sexta-feira, 30 de outubro de 2015
No caminho, com o teatro
Uma promoção da Livraria Alternativa
Terceira
cena: no caminho, com o teatro a tiracolo
O
ano de 1970 começou numa quinta-feira. Que informação importante! Neste ano,
iniciou-se a "Era Unix". Não sabe o que é? É o marco zero do sistema de
calendário usado pelo sistema operacional UNIX. Hum... Consulte a Wikipédia.
É
que minha relação “séria” com o teatro começou em 1970. Mas, deixa pra lá!
Pois, em 1970, o Brasil vivia uma ditadura, embora poucos ousassem dizer esse
nome feio. Acreditem, muitos chamavam de “A Revolução”. O plantão da presidência
era exercido pelo General Emílio Garrastazu Médici (1905 — 1985). As enciclopédias
dizem que foi o 28º Presidente do Brasil, que governou entre 30 de outubro de
1969 e 15 de março de 1974, mas, na verdade, foi o 3º escalado para dar expediente durante
a ditadura militar do país, sem falar na Junta Militar, que deu as ordens entre
31/08/1969 e 30/10/1969.
Ao
longo do governo Médici, nos chamados Anos de Chumbo, referência ao material de
que são feitas as balas de fuzis, a repressão da ditadura militar atingiu seu auge.
Poucas eram as atividades políticas toleradas. Não sabíamos bem os porquês, mas
muitas coisas não podiam ser ditas, comentadas. Vivíamos o medo e a censura,
principalmente às artes e à imprensa. As manifestações contrárias às
orientações do governo eram proibidas e reprimidas. No colégio, no clube, nos
cinemas e nos barzinhos que frequentávamos, nos passeios de bicicleta, pouca
gente falava disso. Muitos meninos e meninas da classe média, com idade entre
10 e 15 anos, viviam numa espécie de ilha da fantasia, encantados com a
televisão, o futebol, os bailinhos, chamados de “mingau”, a “Jovem Guarda” (argh!),
e o cinema, em especial com os filmes de faroeste, e os Beatles.
Se
alguém observasse bem de perto, enxergaria um período marcado por diversos
tipos de violências. Nunca resolvidas, até hoje.
Neste
ano, para quem gosta de estatísticas, ocorreram mais de 1200 casos de tortura e
foram mortas mais de 30 pessoas, todas ligadas às chamadas organizações subversivas.
Ser contra as orientações do governo era uma atividade de alto risco. Não queiram saber
detalhes das execuções e das torturas, isso envergonha um país, um povo, uma
geração.
Quando
chegamos, em 1970, muita coisa já estava pronta no mundo. O rock, por exemplo,
já estava a pleno vapor. Beatles (1960), Rolling Stones (1962) e Led Zepelin
(1968), já estavam por aí fazendo um som da pesada. Embora eu não tivesse nem
13 anos, pensei seriamente em pedir permissão aos meus pais para ir ao Festival
de Woodstock (1969). Imaginando que eles não deixariam, nem pedi. Pelo menos,
apesar de ter enfrentado uma terrível resistência, meu cabelo comprido era de
dar inveja ao John Lennon. Numa última tentativa de me inserir de cabeça nos
anos 1970, pedi aos meus pais para assistir ao musical Hair. E esse meu pedido foi negado. Se tivessem permitido, os fiscais da censura não me teriam deixado passar nem
perto. Só bem mais tarde, já nos anos 2000, é que pude ver este musical, ícone
do teatro mundial. Se o Caetano conheceu uma tigresa que trabalhou no Hair, minha
esposa também trabalhou no Hair. Foi nos anos 2000, numa montagem atual. Completamente
emocionada, ela não resistiu ao chamado mágico vindo do palco e foi dançar com
o elenco na cena final. Daí eu poder dizer, junto com o Caetano, que eu também
tenho uma namorada que trabalhou no Hair. Que chique não?
Mas
a vida, em 1970, não se resumia aos festivais, como disse o Geraldo Vandré no
Festival de Música Popular Brasileira, em 1968. Os garotos, além de admirarem
Pelé, Jairzinho, Rivelino, Tostão e Gerson, também liam Opinião, Pasquim,
Movimento, Bondinho e Realidade. Admiravam Leila Diniz, Jane Fonda, Mia Farrow,
Jessica Lange... E choraram a morte de Janis Joplin (1943 – 1970) e a de Jimi
Hendrix (1942 – 1970).
