sexta-feira, 17 de agosto de 2012

O diário de uma professora (parte XI)


Elisa

Anos 1960. Anos de transição, no Brasil e no mundo todo. Até a década de 1950 o mundo ainda era muito “conservador”, com costumes rígidos e exclusão dos jovens, das mulheres e das chamadas minorias do processo político. Mas a pressão era cada vez maior por participação política e cultural. A expectativa era a superação do moralismo que dominava as relações familiares e o meio social. O panorama cultural brasileiro estava fortemente marcado pelas influências norte-americanas (o cinema, a música, a literatura, os quadrinhos), e, por outro lado, por tentativas de formação de uma identidade nacional.

Em termos mundiais, cresce o movimento intitulado como da contracultura, com manifestações musicais inovadoras (o rock and roll), o teatro de rua, novas expressões artísticas, literárias, e o movimento hippie com toda contestação que lhe foi característica. No mundo das artes, destacam-se o cinema francês, o cinema italiano e novos conceitos nas artes plásticas (as performances, as instalações, as vanguardas), etc. Chamam a atenção as ideias terceiro-mundistas de Gandhi, de Patrice Lumumba (assassinado em 1961), de Mandela e de Fidel Castro, dentre outros. Tem continuidade, mais radical agora, a descolonização dos países asiáticos e africanos.  É o tempo de João XXIII revolucionar a igreja católica, é o tempo da Teologia da Libertação, o tempo de John Kennedy nos EUA, do golpe militar no Brasil, da guerra de guerrilha de Che Guevara (executado na Bolívia em 1967), de Martin Luther King questionar o racismo nos EUA (e também morrer assassinado, em 1968).

Os primeiros anos da década de 1960 refletem as mudanças que se anunciam e que se ampliariam a partir daí. No contexto mundial, a Guerra Fria prossegue, intensifica-se a corrida armamentista e tecnológica, a esquerda avança, a luta pela paz e contra a Guerra do Vietnã mobiliza os jovens.

Nos anos 1960, a IBM lança o circuito integrado, ou chip (1964), surge a Arpanet, o embrião da Internet, os soviéticos enviam o primeiro homem ao espaço (Iuri Gagárin) em 1961, e Neil Armstrong é o primeiro homem a pisar na Lua, em 1969. Brasília é inaugurada em 1960. É o tempo dos Beatles, dos grandes festivais de rock e do teatro de vanguarda.

Ainda, nos anos 1960, o médico Christian Neethling Barnard realizou o primeiro transplante de coração, em 3 de dezembro de 1967.As cirurgias cardíacas e o entendimento dos problemas do coração avançaram bastante, mas Romeu, filho de Elisa, não alcançou esse tempo.

Olhando para trás, para um tempo que não volta mais, querendo ou não, sabendo disso ou não, nós, que vivemos o fim do século XX e o início do século XXI, somos frutos deste processo. O legado que temos hoje se enriqueceu, para além de todas as circunstâncias que nos cercaram, e ainda nos cercam, pela convivência com pessoas que, com simplicidade e humildade, nos ensinaram o “caminho das pedras” e a darmos importância a valores como a sensibilidade, a paz e a educação, como Elisa Wey.

Na vida de Elisa, ainda é um tempo de perdas, com a morte prematura do filho mais velho, Romeu. É também tempo de viagens, de luta contra o diabetes e de conhecer os bisnetos. A partir daqui, existem, no Diário, muitas frases soltas, muitos lapsos de tempo, algumas repetições. As viagens, as perdas de parentes próximos, alguns dissabores e a saúde fragilizada talvez expliquem estas falhas. 

Vamos ao Diário.

Elisa, no centro, com a filha Elza, com minha tia paterna, Alda, e os bisnetos:
 Maurício, Luciano, Roberto e Renato (no fundo), em Uberaba, MG.


O Diário (parte XI)

Passamos lá uns dias muito agradáveis e no fim da temporada, Homero foi nos buscar. Heraldo também passou uns dias lá. [Elisa e a filha Dulce estão em Poços de Caldas].

