quarta-feira, 28 de julho de 2010

A vida nas calçadas

Renato Muniz Barretto de Carvalho

Em 1938, enfrentando inúmeras dificuldades, o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss estudou os índios Nambiquara, ao norte de Cuiabá. Segundo relato belíssimo no livro Tristes Trópicos, ir de Cuiabá ao Amazonas era mais fácil via Rio de Janeiro e daí pelo mar até Belém e depois Manaus. Em 1907, o então coronel Cândido Mariano da Silva Rondon iniciou a penetração nesta região, levando uma linha telegráfica ao interior desconhecido do país. Mas, até 1938, ainda poderíamos falar de um “oeste” (far west) brasileiro.

O antropólogo passou um tempo entre os Nambiquaras e descreveu alguns de seus hábitos, relatou seu cotidiano, sua organização familiar, suas crenças, seus hábitos alimentares, sua organização social. Ele conta no livro que os índios dormiam no chão, ao lado de fogueiras, e quando o fogo se extinguia eles rolavam nas cinzas ainda quentes, para se proteger do frio. Conta que nunca viu uma criança apanhar nem receber qualquer tipo de castigo. Nômades, os índios, na época da seca vagavam pelo cerrado à procura de alimento. Ele conta, também, que “todos os bens dos Nambiquara cabem facilmente na cesta carregada pelas mulheres durante a vida nômade. Essas cestas são de taquara rachada, trançada de forma bem aberta com seis tirinhas, formando uma rede de malhas largas estreladas.”

Penso na distância cada vez maior que vai se estabelecendo entre o presente e o passado. Isso é inevitável e óbvio, mas me preocupo com a velocidade com que esse processo se desenrola, nas características dele e nos seus efeitos nas pessoas.

Observando as cidades do interior do Brasil, vejo, num domingo, várias pessoas sentadas na calçada, em frente às suas casas, conversando, trabalhando ou simplesmente vendo o dia passar. Para os Nambiquaras o contato com a natureza era completo, a relação era de dependência estrita, integral. O convívio com os animais, a busca por alimentos, a caça, os medos e alegrias referem-se ao meio ambiente de modo privilegiado. Hoje, a cidade domina. Desta forma se expressou o sociólogo Octavio Ianni, num domingo, no jornal Folha de São Paulo (19/08/2001): “O mundo já é uma grande cidade. Uma cidade modulada em muitas cidades. Cidades em cadeias encadeadas, esgarçadas entre si ou atadas umas às outras, umas dentro das outras. Vistas assim, em perspectiva ampla, são as cidades que compõem a cartografia do mundo, uma vasta cartografia urbana, arquitetônica, simultaneamente caótica e babélica; a mais fantástica obra de arte coletiva.”

Que distância se coloca entre esta grande cidade e o Brasil da década de 1930 ou do território e vida dos Nambiquaras? Muita coisa mudou e não sei se as pessoas se dão conta destas mudanças. A calçada não é o solo arenoso do cerrado seco no mês de agosto na região Norte do Brasil, mas as pessoas estão no chão, na frente de suas casas como se quisessem interagir com uma natureza que não é mais a de tempos atrás.

As pessoas estão nas ruas porque suas casas são, cada vez mais, menores, baixas, quentes, isoladas por grades ou por muros altos. São guardadas por cachorros bravos eternamente amarrados a grossas correntes, nervosos, neuróticos, agressivos e perigosos. As pessoas estão nas cidades porque querem estar umas perto das outras, porque foram expulsas do campo, porque querem “comida, diversão e arte” como cantaram os Titãs.

O mundo vai mudando rapidamente e isso é bom e ruim ao mesmo tempo. Certos mecanismos nos isolam, outros nos aproximam. Muitos fogem das cidades nos domingos e feriados, numa corrida louca em busca da natureza perdida. Vão para a praia, para as montanhas, para os parques, para o campo, simplesmente para passar o dia. Uns vão para a rua porque não têm outra opção, outros se cercam, se aprisionam em imensos e modernos castelos. Um dia, num futuro que pode estar cada vez mais próximo dada a velocidade com que se processa o transcorrer dos tempos, as contradições vão se aproximar mais de perto, e este encontro pode ser um embate, não uma confraternização. Aí teremos “saudades do futuro”, como disse certa vez o geógrafo Armando Corrêa da Silva.

