terça-feira, 29 de março de 2022

A taubinha

Renato Muniz B. Carvalho

Ah, as palavras! Tão simples e tão complexas, dependendo do que fazemos com elas, de quem as utiliza. O que fazer? Endeusar, engessar, ignorar, modificar, estudar… Eu prefiro brincar, prefiro rir, sonhar, descobrir novos significados e usos. Prefiro guardá-las na algibeira, ou será no alforje, no embornal, no bolso? Quando precisar de uma, eu pego e escrevo, falo, grito, sussurro.

Será que alguém ainda sabe o que é um embornal? Melhor guardar na pochete. Pochete? Por acaso, os lexicógrafos já registraram esta palavra? Meu computador não reconhece. Se não está registrada, não pode? Mas está lá, nos dicionários: substantivo feminino, veio do francês “pochette”, perdeu um “t” e foi aportuguesada. Hoje, está nas cinturas, servindo para guardar dinheiro, documentos, bugigangas, além dos meus medos, que não os quero esparramados por aí. Alguns a consideram brega, fora de moda, mas eu gosto e sigo usando, o objeto e a palavra.

Na minha infância, eu gostava de prestar atenção nas conversas dos adultos, com o consentimento deles, é claro! Eu queria aprender muitas coisas, saber das novidades do mundo, conhecer palavras diferentes, até inventar algumas. Na fazenda do meu avô, convivíamos com uma realidade diferente daquela com a qual estávamos acostumados na cidade. Outra cultura, outros hábitos e palavras desconhecidas para mim. O que me deixava admirado eram as pronúncias, as gírias, os sons. Eu ficava curioso com os sotaques, com a articulação do texto, com a espontaneidade da fala.

Jovem inexperiente, abarrotado de ignorâncias, principiante quanto ao vocabulário e inábil com os códigos, eu enxergava erros, imperfeições, falhas. Mas o equivocado ali era eu. Mais tarde, reconheci os preconceitos e iniciei um longo caminho de superação. Quanto mais eu tentava compreender a multiplicidade da linguagem, mais eu ficava maravilhado, mais eu percebia sua riqueza. Um mundo fantástico. Depois, veio o tempo das leituras, das descobertas literárias, da fantasia e da vontade de mudar o mundo.

Tem coisas que a gente pega depressa, outras demandam mais tempo. Adolescentes são afobados, quase tudo relacionado a essa fase é urgente, é cachoeira, e não remanso. O exercício da paciência deveria fazer parte do currículo escolar. Com impaciência, passamos por cima de muita coisa, pulamos etapas, escalamos a montanha sem ter aproveitado a planície. Nesse processo, muitas palavras ficam pra trás, sentimentos são menosprezados, perdem-se conceitos, ganha a intolerância. Eu segui incorporando palavras.

Minha tristeza foi quando, um dia, encontrei uma taubinha — para quem não sabe: “tábua pequena” —, e não pude usar. De uso muito comum no meio rural e presente na música popular brasileira, uma simpatia. Mas não constava dos dicionários. Logo apareceu alguém que desaprovou, até topei com um termo incomum: metátese. Negaram, assim como hoje pretendem impedir expressões capazes de incorporar a diversidade humana, promover maior inclusão. Com autoritarismo, querem congelar algo que não se controla: a língua. Será medo do futuro?

 Referências:

Adoniram Barbosa: Saudosa Maloca (1951): “Cada táuba que caia/Doía no coração”; e Tiro ao Álvaro (1960): “De tanto leva frechada do teu olhar/Meu peito até parece sabe o quê?/Táubua de tiro ao Álvaro...” Esta música, escrita em parceria com Osvaldo Molles, foi censurada pela ditadura militar “por conter uma letra humorística com palavras propositadamente incorretas”.

Publicada no Jornal da Manhã: https://jmonline.com.br/novo/?paginas/articulistas,67

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terça-feira, 15 de março de 2022

Um diálogo possível

 Renato Muniz B. Carvalho

         Quem nunca tentou conversar com um animal que atire a primeira pedra. Calma, é só uma figura de linguagem, uma expressão de origem bíblica; não sou favorável a essa prática arcaica. Sabendo que não vamos atirar pedras em ninguém, muito menos nos bichos, podemos iniciar a conversa.

Penso que, se alguém deseja cruzar as fronteiras da comunicação entre humanos e animais, uma das primeiras providências deve ser saber o nome do interlocutor, sejam papagaios, cãozinhos, bovinos, porquinhos, galinhas etc. Cavalos sempre tiveram personalidade forte. Um cavalo que me vem à memória é o famoso Rocinante, a magricela montaria de Dom Quixote, personagem do livro de Miguel de Cervantes. O cavalo do meu avô chamava-se Gavião. Qual cavalo vem à sua memória: Pégaso, Pé de Pano, Ventania? Uma vez nomeados e identificados, os bichos adquirem personalidade e espera-se deles que compreendam as ordens humanas ou, ao menos, deem algum retorno.

Na fazenda do meu avô, eu gostava de observar as várias “linguagens”. Eu gostava de ouvir o “ti ti ti”, da Dona Auxiliadora ao chamar as galinhas, o “cocho, cocho, cocho” do Bastiãozinho quando ele chamava os porcos no mangueiro. Os cachorros recebiam maior atenção e vocabulário diferenciado: “pega!”, “deita!”, “quieto!”, além de conversas mais elaboradas.

