música latino-americana, por exemplo. Nós nos reuníamos, entre amigos, para escutar, íamos a shows, comprávamos discos juntos. Será que a saudade que sinto é das músicas ou das pessoas? Das duas coisas, com certeza! Ouvir músicas de artistas como Violeta Parra, Victor Jara, Mercedes Sosa e outros nos dava o sentido de pertencimento a uma região, a uma cultura, a uma história. O tempo e as circunstâncias nos dividiram, nos empurraram cada um para seu canto; dá até pra desconfiar que foi intencional, que foi um golpe na nossa latinidade. Será?

 

Muita gente vai torcer o nariz, vai me julgar bronco, mas eu sinto saudade de beber vinho porcaria, de preferência de garrafão, desses de cinco litros. Eu não vou fazer isso, só sinto saudade. Era muito bom, também pelas companhias, mas gostoso era o sentido de liberdade, de autonomia e entrada no mundo adulto. Sensação semelhante a se empanturrar de pizza em rodízios, com amigos. Comer até não aguentar mais!

 

E viajar com uma mochila nas costas? Sem saber aonde íamos, sem passagens compradas, sem saber se teríamos onde dormir, não dormir, pegar carona, andar nas carrocerias de caminhões, andar em ônibus velhos sem nos importarmos com conforto…

 

A pior saudade é a saudade do futuro, a saudade de um amanhã que deveríamos ter construído solidário, inclusivo, justo e que não veio. Pois é…

 

  Crônica publicada no Jornal da Manhã, em 24 de setembro de 2020. Revisão e leitura atenta de Hugo Maciel de Carvalho (se quiser saber mais sobre o trabalho dele, clique aqui).

 

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