terça-feira, 20 de julho de 2010

A lagartixa da biblioteca

Renato Muniz Barretto de Carvalho


Minha biblioteca anda parecida com um zoológico. Nos últimos tempos passou por aqui um morcego, que gostava de ler, uma traça, que felizmente comia roupas, e, por último, uma lagartixa doméstica


Pequena, esbranquiçada, silenciosa, ficava me observando e nem abanava o rabinho. Como sou muito maior do que ela, logo vi que o bichinho ficou muito assustado, temendo por sua integridade física, com medo que eu lhe desse uma vassourada. Eu não faria isso, jamais. No começo ficamos um tempo olhando um para o outro. No que ela estava pensando eu não sei. Logo me pus a imaginar quais seriam suas escolhas literárias: romances? Contos? Poesia? Literatura estrangeira ou nacional? Assuntos acadêmicos?


Minha primeira reação foi de alguém incomodado, invadido na sua privacidade, afinal eu não a convidei, ela entrou de atrevida. O que fazer para ela se retirar? Dizer que foi um prazer conhecê-la, agradecer a visita e abrir-lhe a porta da rua? Não adiantaria, mesmo com a maior gentileza. Conversar sobre literatura? Hoje em dia anda tão difícil encontrar um bom papo, alguém que goste de conversar desinteressadamente, sem pressa, com sabedoria e humildade suficiente para não constranger o interlocutor. Às vezes, me sinto desatualizado, percebo que os jornais e revistas são muito tendenciosos em todos os assuntos. Uma lagartixa, vinda sei de onde, poderia me trazer alguma informação nova, contribuir com alguma crítica interessante.


Estava pensando nessas coisas quando levei um susto danado: conversando com uma lagartixa? Será que a falta de um ambiente intelectual mais diversificado, a carência de ideias novas e a ausência de um cenário mais propício à criatividade me conduziam ao delírio? Induziam-me ao desespero, a ponto de tentar um diálogo com uma lagartixa? Pelo menos, dizem que elas trazem prosperidade, significam boa sorte. Ando precisando.


Como ela não se movia, peguei um livro de zoologia na estante e fui investigar sua vida. Parece que seus antepassados vieram da África, nos navios negreiros. Apurei que elas são parentes distantes das tartarugas e dos jacarés, não transmitem doenças e não costumam freqüentar lugares contaminados. Bichinho simpático, não?


Não gosto de emprestar livros, mas se ela escolheu freqüentar minha biblioteca, que ficasse, desde que não estragasse e não levasse nada embora. Se quisesse ler alguma coisa que fosse aqui. Podia ligar a luminária, abrir a cortina, escolher onde se sentar, mas não podia sujar os livros. Acho que não é de seu feitio. Não recomendei que não comesse na biblioteca porque li sobre seus hábitos, ela se alimenta de insetos e assim podia até ajudar em alguma coisa. Logo pensei em lhe oferecer morada fixa, sem precisar se preocupar com taxa de condomínio, água, luz e telefone. Mas pensei melhor e achei que num jardim ela se sentiria mais confortável. Sei que ela não iria se demorar, que iria embora sem dizer adeus e me deixaria novamente , com minhas ideias e elucubrações, esperando que um dia ela voltasse e nós dois pudéssemos conversar um pouco mais sobre as novas tendências literárias, sobre os novos autores africanos, sobre os latino-americanos e sobre a última postagem do Bibliotecário de Babel.

domingo, 11 de julho de 2010

As formigas do jardim

Renato Muniz Barretto de Carvalho

Não vejo muita graça em comparar animais ou plantas e seres humanos. Cada um tem a sua especificidade, a sua originalidade, um jeito próprio de ser e existir. Acreditar que o que acontece com eles pode acontecer conosco é um tanto forçado, em todo caso... La Fontaine e Esopo que me perdoem.

Acontece que no meu jardim, nos últimos tempos, tenho observado a ação de umas formigas que não param de cortar as plantas. Já tentei conversar com elas, me explicar, convencê-las de que não devem cortar as flores do meu jardim, mas não adiantou, elas continuam cortando.

Até entendo que se não fosse esse seu gesto, esse seu modo de trabalhar, elas não sobreviveriam, afinal, todo mundo precisa comer. Aí vem outro problema: elas comem tudo, comem demais, querem rapar tudo, são insaciáveis! Não descansam enquanto não depilam uma ou duas arvorezinhas por completo.

Pensei em agir de modo radical. Iria numa loja de produtos agropecuários, compraria, com a devida receita agronômica, um tanto bom de veneno e acabaria de vez com todas as formigas. Pensando bem, resolvi deixar essa atitude de lado, o veneno poderia até me intoxicar, poderia contaminar meu jardim. Melhor seria buscar outra estratégia.