Atenção inconfundível também recebia a vacada leiteira. Elas tinham nomes e orientações específicas relacionadas a cada momento da vida: prenhez, parição, ordenha, desmama etc. Eu gostava de vê-las chegando ao curral, respondendo ao chamado: “vem, vem, vem…”.

Onomatopeias à parte, uma falsa ideia de superioridade leva muita gente boa a crer que os animais os compreendem e, portanto, os obedecem. Esperam respostas no mesmo nível de complexidade — o que para alguns humanos não é difícil —; respostas às ordens e aos comandos, na maior parte dos casos. Eis a origem de tanta incompreensão, de tantas agressões, distorções e desentendimentos. Ah, o desprezo pela comunicação! Não me refiro à correção gramatical, isso é outra coisa.

Eu presenciei, durante as férias passadas na fazenda, inúmeras tentativas frustradas de conversação. O lado mais triste disso tudo é que a aparente incapacidade animal de entender ordens era punida com pauladas, chicotadas e coisas piores. Inadmissível! Sempre existiam os mais pacientes e condescendentes — neste caso, refiro-me aos humanos, que tinham um carinho especial com as criações, e não ficavam irritados se não havia retorno. Reconheça-se, eram os que recebiam alguma resposta, os que sabiam ouvir o que tinham a dizer bezerros, cães e outros animais, fosse por vocalização, olhar ou expressão corporal. Muita gente não tem ideia da força de um olhar. Nesses momentos, é inútil ter pressa ou agir com violência, atitude comum da maioria, infelizmente. O diálogo, para humanos e animais, se há boa vontade, é possível. E imprescindível!


Publicada no Jornal da Manhã:

https://jmonline.com.br/novo/?paginas/articulistas,675


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quarta-feira, 9 de março de 2022

Minhas férias

 Renato Muniz B. Carvalho

 

Penso que nenhum estudante do ensino fundamental escapou do título acima nas redações obrigatórias de início do ano escolar. Provavelmente, uma boa parte das narrativas relacionava-se às férias passadas em fazendas de parentes ou amigos, sobretudo no interior, onde a ligação com o meio rural era significativa.

 Os relatos concentravam-se nos passeios a cavalo, nos banhos de cachoeira, na gostosa comida feita no fogão a lenha e nos namoros efêmeros. A memória afetiva conservou e se deixou levar, anos afora, por essas recordações. Paixões, lembranças e descobertas povoaram — e ainda povoam — os textos produzidos. Parece, entretanto, que essa referência temática vai entrando em declínio diante da urbanização acelerada da vida social e das inevitáveis transformações socioeconômicas em curso.

 Nas idas à fazenda do meu avô, me recordo da quantidade de pacotes, sacolas e objetos diversos. Era muita coisa, mesmo que fôssemos ficar apenas um final de semana. Pensando bem, com a devida distância no tempo, dava dó da minha mãe: cabia a ela separar, organizar e guardar roupas, botinas, alimentos, querosene, vela, esparadrapo etc. O volume da bagagem indicava que passaríamos, no mínimo, um mês na fazenda. Um dia, meu irmão caçula ficou para trás. Quando meus pais se lembraram, estavam quase saindo da cidade e tiveram de voltar, apavorados com o esquecimento.

 Já adolescentes, meu irmão e eu ganhamos autonomia para irmos sozinhos à fazenda. Naquele tempo, a eletricidade já tinha dado as caras. Meu avô vinha nos buscar e saíamos bem cedo, escuro ainda, curtindo o frio da madrugada na carroceria de uma velha camionete. Na tralha que levávamos não faltava pão sovado, baralho, livros, chapéu e uma muda de roupas. Certa vez, como não nos agradasse a programação das estações de rádio — e indiferentes em relação ao tamanho da bagagem —, resolvemos levar um toca-discos portátil. Queríamos escutar o Milton, o Chico, o Vandré, o Gil, o Caetano, o Bob Dylan, a Joan Baez e outros artistas de nossa preferência. À noite, na varanda, escutávamos música, conversámos e líamos bastante.

 Tenho certeza de que não incomodávamos ninguém, nem bicho nem gente. O som alcançava poucos metros, não indo além do limite tênue da luz. Penso nisso quando me deparo com recente relatório do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), que identifica alguns problemas ambientais atuais (fevereiro de 2022). Segundo o documento, a poluição sonora nas cidades é uma ameaça à saúde pública. Som alto e constante prejudica a saúde, acarretando “irritação crônica e distúrbios do sono, resultando em doenças cardíacas e distúrbios metabólicos graves, como diabetes, deficiência auditiva e saúde mental mais comprometida”.

 Tenho boas recordações daquele tempo. Certas canções entraram para a história, sem se perderem os sons suaves daquelas noites guardadas na memória. Hoje, quem não tira férias são os ruídos que nos cercam, insensatos e insanos. Um flagelo!

 

Para ter acesso ao Relatório completo, clicar aqui: https://www.unep.org/pt-br/resources/fronteiras-2022-barulho-chamas-e-descompasso


Publicada no Jornal da Manhã:

https://jmonline.com.br/novo/?paginas/articulistas,675


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