segunda-feira, 27 de agosto de 2012

O diário de uma professora (parte XII)


80 anos da Elisa. A família reunida.


As pessoas costumam dizer que a vida é como um ciclo, em que se revezam nascimento e morte, miséria e fortuna. Não concordo com este dualismo, mas a dinâmica da vida e a riqueza das formas e dos conteúdos, com seus infinitos desdobramentos, nem sempre nos permitem enxergar a complexa diversidade da existência real e do porvir. A impressão que tenho hoje é que Elisa, apesar de abatida pelos revezes familiares, triste pelas perdas, sempre acreditou no amanhã. Pode parecer simplista, mas ela não desistiu de viver, mesmo dizendo: “chega de viver”. O que ela continua nos contando a seguir demonstra esta capacidade de superação.  

No Brasil, os anos 1960 foram tempos difíceis. Na política, na cultura, na vida das pessoas. Foi a década em que a população urbana ultrapassou a população rural. As pessoas deixaram o campo em direção às cidades, que passariam por um ciclo de crescimento e de mazelas sociais sem precedentes na história do país (favelas, violência, etc.). Em pouco mais de vinte anos a realidade rural, arcaica e tradicional do Brasil, presa às ideologias da aristocracia rural, cederia espaço para grandes cidades, muitas acima de 100.000 habitantes, algumas passariam de 500.000 habitantes. Iniciada nos anos 1950, a migração interna acelerou-se. As periferias das grandes cidades cresceram assustadoramente; uma cultura urbana, diversificada, multifacetada, juntando pedaços regionais, se desenvolve de modo criativo e impulsiona um processo de renovação.

Na política, JK passa o poder ao Jânio, eleito democraticamente, mas que renuncia após 8 meses de governo; o vice Jango é impedido de assumir, e o país conhece o parlamentarismo; volta atrás, e Jango assume, inicia as reformas de base, tão necessárias; é deposto por um golpe militar e o país conhece um retrocesso político tremendo. Tudo isso em quatro anos! O que nós estávamos fazendo? Cada um de nós. Onde estávamos? Como acompanhamos o desenrolar dos acontecimentos? Uns, muito novos, talvez nem ideia tivessem do que se passava; outros, mais velhos, talvez perplexos, sem atitudes a tomar. Muitos, envolvidos, a favor ou contra. O fato é que o país passaria por uma modernização conservadora, tão bem caracterizada por Celso Furtado no seu livro O Brasil pós-“Milagre”. Como ele constrói este raciocínio? Vejamos: “As malformações da sociedade brasileira são tão evidentes, tão grande o contraste entre a penúria e o desperdício, que todos devemos questionar-nos como foi possível que chegássemos a isso. Como conciliar essa realidade com as potencialidades do país e com o notável esforço de desenvolvimento já realizado?”

Este livro foi escrito em Paris, no início dos anos 1980. Celso Furtado, que teve seus direitos políticos cassados em 1964, não espera o fim do regime para se pronunciar contra o “emaranhado a que o levou [o Brasil] a uma prática política que se nega a ver problemas estruturais”. Ele se espanta ao perceber o quanto o país não reflete sobre si mesmo. E conclui: “Em síntese, no decênio compreendido entre 1964 e 1973, não obstante um considerável aumento do produto interno, não se assinala na economia brasileira nenhum ganho de autonomia na capacidade de autotransformação, nem tampouco qualquer reforço da aptidão da sociedade para autofinanciar o desenvolvimento”.

A família de Elisa cresce. Os netos se casam, nascem os bisnetos, cada um busca seu espaço no mundo. A idade acentua os problemas de saúde, em especial a diabetes. Com quase 80 anos, Elisa cuida de si e dos seus. Repete algumas anotações no Diário [não vou pular, nem “editar” nada]. Em 1963, completou 80 anos e ganhou uma bonita festa da família. Vamos ao Diário.

 O Diário (parte XII).

No dia 16 de dezembro, Neusa ganhou o seu filhinho. Chama-se Marcelo.

Nasceu pequenino e magrinho, mas como a mãe tem bastante leite, ele engordará em poucos dias. É uma criança mansa e muito parecida com o pai.