Outro dia pensei em arranjar umas cigarras e pedir a elas que cantassem para distrair as formigas, mas me lembrei que essas duas espécies não são muito amigas. Formigas gostam de cortar folhas, cigarras de cantar e, no passado, as formigas deixaram as cigarras padecerem de fome e frio no inverno.

Sei que, talvez, a culpa não seja das formigas, pois fomos nós que alteramos seu habitat e, a partir do desequilíbrio causado por nós mesmos, elas aumentaram muito. Seus predadores naturais, que poderiam ao menos controlar seu apetite, desapareceram, porque nós também os destruímos. Na verdade, não culpo todos os seres humanos, seria injusto da minha parte, pois nem todos são responsáveis pela degradação ambiental, nem todos são poluidores ou esbulhadores do patrimônio ambiental que, afinal, é de toda a humanidade.

Alguns são responsáveis, e muito pela destruição ambiental. Por um motivo ou outro, a mando de alguém ou visando seus próprios interesses, algumas pessoas põem fogo onde não devem, despejam resíduos tóxicos em rios limpos, jogam esgotos, ou deixam que joguem, em mares, lagos e córregos. Usam e abusam de produtos tóxicos, venenos, aditivos proibidos, não respeitam carências, mentem a esse respeito, burlam a legislação. Os atingidos nem sempre têm sequer o direito, ou o tempo, de se defenderem. Crianças e idosos, geralmente os mais frágeis, sofrem com a ganância e a fome de lucros de uns poucos. Aqueles que acobertam ou não fiscalizam são, de certo modo, cúmplices.

Enquanto isso, as formigas não desistem do meu jardim. Não sei se elas próprias sabem que, talvez, até elas fiquem sem ter o que comer no futuro. Se minhas arvorezinhas morrerem, não sei se planto outras.

Pensei nessa história toda por causa de uma declaração que vi num jornal. Um governador disse: “Não podemos abrir mão de nosso desenvolvimento. Hoje, de 25% a 28% de nossa área estão sendo utilizados para a agricultura ou para a pecuária. Podemos chegar até o percentual de 40% e iremos fazer isso”. (Jornal da Ciência, 6/08/04). O governador se colocava contra a proposta da SBPC de uma moratória no desmatamento da Amazônia. Proposta que não foi bem recebida por ele.

Aí me lembrei das fábulas. E me lembrei também daquela sobre os sócios do leão, que vou contar a seguir. Dizem que, há muitos anos, uma ovelha, uma cabra e um leão tornaram-se sócios. Um veado caiu numa armadilha da cabra e eles quiseram fazer a partilha da presa. O leão logo partiu a caça em quatro partes e disse: — eu fico com a primeira porque sou o rei, pego a segunda por direito, tomo a terceira por ser dos três o mais valente e, se alguém quiser a quarta, acabo com ele.

terça-feira, 6 de abril de 2010

Indiscrições

Renato Muniz Barretto de Carvalho

Ontem eu acordei disposto a trocar meu carro velho por um novo. Nada demais, afinal um carro a mais ou a menos nas ruas não vai fazer mesmo muita diferença, não é?

A dúvida era quanto ao modelo, pois o bombardeio da mídia é intenso e, confesso, estava confuso. Parece que os carros estão adquirindo consciência e sentimento tal o grau de modernidade, informatização e desenvolvimento tecnológico que atingiram. Nem sei se vou ser capaz de dirigir um carro que não preciso mais de trocar a marcha e que fala para onde devo ir. Um carro em que preocupações com baliza, estacionamento ou manobras complexas são coisas do passado, pois eles vêm com sensores, com piloto automático, com vidro elétrico, com direção hidráulica, com computador de bordo, etc. Pergunto: para quê motorista? Coisa mais antiga, arcaica. Mas tudo bem, pensei, é o progresso, é a tecnologia nos beneficiando, nos livrando de trabalho degradante e de ter de sujar as mãos com óleo e graxa. Tomara que venham também com um sistema contra furo de pneu e, quem sabe, num futuro breve, não seja preciso mais usar gasolina e nem álcool. Essas coisas poluem muito o ambiente.

Aí li uma matéria, num jornal especializado, sobre carros com chips. Se um veículo possui o chip é possível localizá-lo onde quer que ele esteja na face da Terra. Nenhum carro, e seus ocupantes, é claro, passarão despercebidos daqui para frente. Ninguém conseguirá se esconder e nem passar um tempo sumido.

