segunda-feira, 23 de setembro de 2019

A solidão



Renato Muniz Barretto de Carvalho

Ando preocupado com a solidão, a minha e a dos demais. Claro, tem uns e outros que são rabugentos, detestam relacionamentos, não cumprimentam os vizinhos, não ligam de ficar sozinhos — não é o meu caso. Convivência é algo social, político, cultural, não se regula por decreto, por mágica, nem cai do céu. Convivência se constrói no dia a dia, em encontros no elevador, nas lojas, nos ônibus, nas escolas, nas repartições públicas, no trabalho. Mas anda difícil.

No passado, quem morava em prédios residenciais, devia se lembrar de como era bom conversar com o porteiro sobre futebol, sobre os vizinhos, sobre a vida… Aos poucos, os porteiros foram eliminados. Quando muito, restou um faxineiro, a não ser nos prédios muito chiques, mas aí os moradores saem de carro, nem observam o rosto dos porteiros, geralmente escondidos em guaritas fortificadas. Nas casas, os muros e grades é que predominam.

Os mercadinhos antigos, onde ainda se podia comprar fiado e anotar despesas em cadernetas, estão em extinção. Ali, se o camarada não tivesse dinheiro, levava assim mesmo. Sempre era possível provar uma azeitona pescada no vidro de boca larga, fazer considerações sobre o tempo, observar o movimento das nuvens e comentar despreocupadamente: “será que vai chover hoje?” Até os mais tímidos eram capazes de esboçar um sorriso e de responder a um aceno. Hoje, nos supermercados, no máximo se pode cumprimentar a pessoa no caixa, e rápido, que é pra não atrapalhar a fila que se formou atrás. Nesses casos, melhor não conversar com ninguém, vai que a pessoa pensa o oposto em termos políticos, vai que uma palavra mal colocada ofende o indivíduo, incomoda a mocinha envolvida com o celular, atrapalha o estudante preocupado com suas notas… Melhor não!

Os carteiros estão minguando, assim como as cartas. Daqui a pouco, vão eliminar os frentistas, como já fizeram com os cobradores nos ônibus. A palavra da vez é terceirização. Só que não nos contam é que estão substituindo pessoas por máquinas. Outro dia, tentei ligar para o telefone de uma grande empresa e me dei mal! Quem atendeu foi uma máquina e ela falou comigo como se fosse gente, me pediu para digitar opções no teclado infinitas vezes até resolver o problema. Quase desisti!

Eu observo os carros que param no sinal. Muitos estão com os vidros levantados. Outros, mais distraídos, à menor aproximação de um pedinte, tratam de subir seus vidros, fingem que não são responsáveis pela miséria do cara ali na rua. Está esquisito!

É cada vez mais comum a presença de poucos moradores nas residências: dois, no máximo três, por habitação, em média. Quando chegam à noite em suas casas, ligam a TV, continuam grudados no celular, esquecem-se que a vida é formada por encontros. Talvez seja uma estratégia de eliminação do convívio social. Será? Não caiam nesse golpe!

 Crônica publicada no Jornal da Manhã, em 22 de setembro de 2019. Revisão e leitura atenta de Hugo Maciel de Carvalho (se quiser saber mais sobre o trabalho dele, clique aqui).

domingo, 8 de setembro de 2019

É fogo!


 Renato Muniz Barretto de Carvalho

Eis uma palavrinha rica em significados: “fogo”. São apenas quatro letras, sendo uma delas repetida, duas sílabas e muitos problemas. Tem pra todo gosto: de cachaça a excitação sexual, de religião a meio ambiente. Não é admirável? Os dicionários dizem que sua origem é o latim: focus. Como substantivo, refere-se ao resultado da combustão, a incêndio, a tiro de arma de fogo, calor, brilho, luz etc. Nos tempos do Brasil Colônia, a palavra era muito comum para se referir às casas de família em uma vila.

O fogo esteve ligado ao suplício dos condenados à morte na fogueira — afinal, na Idade Média se acreditava que o fogo limpava, purificava a alma perversa. Os condenados geralmente eram mulheres. Se fossem inocentes iam para o céu; se fossem culpadas, iam para o inferno e o pecado expurgado. Eu, hein! Ainda bem que essa ideia ficou restrita à Idade Média, não é?