Neusa conseguiu remoção para um grupo escolar perto de Santos. Vai e volta às 6 da tarde. Está lecionando em 1º ano. Ela estranha, pois sempre trabalhou com 4º ano; mas no fim do ano serão coroados os seus esforços, pois é a classe que apresenta melhores resultados.

Dácio casou-se no dia 30 de janeiro e vai indo bem. Ele e Miriam compreendem-se muito bem. Júnior está matriculado no 5º ano (admissão) do Archidiocesano. Está satisfeito.

Júnior prestou exame e foi aprovado. Vai fazer, este ano, a 1ª série do ginásio.

Quando nos mudamos de Presidente Wenceslau para esta capital, nasceu o Sylvio (1º filho do Romeu). Era uma criança magrinha, mas logo se desenvolveu.

Dulce ficou encantada com o primeiro sobrinho e auxiliou Ciloca [esposa de Romeu] a cria-lo. Morávamos, nessa ocasião, à Rua Cândido Valle, na 6ª Parada. Eu lecionava no Grupo Escolar da Vila Gomes Cardim e, como não ficava longe, ia a pé com Cid, que frequentava o 3º ano primário. Era sua professora Dona Alzira, muito distinta (Dona Alzira já faleceu. Era uma professora muito simpática e bondosa. Morreu muito cedo).

Lúcio estava terminando o curso de farmácia e Olga foi, a convite de sua madrinha, lecionar no Jaborandy, às crianças da fazenda [Barretos, SP]. Romeu começou a trabalhar na Casa Bayton. Mais tarde, ele passou para a Casa Stolze, como técnico de rádio.

Da Rua Cândido Valle, mudamo-nos para Santana e fomos morar em uma boa casa e dali passamos para a Rua Voluntários da Pátria. Um amigo de Joãozinho estava de mudança para outro bairro e cedeu-nos a casa que possuía uma boa freguesia de plissês, Dulce aprendeu a fazer os plissês e trabalhamos bastante nesse serviço. Digo trabalhamos, porque ela sozinha não podia fechar as formas e era sempre auxiliada por mim ou pelo Lúcio. Este, muito paciente, conseguia reunir as pregas, que se levantavam, ao ser a fazenda retirada da forma.

Da Rua Voluntários da Pátria passamos para a Rua Duque de Caxias, pois Joãozinho havia adquirido um belíssimo gabinete dentário, na Praça do Patriarca e ali instalou-se como dentista. Ficamos alguns meses nessa casa e depois resolvemos mudar, pois não possuía quintal. Era um trabalho bastante desagradável para mim, trazer o corredor muito asseado logo pela manhã. Antes de preparar o café, eu fervia água para lavar o corredor e depois desinfetá-lo com creolina. Mesmo assim, começaram a aparecer moscas e houve reclamação dos vizinhos.

Mudamo-nos, então, para a Rua Vergueiro, quase em frente à Igreja Santo Agostinho. Era uma casa velha, mas possuía um bom quintal. Aí morreu o nosso Louro, um papagaio inteligentíssimo, falava mais de 100 palavras.

Aí Dulce conheceu Homero e aí nasceu Lúcia. Finalmente paramos de mudar, pois consegui levantar o meu montepio e comprei a casa da Rua Hermínio Lemos. Levei 12 anos para pagar a casa, mas em compensação não pagava imposto durante esse tempo, e nem água.

Logo que nos mudamos para a Rua Hermínio Lemos, Lúcio formou-se em farmácia e, poucos meses depois, casou-se com Eunice, indo trabalhar, isto é, tomar conta e dar o nome a uma farmácia em São Manoel.

Lúcio trabalhava em uma farmácia perto de São Manoel, quando se casou. Quando Neyde estava a chegar, Eunice veio para nossa casa, à Rua Hermínio Lemos. Aí nasceu Neyde, no dia 11 de junho e no dia 24 do mesmo mês e ano, nasceu Elza. Marina só chegou 10 anos depois da Neyde, quando Lúcio morava em Uruguaiana. Eu, Dulce e Dácio (este com 2 anos e meio) fomos de navio e de trem assistir ao nascimento de Marina. Seis meses depois, isto é, em janeiro do ano seguinte, chegou o Heraldo.

Aposentei-me em abril de 1932, depois de lecionar 31 anos. Depois de aposentada, sai diversas vezes, com Joãozinho. Estivemos em Avaí, Mato Grosso, Guaraçay, Alfredo de Castilho, Dracena, etc.