O argumento principal está relacionado a roubo, mas eu percebi tudo. Roubo coisa nenhuma, o que se está tramando é um jeito de vigiar as pessoas. Logo eu, que gosto de ir para o mato, que gosto de passar um tempo longe de tudo, no maior silêncio, só observando os pássaros construindo seus ninhos, serei vigiado, seguido, controlado? Não, comigo não.

Imaginem a seguinte situação: eu desapareço por um tempo e chega um helicóptero à minha procura, ou dispara um alarme bem na hora em que uma onça pintada aparece para beber água naquele refúgio que só eu e ela conhecemos? Ficaremos neuróticos, sem dúvida.

E se eu resolvo mudar de direção numa rua ou avenida? Eu explico. Estou me dirigindo a um compromisso e decido mudar de rumo, fazer outra coisa. Digamos que saí para ir ao supermercado, fazer uma compra, mas achei melhor visitar um velho amigo e dou meia volta, vou numa direção completamente diferente. O que pensarão os encarregados de controlar o chip do meu carro? Que fui seqüestrado? Que enlouqueci?

Que situação! Logo estarão no meu rastro, seguindo minhas pegadas eletrônicas, vasculhando minha vida, descobrindo minhas fraquezas, arquivando meus trajetos. Então um carro da companhia de chips me para e o responsável diz: “Senhor Renato, o senhor se desviou do caminho, mudou a rota e não nos comunicou. Não pode fazer isso.” Eu respondo o quê? Mando para aquele lugar ou peço desculpas e volto ao bom caminho?

Melhor não trocar de carro, ou andar mais a pé, de bicicleta, sei lá. E se resolvem implantar o chip na gente? Não! Já basta ter de sorrir de modo hipócrita toda vez que me deparo com uma câmera.

sábado, 3 de abril de 2010

Viagens

Renato Muniz Barretto de Carvalho

Uma boa parte da minha vida profissional, enquanto professor, passou-se fora das salas de aula. Perdi a conta de quantas foram as excursões, as atividades de campo, as viagens de estudos ou os trabalhos de campo. Pouco importa o nome, algumas foram mais técnicas, outras foram puro lazer associado a estudo. Todas valeram a pena. A maior parte delas foi feita de ônibus, mas algumas aconteceram de trem e até mesmo a pé.

Todo professor devia, ao menos uma vez na vida, sair da sala de aula com seus alunos. Ver e mostrar o mundo como ele é. Sentir e estimular a percepção de como os fatos acontecem, sejam eles os físicos e naturais, sejam eles os sociais, antropológicos, econômicos ou históricos. O que importa é ver e participar, proporcionar o contato com a realidade. Não que o aluno não o faça, em casa, nas viagens com a família, no seu cotidiano, a diferença está na maneira de olhar, está na orientação que o professor pode dar e também ao partilhar as descobertas e a aprendizagem com os colegas.

As viagens podem ser longas, curtas, à noite, durante o dia, na praça, distantes ou próximas, o que vale é o momento de saída, a compreensão de que o mundo pode ser apreendido na sua totalidade, na sua complexidade e também na sua simplicidade.

Uma viagem possibilita diversos instantes mágicos incomparáveis, insubstituíveis. Por melhor que sejam as aulas, ou por melhores e mais bem produzidos que sejam os audiovisuais, nada se compara ao contato direto com a natureza ou com a realidade construída pelas sociedades na sua dinâmica e diversidade. Museus, monumentos, paisagens, rios, serras, cidades, lugarejos, igrejas, bibliotecas, teatros, casinhas ou prediões, dentre outros elementos da paisagem natural ou social, existem para serem admirados, visitados, discutidos e conhecidos.

As viagens não são fáceis de serem planejadas e nem sempre recebem o necessário apoio da direção das escolas e dos pais. A responsabilidade acaba ficando por conta do professor, principalmente quando algo não ocorre conforme previsto. Diversos fatores interferem no sucesso de uma viagem, além do medo, por parte dos responsáveis, de que alguma coisa aconteça de errado. Essas dificuldades poderiam ser mais bem superadas se todas as etapas fossem compartilhadas por todos. Viagens não começam no instante de partida, nem terminam na hora da chegada, mas envolvem um bom projeto, uma boa razão, trajeto, condução, materiais, horários, enfim dão trabalho, o que pode desestimular e dificultar sua realização. Mas nada se compara ao rosto cansado e relaxado de quem chega de uma viagem com muita história para contar, com uma experiência, boa ou não, para relatar e guardar na memória. Sinal de que algo ficou, de que aprendemos alguma coisa, de que a autonomia diante da vida e da realidade foi, ainda que em parte, conquistada.