Nem
nos preocupavam coisas como a construção da Rodovia Transamazônica, de Itaipu, da
Ponte Rio-Niterói, a morte de operários ou os sequestros dos embaixadores do
Japão, da Alemanha e da Suíça. Alguém escondia isso tudo de nós, que, em
contrapartida, tínhamos de decorar os nomes dos ministros do Médici, e ai de
nós se errássemos um nome sequer! A consciência veio depois, como na música do
Belchior: Não quero lhe
falar meu grande amor, de coisas que aprendi nos discos. Quero lhe contar como
eu vivi e tudo o que aconteceu comigo. Viver é melhor que sonhar, e eu sei que
o amor é uma coisa boa, mas também sei que qualquer canto é menor do que a vida
de qualquer pessoa. Em todo caso, o Brasil era “um país que
vai pra frente”.
Por
trás, escondidos dos olhares ingênuos, dos olhares inúteis, dos olhares
cúmplices, nos porões da ditadura, no Destacamento de Operações e de
Informações (DOI), nos Centros de Operações de Defesa Interna (Codi), no Centro
de Informações de Segurança da Aeronáutica (Cisa), no Centro de Informações do
Exército (CIE) e no Centro de Informações da Marinha (Cenimar), estavam os
presos políticos, para morrer ou mofar. “Brasil, ame-o ou deixe-o”, e a gente
completava: "o último que sair apague a luz".
Pena
que a censura prévia de livros, periódicos e outras expressões artísticas foi oficializada
pelo governo nesse mesmo ano. O Decreto-Lei nº 1.077, de 21 de
janeiro de 1970, instituiu a censura prévia. Funcionava assim: os censores chegavam,
instalavam-se e decidiam o que podia, ou não, ser publicado, visto, ouvido.
Outra modalidade era enviar a edição antecipadamente, com o que pretendiam
publicar, para a Divisão de Censura do Departamento de Polícia Federal, em
Brasília. Muito comum era a autocensura, ou seja, cortar o que fosse imaginando
o que se passava pela cabeça tosca dos censores e o que não deixariam passar. E tem gente que ainda tem saudades
desta época. Eu hein! Quero pensar por mim mesmo, não quero censores dizendo o
que eu, meus filhos, meus amigos podem ver ou não. Sai fora retrocesso!
Foi
justamente nessa época que nós começamos a fazer teatro. Período estranho, não?
Tanta coisa acontecendo, nós entrando na adolescência, o país entrando no
buraco, gente sendo torturada, a arte censurada... Só a economia ia bem, mas o
Delfim recusava-se a “dividir o bolo”.
Acontece
que queríamos dividir o bolo e mudar o mundo! E o teatro foi o caminho que se
abriu para nós naquele momento fecundo.
Para concluir, um trecho de um belo poema do teatrólogo alemão Bertold Brecht:
Eu
vim para a cidade no tempo da desordem,
Quando
a fome reinava.
Eu
vim para o convívio dos homens no tempo da revolta
E
me revoltei ao lado deles
Assim
se passou o tempo
Que
me foi dado viver sobre a terra.
Eu
comi o meu pão no meio das batalhas,
Para
dormir eu me deitei entre os assassinos.
Fiz
amor sem muita atenção
E
não tive paciência com a natureza.
Assim
se passou o tempo
Que
me foi dado viver sobre a terra.
Vocês,
que vão emergir das ondas
em
que nós perecemos,
Pensem,
Quando
falarem das nossas fraquezas,
Nos
tempos sem sol
De
que tiveram a sorte de escapar.
Nós
existíamos através das lutas de classes,
Mudando
mais seguido de país do que de sapatos, desesperados,
Quando
só havia injustiça e não havia revolta.
Nós
sabemos:
O
ódio contra a baixeza
Também
endurece o rosto!
A
cólera contra a injustiça
Faz
a voz ficar rouca.
Infelizmente,
nós,
Que
queríamos preparar o terreno para a amizade,
Não
pudemos ser, nós mesmos, bons amigos.
Mas
vocês, quando chegar o tempo
Em
que o Homem seja amigo do Homem,
Pensem
em nós
Com
um pouco de compreensão.
(Trecho
do poema “Aos que virão depois de nós”, de Bertold Brecht. Extraído do livro
“Brecht, vida e obra” de Fernando Peixoto).
"Pensem em nós com um pouco de compreensão"
As três fotografias acima são do folheto do musical Hair, que estreou no Brasil em outubro de 1969. No elenco, o ator uberabense, Benê Silva e o ator Luiz Fernando Resende, de Araguari, MG.
Woodstock
Janis Joplin
Jimi Hendrix
Amanhã, 31 de outubro, a partir das 10h, estarei na Livraria Alternativa
(Rua Major Eustáquio, 500), conversando sobre o teatro dos anos 1970 em
Uberaba. Venham tomar um café, conversar, relembrar.
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