Eu não tenho passado bem das pernas. Elas estão inchadas e doem para andar. Quando estive no Rio, fiz tratamento das pernas e, como não ficasse boa, vou voltar por estes dias.

Elza tem mais um filhinho. Desta vez veio uma menina, vai se chamar Elisa e eu vou ser a madrinha. Pretendo ir a Uberaba, com Cid e Romeu, ainda este mês.

Sylvio vai bem com a empresa de turismo. Elza é mãe de 4 filhos, sendo 3 meninos e uma menina. Lúcia continua com o serviço de assistente social, no Rio. Neyde goza saúde em companhia do marido e do Rubinho. Neusa está esperando seu primeiro filhinho.

Marina forma-se este ano. Dácio vai indo bem com a empresa de turismo. Heraldo está terminando o 3º científico. Marilisa está fazendo o 1º científico, Cybele está na 1º série ginasial, Nelson está fazendo o 4º ano e admissão. Sylvia Heloísa também está fazendo o 4º ano.

Júnior está frequentando o 3º ano do grupo. Lucinho já completou um ano e é uma criança muito bonita e inteligente.

Gisele é a última filhinha do Cid. É uma criança linda e sadia.

No começo de agosto, fui com Romeu a Uberaba. Fomos batizar Elisa, filhinha da Elza. Fizemos de jeep, 1000 quilômetros, ida e volta e a viagem foi tão boa, que não me cansei.

Logo que voltamos de Uberaba, fui ao Rio, a fim de continuar o tratamento das pernas. Melhorei bastante e voltei no dia 31 de outubro, pois eu fiz questão de ir ao cemitério (dia dois de novembro) levar flores para enfeitar a sepultura de Joãozinho. Fomos: eu, Olga e Dulce, mas compramos poucas flores, porque o preço estava exorbitante. 600,00 cruzeiros a dúzia!!!

Passei o mês de dezembro em Santos, fazendo exame de sangue de 15 em 15 dias. No começo do mês, eu, Olga, Júlio e Neusa fomos à fazenda do Romeu [em Peruíbe, SP].

Passamos o dia lá, muito agradavelmente, pois Elza e as crianças lá estavam e se demoraram uns 15 dias. Estivemos apreciando as carpas na represa e eu tomei um banhão delicioso na bica. Romeu estava muito feliz em companhia da filha e dos netos. Voltamos à tardinha.

No dia 9 de dezembro, às 13 horas, Olga recebeu um telefonema de Peruíbe, pedindo oxigênio para Romeu, que estava passando mal.

Ela providenciou tudo, chamou o Franco, que estava em São Paulo, e tocamos para lá. Romeu não estava na fazenda, havia ido a Itariri fazer compras e sentiu-se mal. Foi a Itariri com Elza e 2 dos meninos, mas sentiu-se tão mal e tocou o jeep à toda, com uma das mãos, a outra comprimindo o coração que doía horrivelmente.

Quando eu e Olga chegamos à Peruíbe, encontramos Romeu em casa de uma família amiga. Olga preparou logo o tubo de oxigênio para ele respirar e momentos depois o médico veio tomar a sua pressão. Disse que estava tudo bem e avisou-nos que a ambulância estava à porta e que convinha que ele fosse transportado para Santos, pois ali não havia recursos para seu tratamento.

Colocaram Romeu numa maca, puseram na ambulância e seguimos para Santos: ele, eu e Olga. Sentei-me ao lado da maca e segurei sua mão; mas as dores eram tão fortes que ele virava de um lado para o outro e até de bruços ficou. Estava desesperado, o coitado.

Ao aproximarmo-nos de São Vicente, ele disse: mamãe, eu não aguento mais! Animei-o dizendo que estávamos chegando e, nessa ocasião, Olga perguntou se ele queria ficar em sua casa ou queria ir direto para o hospital. Respondeu que preferia ficar em casa da Olga.