Ao retornar de mais uma das inúmeras viagens que fiz ao Parque Nacional da Serra da Canastra com alunos e amigos, essa é a sensação que tenho -- dá trabalho, mas vale a pena, desde que bem planejada -- e que resolvo repartir com meus leitores.

sexta-feira, 26 de março de 2010

Tomates contaminados


Renato Muniz Barretto de Carvalho


Adoro tomates. Os bem vermelhos, os verdes, os grandes, os pequenos, nas saladas, nos molhos, fritos, recheados e até em receitas que ainda não experimentei.


Infelizmente, junto com os pimentões, morangos e batatas, é um dos alimentos mais contaminados por agrotóxicos no Brasil. Esses alimentos, tão saudáveis e necessários, são contaminados por substâncias tóxicas durante o processo de produção e, às vezes, no preparo e manipulação.


Apesar de o Brasil possuir uma legislação que proíbe o uso de alguns produtos tóxicos na agricultura, que regulamenta quantidades, que estabelece carências e outros procedimentos para tornar os alimentos mais seguros para o consumo humano, nem sempre as recomendações são seguidas. O maior prejudicado é o consumidor, que consume produtos contaminados por venenos altamente tóxicos, danosos à saúde humana. Prejudicados também são os trabalhadores que manipulam esses produtos sem a devida proteção. E o meio ambiente.


No ano passado, em abril, a ANVISA, órgão do Ministério da Saúde, divulgou uma pesquisa sobre contaminação de alimentos no Brasil. Muitas amostras analisadas apresentaram problemas. Alguns produtos estavam com índices elevados de contaminação, dentre eles o pimentão, a uva, o morango e a cenoura. Na ocasião, o ministro Temporão chegou a declarar que iria cortar o pimentão de sua dieta.


O ministro tem feito um bom trabalho à frente do Ministério da Saúde, mas ao invés de cortar o pimentão de sua dieta, ele devia, isto sim, fazer gestões e desenvolver políticas públicas para cortar os agrotóxicos definitivamente de nossos alimentos. Os efeitos seriam mais eficazes e os ganhos em termos de qualidade de vida e saúde bem maiores. Como médico ele deve saber disso.


O governo federal até que tem feito sua parte, mas ainda de forma tímida. Tem incentivado a produção e o consumo de produtos orgânicos, mas falta muita coisa. Falta, sobretudo, desvendar melhor as relações políticas e sociais envolvidas na produção de alimentos, as relações predatórias existentes entre a agricultura e as grandes empresas produtoras de venenos e outros insumos. Precisa impedir a fragilização dos pequenos agricultores e proteger o consumidor interno. Falta fiscalizar melhor e denunciar o uso intensivo de venenos na produção de alimentos. Denunciar o vínculo entre os interesses agroindustriais e o desmatamento. Essas questões andam sempre juntas: questões sociais, políticas e ambientais. É bom lembrar que não há uso responsável de agrotóxicos. Responsabilidade é não usar.


O assunto é polêmico, é antigo, e muita tinta, saliva e papel já foram gastos para se tentar resolver o problema. Denúncias graves, apreensões de produtos, alterações nas fórmulas, produtos vencidos e, no entanto, o país continua na lista como um dos maiores consumidores de agrotóxicos do mundo. A última denúncia, feita em março de 2010, vem de um grupo de fiscais que percorreu várias plantações de tomate no interior de São Paulo. Foram encontradas inúmeras irregularidades: trabalhadores sem equipamentos de proteção, péssimas condições de moradia, jornada excessiva de trabalho, condições precárias de armazenamento e manuseio de agrotóxicos, dentre outros pontos graves. Trabalhadores foram flagrados pulverizando lavouras sem nenhuma proteção, adolescentes trabalhando, o que é proibido nesse tipo de lavoura, agrotóxicos misturados sem nenhum critério, uso de venenos de forma ilegal. Boa parte dessas plantações abastece a grande São Paulo.


Isso confirma a idéia de que a degradação ambiental caminha passo a passo com a degradação do trabalho, da pessoa. Quem não respeita um não costuma respeitar o outro.