Ah, como interjeição, “fogo” também significa decepção, espanto, desagrado e indignação. É fogo!

Entre o terror, que provoca medo e ódio, e o prazer, fico com os ardores da paixão, com os entusiasmos do amor e a alegria da vida. Cada um com suas escolhas. Prefiro Camões e seu “Amor é um fogo que arde sem se ver / É ferida que dói, e não se sente / É um contentamento descontente / É dor que desatina sem doer.” Mas deve-se reconhecer: há os que, ainda presos ao passado medieval, acham que o fogo vai limpar tudo, inclusive as próprias impurezas. É fogo!

Ao contrário do que o senso comum apregoa, fogo não é tudo igual. Tem de vários tipos; fogo tem classe social, tem lado político, tem ideologia e diferenciação ambiental. É pedagógico: desde menino nos ensinam que não devemos brincar com fogo: “Quem brinca com fogo faz xixi na cama!”

Fogo é arte, pode ser algo bonito, intrigante ou terrível. Pintores retrataram chamas, fogaréus, incêndios e fogueiras de inúmeras maneiras. Rene Magritte, o genial pintor belga, pintou a tela “O Fogo” em 1943. “O Grito”, a famosa obra expressionista do norueguês Edvard Munch, mostra tons de um fogo assustador no céu: as “línguas de fogo”, conforme suas próprias palavras. Mas não foram poucas as ocasiões em que o fogo destruiu obras de arte, museus, livros, teatros… Eu cuspo fogo quando leio uma notícia dessas.

Tem fogo provocado por criminosos, por desastrados, por ignorantes. Há insensatez nas queimadas feitas com intenção de limpar áreas para pastagem e lavouras. Tem fogo colocado por miseráveis que, sem dinheiro para comprar gás, cozinham com lenha ou fazem fogueiras para se esquentar em noites frias. Tem fogo natural, que se inicia devido a descargas elétricas, à sequidão etc. Tem fogo provocado por pessoas desonestas, por irresponsáveis, por gananciosos. Hoje, incendiar florestas é o que de mais atrasado e estúpido existe.

Fogo, melhor o da paixão!


 Crônica publicada no Jornal da Manhã, 08/09/2019. Leia aqui.

Revisão: Revise Reveja. Quer saber mais? Acesse aqui.

quinta-feira, 5 de setembro de 2019

Livro: O Brasil à luz do espelho



O Brasil à luz do espelho – sombras, conflitos e reflexões*

Livros são sempre necessários. Fazem parte da nossa cultura há séculos e, ao contrário do que alguns alegam, não estão condenados ao desaparecimento. Os livros reúnem ideias, práticas e reflexões sobre as questões humanas em suas dimensões social, cultural, política, artística e científica. Constituem parte indissociável da memória da humanidade, anunciam o porvir e a esperança e não é possível caminhar rumo ao futuro sem eles.

Estas foram algumas das proposições levadas em conta na reunião dos 46 textos que compõem o livro Brasil à luz do espelho – sombras, conflitos e reflexões. Trata-se de uma obra coesa e repleta de diversidade: 54 autores de diversas regiões do país convidados para pensar a realidade brasileira do século XXI. Afinal, tempos implicados em contradições políticas e culturais acirradas pedem análises múltiplas e que suscitem o pensamento crítico.

A coletânea organizada por Ivanilda Barbosa, Silvana Elias e Vania Maria Resende, professoras com destacada trajetória intelectual ligada à política educacional e cultural em Uberaba (MG), desponta como iniciativa privilegiada na busca pelo entendimento da crise que desgasta as relações sociais no mundo e, especificamente, no Brasil neste início de século. Com um explícito compromisso humanista e plural, a obra conta com a colaboração de profissionais de diferentes áreas do conhecimento e história de trabalho dedicado à vida pública, para contribuírem com o que o momento exige: um diálogo aberto, democrático, sobre os rumos e as possibilidades da democracia no tempo presente.

Os artigos reunidos no livro discutem temas relacionados à política, educação, literatura, arte, novas mídias, questões de gênero, espiritualidade, informação, economia, ao contexto jurídico e ao meio ambiente. Uma pluralidade instigante e imprescindível para a compreensão da realidade atual.