 Elisa e os bisnetos

Estamos em maio de 1963.

Em abril completei 80 anos e, de acordo com os filhos, fizemos uma reunião de todos no dia 14, pois Neusa achava que ela estaria na maternidade. Vieram todos e, aproveitando a reunião tiramos retratos.

São 16 netos e 7 bisnetos.

O segundo filhinho da Neusa chegou mesmo no dia 14 e chama-se Adriano. É bonitinho e bem forte.

Tive a satisfação de ver reunidos, aqui em casa do Homero, todos os meus netos, os maridos das netas, a esposa do neto (Miriam), os filhos e os bisnetos.

À noite, vieram os outros parentes e pessoas amigas, num total de mais de 150 pessoas.

Dia 7 de junho. Olga veio com a família. Fomos ao cemitério (eu, Olga e Dulce) levar flores para o Joãozinho e Romeu. Cada dia que se passa, mais saudades eu tenho de ambos.

Neusa foi com as crianças passar uns dias em São Sebastião.

Homero está doente e vai ser operado na próxima semana. Deus permita que tudo corra bem.

Homero foi operado e, infelizmente, o tumor é maligno. Coitado do Homero! Tão bom, tão trabalhador e tão alegre! Estamos tristes ao lembrarmos que ele não viverá muito tempo mais. E que falta vai fazer! Coitada da Dulce!

Durante a doença do Homero eu também fiquei doente, com uma úlcera no duodeno. O Dr. Moacyr receitou remédios e dieta para a úlcera e, em 4 meses, fiquei boa. Durante o tratamento da úlcera, como a dieta era grande, não tomei injeções de insulina, a conselho médico. Resultado, a glicose no sangue subiu a quase 300. Então voltei à insulina e tomei também diabase. A glicose baixou a 95 e então eu comecei a ter descontrole, chegando mesmo a cair.

Fui à consulta do Dr. Scanone e contando a ele que eu andava fazendo tolices como se fora criança, ele achou que eu tinha um começo de arteriosclerose, pois já completei 81 anos. Vindo ao Rio, contei o caso ao Lúcio e ele achou que eu estava tomando muita insulina e aconselhou-me a diminuir. Já diminui e, no próximo exame, vamos a ver o resultado. Fiz novo exame de sangue e a glicose baixou em virtude de ter diminuído a insulina. Lúcio acertou.

Homero faleceu no dia 13 de fevereiro.

No dia 10 de maio eu vim passar uns meses aqui no Rio.

Neusa teve seu terceiro filhinho, no dia 7 de junho (aniversário do meu velho) e foi feliz. O menino chama-se Frankie. Eu não o conheço ainda.

Elza tem mais um menino. Homero e Dulce são seus padrinhos. Ele, apesar de bem doente, foi com Dulce à Uberaba, batizá-lo. Chama-se Luciano.

Cid e Selma tem também mais uma menina – Nina. Eu e Homero somos os seus padrinhos, pois na ocasião do batizado, Homero estava com bastante saúde.

Depois do Frankie, chegou uma menina para Neusa. Chama-se Fernanda. Ela vai fazer dois anos no dia 9 de julho, digo junho. É uma menina muito viva e bonita. É morena e tem os cabelos encaracolados.

No começo de fevereiro, Dulce sofreu um desastre pavoroso de automóvel. Vindo do grupo com mais 3 colegas, quando um caminhão chocou-se com o carro atirando-a fora do carro e foi dada como morta. Esteve no Hospital das Clínicas e depois no Municipal muitos dias, em tratamento. Graças a Deus sarou e está trabalhando. (Continua na próxima semana).


 Elisa e os netos


 Elisa e os bisnetos

Elisa e os filhos da Neusa

Dulce, Homero e os sobrinhos, na Fazenda das Aroeiras

Elza, Dulce e Homero no batizado do Luciano
 



Um comentário:

Gabriela Muniz Barretto disse...

Oi Renato! Obrigada por esse diário com as suas observações! São preciosas para mim e eu dia eu vou mostrá-las ao meu filho de 6 anos. Eu tenho uma versão copiada desse diário copiada a mão, não sei bem por quem. Sou Gabriela Muniz Barretto, a caçula do Cid.