E como fica o molho à bolonhesa da macarronada de domingo? Deixaremos de consumir tomate? Como fica a saúde? Nem se pode dizer que tudo vai terminar em pizza, pois vai faltar o molho de tomate.

quarta-feira, 17 de março de 2010

Livros e estradas

Renato Muniz Barretto de Carvalho


Como eu gosto muito de livros, acabo comparando eles a tudo quanto há. Algumas comparações são óbvias, outras nem tanto. Livros combinam com quase tudo. Talvez isso explique a sensação que tenho de que os leitores são mais flexíveis, mais questionadores. Fuçam mais.


Fuçar é uma dessas palavras pouco usadas que às vezes a gente encontra pelo caminho. Dessas que não se acham em qualquer dicionário. Relaciona-se com focinho, nariz, fuça. Daí para o verbo fuçar foi um pulo. Entendo que é o ato de buscar, de escarafunchar, de descobrir o que há por baixo do solo, o que está escondido e precisa ser revolvido, mostrado, revelado. Estamos de acordo?


Quem viaja vai atrás de alguma coisa, busca algo. Viaja a negócios, parte em busca de oportunidades, de parentes, de amigos, procura lazer, descanso, diversão, conhecimento, cultura. O viajante é um eterno descontente, um permanente descobridor, portanto um fuçador.


O leitor também. Ele fuça, descobre histórias, se diverte, desvenda emoções, tristezas, alegrias e infindáveis sentimentos, paisagens e situações. Percorre estradas desconhecidas, vivencia circunstâncias inusitadas. Perde-se, descobre, se confunde, questiona.


Muitos não gostam de experimentar essa comiseração, preferem o abrigo, a segurança, o estável, a rotina. Quem viaja está sujeito ao imprevisto, às interrupções do caminho, às mudanças do clima e de rumo. O leitor também. Alguns não agüentam o suspense e pulam páginas, querem chegar logo ao final. Outros levam anos lendo um único livro, saboreando a estrada, longas estradas. Sempre sujeitos ao inesperado.


O que um viajante vai encontrar pela frente? Nem sempre se sabe quando a estrada é boa ou ruim, bem conservada ou péssima, cheia de buracos. Não se sabe quais serão os percalços do caminho. E a leitura? Pode-se perguntar: vou gostar deste livro? Desta crônica? O que ela tem a me dizer? A mesma coisa com a estrada, com um roteiro escolhido. Quem viaja nem sempre encontra conforto, água fresca, comida boa e roupa lavada. A leitura, igualmente, nem sempre se apresenta pronta, acabada. Daí a sensação de que, numa adaptação moderna de uma frase do filósofo Heráclito de Éfeso, nunca passamos pela mesma estrada duas vezes, assim como nunca nos banhamos na mesma água de um rio. Tudo flui, se movimenta e está em constante mudança. Experimente ler o mesmo livro duas, três vezes! Você ou o livro nunca serão os mesmos.


Livros são estradas que se abrem para a mente e para o coração. São lugares a serem explorados, como quem admira uma paisagem. Imagine um viajante num belvedere olhando um vale, uma cadeia de montanhas, um rio caudaloso ou um riozinho escondido no meio de uma densa mata, um monumento arquitetônico, uma festa popular, um show folclórico.


Livros e estradas se confundem e se misturam nas descobertas. Ler um livro é deixar um caminho sempre aberto, é se permitir percursos novos, é admitir caminhar por estradas desconhecidas. Ler um livro ajuda a saborear melhor a vida, é como fazer uma grande viagem.


domingo, 7 de março de 2010

Para decifrar o futuro

Renato Muniz Barretto de Carvalho

O futuro nos engana direitinho. Quando nós pensamos que o alcançamos, ele dá um salto para frente e foge de nós. Muitos não desistem nunca deste jogo de pega-pega, de perseguição incansável, outros vão ficando pelo caminho. É que dá um trabalho danado tentar entender o futuro e seus joguinhos, seus truques. Isso mesmo, o futuro usa de artimanhas para não se deixar alcançar.

Talvez seja perigoso alcançar o futuro. E se alguém quiser aprisioná-lo e controlar seus passos? Seria uma tragédia. Por isso, o futuro está sempre à nossa frente. Mesmo assim, mesmo sabendo disso, estamos sempre correndo, procurando desvendar seus mistérios, tentando nos antecipar.

