Renato Muniz B. Carvalho
Os deslocamentos sempre representaram um quebra-cabeça para a espécie humana. Apesar disso, correr atrás das grandes manadas, realizar travessias marítimas intermináveis, enfrentar filas de restaurante no fim de semana tem algo de épico. Ah, como é bom poder ir aonde queremos, cruzar fronteiras e atravessar desertos! Durante muito tempo, para realizar essas façanhas só dependíamos de combustível barato, malha rodoviária razoável e uma boa rede de assistência mecânica. O sonho se tornou realidade, pelo menos para alguns. Os outros continuaram dependendo de ônibus ou trens lotados.
Logo que surgiram, os automóveis tornaram-se merecedores de regalias, dentre elas cômodos exclusivos, também chamados de garagem, vaga ou estacionamento. Prédios antigos e construções históricas foram derrubados para dar lugar aos carros, áreas verdes ficaram cada vez mais escassas. Aos espaços específicos e delimitados seguiram-se regras gerais de circulação, controle de velocidade, sinais, semáforos, linhas, signos, placas etc. Uma complexidade de dar inveja aos burocratas. Até gatos e cachorros respeitam o trânsito: já viram cachorros atravessando uma rua movimentada? A atenção com que atravessam é impressionante, alguns inclusive usam as faixas de pedestre, comportamento que muitos humanos têm dificuldade de executar.
Com o passar do tempo, os automóveis se tornaram cada vez mais inteligentes. Dos modelos que estacionavam sozinhos aos que ganharam plena autonomia, foi um passo ou, melhor dizendo, uma volta do pneu. Não sei bem quando foi, mas, um dia, um dos mais tecnológicos veículos da nova safra, totalmente informatizado, desses que circulam sem motorista, virou-se para seu proprietário e se ofereceu para ir à farmácia comprar um analgésico: “Pode deixar que eu vou, continue assistindo à TV, não saia daí”.
Pronto! Nunca mais a história foi a mesma, desde o tempo em que os beduínos atravessavam o deserto em camelos. Os carros dominaram o mundo. Tentativas de controle foram inúteis: radares, legislação restritiva, pedágios, buracos na pista, falta de vagas e preços dos combustíveis nas alturas não impediram o aumento da frota. A forte e desigual relação de dependência se consolidou — a favor dos automóveis! Até o dia em que os carros cercaram as portas das residências, bloquearam as vias de circulação e grandes congestionamentos se formaram. Foi o caos! A partir daí, os humanos passaram a trabalhar para os carros: encher o tanque, deixá-los limpos e brilhantes, econômicos, ergonômicos, confortáveis…
Hoje, nós entramos nos carros sem saber aonde vamos, por que, quando e se chegaremos. Eles, os veículos, dizem que tudo se fez e se faz em nome do progresso, da riqueza da nação. Então tá!
Publicada no Jornal da Manhã: https://jmonline.com.br/novo/?paginas/articulistas,675
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