Lá chegando, foi chamado o Dr. Vilarinhos, que veio imediatamente. Examinou o doente e disse que era urgente a sua remoção para o hospital, o que foi feito imediatamente. Lá chegando, tomou diversas injeções, foi tirado o sangue para exame, etc., mas tudo em vão. Pedia água e mais água e, num dado momento, seus olhos  se fixaram em mim e disse duas vezes seguidas: mamãe, eu vou morrer. Oh! Que punhalada senti no coração!

O meu filho, o meu Romeu estava a expirar!

Como é dolorosa a morte de um filho! Meus olhos se enchem de lágrimas ao lembrar-me dos seus últimos momentos. Sua voz, bastante fraca, sôa-me aos ouvidos, ao deitar-me, ao me levantar, a todo momento. Pobre filho!

Eu, Olga e Dulce fomos ao cemitério no começo do ano, a fim de enfeitarmos com flores o túmulo. Lá estão o pai e o filho mais velho. Quem deve ir agora, sou eu, pois já vou completar 79 anos e chega de viver.  (Continua na próxima semana).


Elza e Romeu. 
Elisa no colo de Elza, Renato no fundo, Roberto no centro e Maurício no colo de Romeu. 
Uberaba, 1961, batizado da Elisa.


 Romeu Muniz Barretto

Romeu Muniz Barretto, meu avô materno, nasceu em Conchas, SP, em 24 de novembro de 1903 e faleceu em Santos, em 09 de dezembro de 1961. Filho mais velho de Elisa e Joãozinho, teve 4 filhos. Foi casado com Maria Ercília Morato Barbosa (Ciloca, minha avó materna), separou-se e teve outros relacionamentos ao longo da vida. Trabalhou no comércio, viajou muito pelo Brasil, foi prefeito de Itariri, SP, trabalhou como delegado do antigo Serviço de Proteção aos Índios (SPI), lutou na Revolução de 1932, comprou uma fazenda em Peruíbe, SP, planejou exportar banana para a Argentina, plantou seringueiras, sonhou em transformar sua Fazenda Icatu num verdadeiro paraíso ecológico, onde ele pudesse ter cavalos, peixes, cachorros, bichos do mato, ouvir música clássica e ler bons livros. Foi comunista, admirador de Luís Carlos Prestes, depois apoiou Ademar de Barros (político paulista). Sempre gostou de fotografia e fotografou índios, bichos, cachoeiras, rios, etc. Morreu num momento especial de sua vida: recebendo na fazenda Icatu a filha Elza e os netos pequenos. Quis me ensinar a nadar me jogando numa represa e dizendo: nade! (Homero Salles Júnior, sobrinho de Romeu, filho de Dulce, meu primo, conta que meu avô fez o mesmo com ele). Destemido, mateiro, gostava de armas, capturava e enviava cobras para o Instituto Butantã, pegava as cobras com a mão, com uma destreza impressionante (inspirei-me nele para contar uma das histórias do meu livro “Os bichos são gente boa”).

Abaixo, fotografias em diversos momentos. Infelizmente, não há indicações de lugar, data e pessoas, embora ele tenha numerado cada uma das fotos, mas a anotação se perdeu. Algumas dessas fotografias foram feitas a partir de negativos de vidro, perfeitamente conservados até hoje.





































2 comentários:

Gabriela disse...

Olá Renato,

sou sua prima, Gabriela Muniz Barretto, última filha do Cid, o último filho da Elisa. Tenho uma cópia manuscrita desse diário, já tinha lido algumas vezes, mas os seus comentários sociais e históricos sobre ele tornam a leitura várias vezes mais interessante e rica. Muito obrigada.
Dei risada quando li sobre a técnica do seu avô de ensinar-lo a nadar, a do meu pai era a mesma. Jogava a gente na lagoa! E outras coisas mais, como o amor pela música clássica, os livros, a natureza.
Acho bonito descobrir essas coisas.
Mais uma vez obrigada,
um abraço
Gabriela

Renato Muniz disse...

Obrigado Gabriela! Abraços.