São várias as maneiras de tentar chegar perto do futuro. Existem os métodos tradicionais, e, dentre eles, as adivinhações. É uma verdadeira tentação, raros são os que não caem nessa. Vira e mexe e dizemos algo assim: “já sei o que vai acontecer”. E quando acontece alguma coisa que suspeitávamos que fosse acontecer, a gente diz: “eu sabia”. Será que sabia mesmo? Qual o segredo? Qual o método?

Existem também os procedimentos mágicos. Por exemplo, ler pedrinhas, interpretar os búzios, decifrar conchinhas. Uns gostam de ler as mãos, a testa, o olhar. Outros jogam cartas, jogam baralhos ciganos, tentam ler o que dizem as folhas de chá no fundo da xícara, não saem de casa sem consultar horóscopos.

A leitura do tempo, do clima, é rica em exemplos. A pessoa olha para o céu e diz: “vai chover”, ou então: “teremos dias muito quentes daqui para frente”. Nem o calo do Sr. Antônio e nem a certeza quase religiosa da Maria, dois conhecidos meus, que adoram observar o vôo rasante dos pássaros e as aranhas construírem ou desmancharem suas teias, garantem os acertos. Quando a Maria observa algum sinal significativo, ela corre até o varal de roupas e recolhe tudo e depois fecha todas as janelas. Mas nem sempre acerta e volta com a roupa para o varal, torna a abrir as janelas.

Fora do terreno místico e das adivinhações, existe a ciência dita exata. Existem os cálculos, as certezas científicas, o método racional. No caso das previsões do tempo, existem os satélites, a meteorologia, a climatologia, as previsões matemáticas. No caso da saúde, existe a medicina preventiva, o saneamento básico, as vacinas. A engenharia trabalha com modelos, com computadores avançadíssimos. Mas nada disso é infalível. É claro que uma boa dose de bom senso já seria suficiente para prevenir muita coisa desagradável e danosa à saúde e ao bem estar. Mas o bom senso varia de pessoa a pessoa, é algo cultural. Nem sei se compreendo bem a ciência moderna e seus rituais.

Não se deve negar o conhecimento científico, muito menos as sensações que certas pessoas dizem experimentar, mas o desejo impulsivo de saber o futuro pode obscurecer qualquer tentativa válida. O futuro é mais forte, mais rápido, mais persuasivo, mais prenhe de possibilidades.

Restam-nos poucas alternativas: prepararmos-nos para as surpresas que o futuro reservar, se é que isso é possível, ou reabrir os oráculos.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Crônica do sábado

Renato Muniz Barretto de Carvalho

Não tem dia melhor para se caracterizar como um dia especial do que o sábado. É curioso, mas eu explico. Um dia qualquer, um dia comum, é um dia em que as pessoas fazem o que precisa ser feito, quando elas se desincumbem de suas obrigações, desempenham suas funções ou cumprem suas jornadas de trabalho. Não são dias de muita criatividade, são dias burocráticos. Servem para deixar o tempo correr. Neste intervalo de cinco dias, de segunda a sexta-feira, também conhecidos por “dias da semana”, não existe muita chance para inovações, para grandes ousadias. Este raciocínio não vale para aquelas profissões cujo dia da semana pouco importa, como, por exemplo, porteiros, atores, músicos, policiais, funcionários de supermercados, de lojas e de postos de gasolina. Também não vale para empresários, políticos e desempregados.

A não ser quando alguém está descontente, não se pensa muito na rotina envolvida nos dias da semana. Esses cinco dias não são dias especiais e, quase sempre, você tem de executar atividades quase obrigatórias, sobre as quais você não tem muito controle. Se você trabalha numa empresa qualquer, numa loja, ou num banco, a rotina é seu ponto de partida e de chegada. Tem horário para entrar, para almoçar, para sair. Na maioria das empresas não se discute a programação, o roteiro já vem pronto.

Se você vai à escola, também não tem jeito de alterar a rotina, a não ser nas férias. Nos dias da semana, vai se preocupar com trabalhos escolares, com provas, com compromissos sobre os quais você não teve como interferir ou participar do planejamento. Já recebe a programação pronta. Infelizmente, as escolas não permitem muitas novidades nessa área.

Rotina se confunde com cotidiano, com hábitos arraigados. Rotina você obedece sem pensar, existem poucas possibilidades de mudança. Mas muitos não gostam de sair da rotina, acabam se acostumando.