Pensado também para oferecer subsídios a atividades pedagógicas em diferentes áreas do conhecimento, é uma publicação da Editora Humanitas e foi lançado no dia 27 de agosto de 2019, às 19h, durante a abertura do XXIII Congresso de Educadores de Uberaba e do Triângulo Mineiro, em Uberaba-MG. A partir de setembro, estão previstas outras atividades, como palestras e rodas de leitura, para debates sobre os assuntos abordados no livro, como a que vai acontecer no dia 24 de setembro, às 19h, no auditório Safira da UFTM.

Tive a honra de ser convidado a escrever um artigo para o livro: “Meio ambiente e Direitos Humanos”. Vamos ler! Vamos discutir!  

*BARBOSA, Ivanilda; ELIAS, Silvana; RESENDE, Vânia Maria (Orgs.). Brasil à luz do espelho – sombras, conflitos e reflexões. São Paulo: Humanitas, 2019.

Visite a página da Editora Humanitas aqui.

domingo, 1 de setembro de 2019

Ganhar no grito


Renato Muniz Barretto de Carvalho

Gritar está na moda. Gritar, falar alto, esgoelar, esbravejar, colocar o som no último volume, enfim, todas as formas de se fazer ouvir ou de impedir que o outro fale. Gritar para se defender e gritar para agredir; vale tudo! Quem grita mais alto? Talvez seja hora de se criar uma nova modalidade de competição olímpica: o grito.

Há variações. Por exemplo, os gritos ouvidos nas madrugadas. Podem ser gritos despreocupados, indecentes e incômodos, como o som alto e os exageros que se espalham nas festinhas nos quintais, nas varandas e mesmo nas ruas. Funciona assim: um grupo se reúne para beber, para fazer um churrasquinho, para conversar, para comemorar qualquer coisa — ou para nada — e se esquece da hora, dos vizinhos e da civilidade. Extrapolam, bebem além da conta e o som sobe, vai longe, ultrapassa muros e o bom senso. Sem perceber, ou percebendo, os deslumbrados soltam risadas, brigam como se não existisse mais ninguém no mundo, como se idosos, crianças e trabalhadores não importassem. “Danem-se os outros!”, “Eu quero curtir meu som, minha cerveja”. Afinal, pode ser o derradeiro dia do universo.

Existem os gritos de pavor e de medo. O grito de uma mulher que pede socorro, agredida por um marido raivoso e violento. O grito de quem foi assaltado, o grito de quem se sente sozinho, desesperado ou deprimido. O grito de uma criança que reclama de dor, de fome, de medo e de solidão. De uma criança abandonada, sem escola, sem brinquedos, sem acolhimento, sem futuro.

Existe o grito dos estádios, das partidas de futebol, das competições esportivas. Gritos de vitória e de derrota. Os gritos de exaltação ou de condenação. Existem os gritos legítimos de quem se sente traído, roubado em seus direitos, de quem luta por melhores salários, melhores condições de vida, mais saúde, emprego e educação. O grito dos excluídos, dos despossuídos, dos espoliados, dos alienados.

Gritam os alucinados que não sabem as razões de tantos gritos. Gritam os loucos e os apaixonados, pois acham bonitos os diferentes matizes, as várias tonalidades e nuances da voz. Gritam as crianças que brincam de pique, que jogam bola na rua, que empinam pipas, que andam livres de bicicleta nas ruas acolhedoras de uma cidade inexistente. Faz tempo…

Gritam de raiva os que não entendem o mundo em que vivem, os que não aceitam a diversidade humana, os que querem para si todos os privilégios. Gritam de ódio os que querem coibir a fala dos índios, dos negros, dos pobres. Gritam cheios de antipatia e de aversão os que desejam a volta da censura e do arbítrio, a violência do Estado, a punição para os opositores. Gritam os que não querem ouvir o amanhã chegar, os que já não dão conta de ouvir a semente germinar. Quem vai gritar mais alto? Ou virá um silêncio ensurdecedor?

Crônica publicada no Jornal da Manhã: leia aqui.

Revisão: Revise Reveja (Quer saber mais? Clique aqui).