segunda-feira, 27 de agosto de 2012
O diário de uma professora (parte XII)
80 anos da Elisa. A família reunida.
As pessoas costumam dizer que a vida é como um ciclo, em que
se revezam nascimento e morte, miséria e fortuna. Não concordo com este
dualismo, mas a dinâmica da vida e a riqueza das formas e dos conteúdos, com
seus infinitos desdobramentos, nem sempre nos permitem enxergar a complexa
diversidade da existência real e do porvir. A impressão que tenho hoje é que
Elisa, apesar de abatida pelos revezes familiares, triste pelas perdas, sempre
acreditou no amanhã. Pode parecer simplista, mas ela não desistiu de viver,
mesmo dizendo: “chega de viver”. O que ela continua nos contando a seguir
demonstra esta capacidade de superação.
No Brasil, os anos 1960 foram tempos difíceis. Na política,
na cultura, na vida das pessoas. Foi a década em que a população urbana
ultrapassou a população rural. As pessoas deixaram o campo em direção às
cidades, que passariam por um ciclo de crescimento e de mazelas sociais sem
precedentes na história do país (favelas, violência, etc.). Em pouco mais de
vinte anos a realidade rural, arcaica e tradicional do Brasil, presa às
ideologias da aristocracia rural, cederia espaço para grandes cidades, muitas
acima de 100.000 habitantes, algumas passariam de 500.000 habitantes. Iniciada
nos anos 1950, a migração interna acelerou-se. As periferias das grandes
cidades cresceram assustadoramente; uma cultura urbana, diversificada,
multifacetada, juntando pedaços regionais, se desenvolve de modo criativo e
impulsiona um processo de renovação.
Na política, JK passa o poder ao Jânio, eleito
democraticamente, mas que renuncia após 8 meses de governo; o vice Jango é
impedido de assumir, e o país conhece o parlamentarismo; volta atrás, e Jango
assume, inicia as reformas de base, tão necessárias; é deposto por um golpe
militar e o país conhece um retrocesso político tremendo. Tudo isso em quatro
anos! O que nós estávamos fazendo? Cada um de nós. Onde estávamos? Como
acompanhamos o desenrolar dos acontecimentos? Uns, muito novos, talvez nem
ideia tivessem do que se passava; outros, mais velhos, talvez perplexos, sem
atitudes a tomar. Muitos, envolvidos, a favor ou contra. O fato é que o país
passaria por uma modernização conservadora, tão bem caracterizada por Celso
Furtado no seu livro O Brasil pós-“Milagre”. Como ele constrói este raciocínio?
Vejamos: “As malformações da sociedade brasileira são tão evidentes, tão grande
o contraste entre a penúria e o desperdício, que todos devemos questionar-nos
como foi possível que chegássemos a isso. Como conciliar essa realidade com as
potencialidades do país e com o notável esforço de desenvolvimento já
realizado?”
Este livro foi escrito em Paris, no início dos anos 1980. Celso
Furtado, que teve seus direitos políticos cassados em 1964, não espera o fim do
regime para se pronunciar contra o “emaranhado a que o levou [o Brasil] a uma
prática política que se nega a ver problemas estruturais”. Ele se espanta ao
perceber o quanto o país não reflete sobre si mesmo. E conclui: “Em síntese, no
decênio compreendido entre 1964 e 1973, não obstante um considerável aumento do
produto interno, não se assinala na economia brasileira nenhum ganho de
autonomia na capacidade de autotransformação, nem tampouco qualquer reforço da
aptidão da sociedade para autofinanciar o desenvolvimento”.
A família de Elisa cresce. Os netos se casam, nascem os
bisnetos, cada um busca seu espaço no mundo. A idade acentua os problemas de
saúde, em especial a diabetes. Com quase 80 anos, Elisa cuida de si e dos seus.
Repete algumas anotações no Diário [não vou pular, nem “editar” nada]. Em 1963,
completou 80 anos e ganhou uma bonita festa da família. Vamos ao Diário.
O Diário (parte XII).
No dia 16 de dezembro, Neusa ganhou o seu filhinho. Chama-se
Marcelo.
Nasceu pequenino e magrinho, mas como a mãe tem bastante
leite, ele engordará em poucos dias. É uma criança mansa e muito parecida com o
pai.
