quinta-feira, 16 de outubro de 2014
A árvore no centro do mundo
Renato Muniz Barretto
de Carvalho
Dependendo da idade, para algumas
crianças tudo é visto de modo ampliado, superlativo e aumentativo. Um cavalo
qualquer, por exemplo, desses de porte médio, vira um animal gigante, inesquecível
nas lembranças da infância. Uma pinguela, aquele tronco usado para facilitar a
passagem sobre o córrego fininho no fundo do quintal, transfigura-se numa
enorme e perigosa ponte intransponível. Por isso mesmo, nas brincadeiras
infantis, a necessidade, e a devida coragem, para se atravessar a tal pinguela
quantas vezes se desejar. E que brincadeira gostosa! Comidas simples se
transformam em iguarias e em paladares saudosos que nunca mais as pessoas
esquecerão, e nunca mais vão provar de novo, porque esses sabores da infância
não voltam. Árvores adquirem significados fantásticos e se transformam nos mais
inusitados objetos, geralmente imensos, como uma escada para o céu, ou para a
casa do gigante, num navio pirata, num castelo, e por aí vai.
Eu estava distraído, pensando nisso, na
falta de chuva e no vento seco levantando a poeira no horizonte, quando reparei
no frondoso pé de tamarindo à minha frente. O tronco cheio de ramificações, a
copa densa, muitos galhos, carregados de vagens, daquelas cheias de polpa
levemente amarga, conforme minhas lembranças. Recordei da pasta escura,
amarronzada, que minha tia Alda fazia e guardava em grandes potes de vidro com tampas
coloridas. Nas tardes quentes de verão, ela nos oferecia um suco delicioso e
doce, feito da pasta de tamarindo, que nunca mais tomei igual àquele. Mudou o
suco ou mudei eu? Ou o que mudou foi meu paladar, que envelheceu?
A visão daquela árvore grande, com seus
galhos balançando ao vento, me recordou também a Dona Ciloca. Ela era esposa do
Sr. Lico, proprietários da fazenda vizinha à dos meus avós. O casal tinha cinco
filhos, todos com idade muito próxima, uma escadinha, como minha mãe dizia.
Brincavam sempre juntos no quintal da sede. Às vezes se aventuravam no curral,
em pescarias de lambari no rio que cruzava a propriedade rural da família, ora
em passeios a cavalo, só permitidos aos três mais velhos.
Os meninos vinham nas férias escolares e
aí ficavam até o retorno às aulas. Às vezes, aprontavam das suas, como atirar pedras
em caixas de marimbondo ou nadar nos grandes cochos onde as vacas leiteiras
bebiam água nos piquetes. Eu costumava participar de todas as atividades deles,
pois era colega do seu filho mais velho.
Acordavam bem cedo e nunca começavam o
dia sem antes tomar uma grande caneca de leite tirado na hora, com bastante
espuma, acompanhada de um belo pedaço de pão sovado. Durante o dia, todas as
frutas existentes no quintal e nos campos, como as gabirobas e os cajuzinhos,
estavam permitidas. Almoço e jantar tinham hora certa e a base era arroz,
feijão e bife acebolado.
Na maior parte do tempo os meninos
estavam justamente ao redor de um bonito pé de tamarindo localizado bem no
centro do quintal da sede. Brincavam de tudo que se possa imaginar e mais um
pouquinho. Ora estavam debaixo da sombra gostosa daquela árvore aconchegante,
ora cada um num galho, os mais velhos nas grimpas, os mais difíceis de
alcançar, os mais novos nos galhos mais baixos.
Um dia, o Sr. Lico recebeu uma visita
ilustre de um pintor famoso de São Paulo que foi passar uma temporada na
fazenda. E que trouxe consigo pincéis, tintas, telas e outros apetrechos de
pintura. Isso encantava a todos, aquele conjunto de maletas, cores e líquidos
estranhos aguçava a curiosidade dos meninos.
O pintor pouco saía do casarão da sede e
passava a maior parte do tempo na varanda, trabalhando em suas pinturas. Quando
foi embora, deu de presente ao casal anfitrião um quadro bem bonito, que retratava
os cinco filhos brincando debaixo do pé de tamarindo. Os meninos pareciam
minúsculos pontos brancos diante de uma árvore imensa, colorida com infinitas
tonalidades trabalhadas em mínimas pinceladas que iam do verde mais intenso ao
amarelo mais brilhante. Aquele quadro retratava um mundo especial.
O tempo passou, e, como não podia deixar
de ser, tudo mudou. Os meninos cresceram e foram embora, cada um seguiu seu
destino. A fazenda foi vendida, os pastos viraram extensos canaviais.
Quando o Sr. Lico morreu, a família se reuniu
para tratar das coisas de partilha, das dívidas e dos haveres, para resolver os
créditos e os débitos a saldar. Depois, cada um voltou para suas vidas com
alguns objetos da herança, com os faqueiros, as louças e as lembranças do
patriarca. Dona Ciloca, para espanto de todos, só reclamou pra si um único
objeto, o quadro do tamarindo. Aquele tinha sido, por muito tempo, o centro do
seu mundo. Quem tem o centro do mundo em suas mãos precisa de mais alguma coisa?
Observação: o quadro que ilustra esta crônica é uma obra do pintor uberabense Hélvio Fantato (1920 - 1997), que aqui foi usado como mera fonte de inspiração literária, livre de qualquer relação com pessoas "reais"(pois somos todos uma grande ficção!).
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