sábado, 12 de abril de 2014
A chuva: observações de um meteorologista amador
Renato
Muniz Barretto de Carvalho
Perdi o sono. Não,
desta vez não foi a crise financeira mundial, nem os rumos da política ou o
iminente desastre educacional. Também não foram as dívidas e os incontáveis credores,
nem a ameaça preocupante do desemprego. Foi a chuva.
Eu não quero dormir
porque gosto de escutar a chuva. Nada mais. Quero escutar a chuva. A chuva
goteja ou pinga? Às vezes confundo o som das gotas com o tic tac do relógio. A chuva confunde o tempo, tapeia as horas – é
para isso que a chuva serve. Cada gota de chuva que cai faz um som diferente.
Depende de onde cai. Se cai numa folha larga faz um som, se cai no cimento faz
outro som, e assim por diante, cada gota um som. A cadência da chuva mansa é a
mesma do relógio da parede: tic tac, tic tac...
Não sei se o som do
relógio marca a chuva ou se é a chuva que organiza as horas. A chuva cai, o
tempo passa, mas parece que demora mais. A chuva atrasa o tempo, engana o
futuro, estica a vida. Por isso não gosto de dormir quando a chuva cai. Algumas
pessoas dizem que é bom dormir ouvindo a chuva; eu prefiro ouvir a chuva, então
que se dane o sono.
A chuva acelera o
passo, mais gotas juntam-se na sinfonia das horas, engrossam a enxurrada,
encharcam a terra, inundam as várzeas, enchem os canais dos rios, desbarrancam
morros, desabam casinhas.
As horas também fazem
um estrago na vida da gente. Carregam muitas coisas com elas, para bem longe,
tão longe que não as alcançamos mais. Um antigo mito, anotado por Heráclito,
diz que uma pessoa não consegue se banhar duas vezes nas mesmas águas de um
rio. Isso também vale para as horas. O tempo é um rio que transborda pedaços de
vida até a foz, até a desembocadura, onde todas as vidas e todas as águas se
juntam. Águas e horas tornam-se uma só, misturam-se sem maiores explicações,
sem razões. Entrelaçam-se no vapor que sobe até as montanhas mais altas, na
neblina que emana das florestas densas e das cachoeiras. Namoram na umidade das
madrugadas frias e silenciosas, até desaparecerem no calor suave das manhãs
ensolaradas.
A chuva passa,
aquieta-se, às vezes deixa vestígios, às vezes desaparece, vai embora sem que
se perceba. Assim é o tempo; quando a gente acha que entendeu alguma coisa,
vupt!, ele voa, ofusca-se e é preciso ir em busca da ocasião que se perdeu, do
trem que partiu, do sentimento submerso no esquecimento, ou aguardar mais uma
oportunidade, agarrar uma chance. São andamentos que podem vir na forma de uma
tempestade, quando o ideal seria uma chuvinha meiga, ou vice-versa.
A chuva é aguardada,
ansiosamente esperada e reverenciada. Ela marca as estações, delimita o tempo
de plantio, renova a vida. A temporada certa, a inclinação apropriada, a
distância entre o Sol e a Terra e o movimento da pressão atmosférica são
elementos que se conjugam e se encarregam de garantir a existência da água. O
tempo permite que as águas escorram devagar pelos troncos, se infiltrem no solo
e percorram as raízes, envolvam amorosamente as raízes para que, um dia, mais
adiante, brotem, formando riachos, córregos, ribeirões, arroios, rios, lagoas,
mares e lágrimas...
Uma hora, sem mais nem
menos, a chuva para, a vida também. Às vezes são intervalos, às vezes, no caso
da vida, é para sempre. O sono veio e vou dormir. A chuva cumpriu seu papel:
irrigou meus sonhos, aguou minhas esperanças.
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Um comentário:
Renato, muito bom! Que a chuva continue irrigando seu talento.
abraços
Toninho
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