Os sábados são especiais, são diferentes. Para a maioria, não há roteiro pré-estabelecido. Logo de manhã, por exemplo, muita gente sai de casa para fazer compras, para cortar o cabelo, para passear à toa. Pode-se ficar na cama até mais tarde, sem culpa. Uns vão a lojas que não costumam freqüentar nos dias comuns. Aproveitam para fazer coisas que não fariam nos dias da semana. Outros pagam contas, vão a uma lotérica, apostam num sonho, vão a lugares inusitados. O poeta Vinícius de Moraes cantou o sábado numa poesia memorável: “O dia da criação”. Leia, você vai gostar.

Sábado à tarde é possível encontrar amigos, é possível descansar, dormir mais um pouquinho. Mas é à noite que existem as melhores possibilidades de sair da rotina. São festas, bares, eventos, uma peça de teatro, um show, um encontro, e o sábado pode se tornar um momento mágico, transformar-se numa data inesquecível. Muitos ainda não conseguem, mas estão no caminho. É que sair da rotina ainda é difícil.

No domingo, as coisas voltam ao normal. Por isso, aproveite seu sábado!

sábado, 13 de junho de 2009

Debaixo da cama

Renato Muniz Barretto de Carvalho

Muitas pessoas, especialmente as crianças, procuram algo embaixo da cama. À noite, isso pode ser assustador. Pode-se encontrar muita coisa embaixo da cama. Monstros são os mais visados. Medos, sujeira e nada são as coisas mais encontradas, dentre outros objetos e situações.

Para quem tem receios, aconselho, logo ao se deitar, que se debruce na beirada da cama e dobre o pescoço, discretamente, até conseguir visualizar bem o vão existente. Não faça barulho e evite se mexer muito. Não demonstre sua intenção de olhar. Seja sutil, disfarce, movimente-se devagar. Mas, tente visualizar todo o espaço visível, veja se consegue enxergar o outro lado. Vire a cabeça em todas as direções, e, se for necessário, use uma lanterna. Se não encontrar nada, pode dormir sossegado. Mesmo assim, é preciso reconhecer, muitos não terão uma noite tranquila de sono. Nunca se sabe quando alguma coisa chegará para preencher o espaço vazio debaixo da cama.

Quantos estão nessa situação? Centenas? Milhares? Onde estão? Por quê? Respostas difíceis devido à complexidade do problema. O que os assusta? O que os preocupa?

Fantasmas foram mais comuns no passado. Hoje, parece que os fantasmas estão mudados. Pouca gente se preocupa com eles. Na verdade, deixaram de ser coletivos, sociais, e passaram a ser individuais, pessoais. Cada um tem seus próprios fantasmas, quando os tem. Assim sendo, não se pode falar muito sobre sua forma ou validar sua existência. Cada um que cuide de suas próprias criaturas. Desconfio de alguns que ainda nos assombram: o espectro do comunismo, desde 1848, ainda não foi embora, e desconfio que não vá tão cedo. Como ele assustou as pessoas esse tempo todo, mais de cento e cinquenta anos, não é algo a se desprezar. Eu, se fosse você, prestava mais atenção.

Fala-se muito no fantasma do desemprego. Se for uma questão de crença, não creio que ele se esconda debaixo da cama. De tão falado, assusta, apavora. Seu modo de agir é causar insônia, por isso o enigma não está embaixo da cama, nem em cima e nem do lado, mas nas ruas, nas empresas, na política, nos palácios. Existem os fantasmas das guerras, das bombas, do pesadelo nuclear. Quanto a estes é preciso muito juízo.

O que mais se procura embaixo da cama são incertezas, medos, dúvidas e as próprias fraquezas. Alguns medos levam as pessoas a procurarem chifre em cabeça de cavalo, debaixo da cama, é claro. Acabam falando bobagens, como no caso da violência urbana, do avanço tecnológico, das mudanças nos costumes.

Em algumas circunstâncias especiais, algo mais se esconde embaixo da cama, como os animais peçonhentos, cobras, baratas e escorpiões, mas para estes existem remédios, saneamento básico, políticas públicas. Já os demais não se eliminam tão facilmente. São coisas que persistem, assustam, incomodam. As soluções existem, mas a reincidência é grande e as recaídas são constantes. Trata-se de um problema crônico, agravado por circunstâncias recorrentes, alucinações ou delírios. Algumas pessoas emagrecem, perdem o sono, irritam-se, tornam-se agressivas e autoritárias.

Cuidado com seus sonhos ou pesadelos. Se for preciso, procure alguém para interpretá-los. Existem bons especialistas no mercado, mas cuidado com os charlatões.