Neusa conseguiu remoção para um grupo escolar perto de
Santos. Vai e volta às 6 da tarde. Está lecionando em 1º ano. Ela estranha,
pois sempre trabalhou com 4º ano; mas no fim do ano serão coroados os seus
esforços, pois é a classe que apresenta melhores resultados.
Dácio casou-se no dia 30 de janeiro e vai indo bem. Ele e
Miriam compreendem-se muito bem. Júnior está matriculado no 5º ano (admissão)
do Archidiocesano. Está satisfeito.
Júnior prestou exame e foi aprovado. Vai fazer, este ano, a
1ª série do ginásio.
Quando nos mudamos de Presidente Wenceslau para esta
capital, nasceu o Sylvio (1º filho do Romeu). Era uma criança magrinha, mas
logo se desenvolveu.
Dulce ficou encantada com o primeiro sobrinho e auxiliou
Ciloca [esposa de Romeu] a cria-lo. Morávamos, nessa ocasião, à Rua Cândido
Valle, na 6ª Parada. Eu lecionava no Grupo Escolar da Vila Gomes Cardim e, como
não ficava longe, ia a pé com Cid, que frequentava o 3º ano primário. Era sua
professora Dona Alzira, muito distinta (Dona Alzira já faleceu. Era uma
professora muito simpática e bondosa. Morreu muito cedo).
Lúcio estava terminando o curso de farmácia e Olga foi, a
convite de sua madrinha, lecionar no Jaborandy, às crianças da fazenda
[Barretos, SP]. Romeu começou a trabalhar na Casa Bayton. Mais tarde, ele
passou para a Casa Stolze, como técnico de rádio.
Da Rua Cândido Valle, mudamo-nos para Santana e fomos morar
em uma boa casa e dali passamos para a Rua Voluntários da Pátria. Um amigo de
Joãozinho estava de mudança para outro bairro e cedeu-nos a casa que possuía
uma boa freguesia de plissês, Dulce aprendeu a fazer os plissês e trabalhamos bastante
nesse serviço. Digo trabalhamos, porque ela sozinha não podia fechar as formas
e era sempre auxiliada por mim ou pelo Lúcio. Este, muito paciente, conseguia reunir
as pregas, que se levantavam, ao ser a fazenda retirada da forma.
Da Rua Voluntários da Pátria passamos para a Rua Duque de
Caxias, pois Joãozinho havia adquirido um belíssimo gabinete dentário, na Praça
do Patriarca e ali instalou-se como dentista. Ficamos alguns meses nessa casa e
depois resolvemos mudar, pois não possuía quintal. Era um trabalho bastante
desagradável para mim, trazer o corredor muito asseado logo pela manhã. Antes
de preparar o café, eu fervia água para lavar o corredor e depois desinfetá-lo
com creolina. Mesmo assim, começaram a aparecer moscas e houve reclamação dos
vizinhos.
Mudamo-nos, então, para a Rua Vergueiro, quase em frente à
Igreja Santo Agostinho. Era uma casa velha, mas possuía um bom quintal. Aí
morreu o nosso Louro, um papagaio inteligentíssimo, falava mais de 100
palavras.
Aí Dulce conheceu Homero e aí nasceu Lúcia. Finalmente
paramos de mudar, pois consegui levantar o meu montepio e comprei a casa da Rua
Hermínio Lemos. Levei 12 anos para pagar a casa, mas em compensação não pagava
imposto durante esse tempo, e nem água.
Logo que nos mudamos para a Rua Hermínio Lemos, Lúcio
formou-se em farmácia e, poucos meses depois, casou-se com Eunice, indo
trabalhar, isto é, tomar conta e dar o nome a uma farmácia em São Manoel.
Lúcio trabalhava em uma farmácia perto de São Manoel, quando
se casou. Quando Neyde estava a chegar, Eunice veio para nossa casa, à Rua
Hermínio Lemos. Aí nasceu Neyde, no dia 11 de junho e no dia 24 do mesmo mês e
ano, nasceu Elza. Marina só chegou 10 anos depois da Neyde, quando Lúcio morava
em Uruguaiana. Eu, Dulce e Dácio (este com 2 anos e meio) fomos de navio e de
trem assistir ao nascimento de Marina. Seis meses depois, isto é, em janeiro do
ano seguinte, chegou o Heraldo.
Aposentei-me em abril de 1932, depois de lecionar 31 anos.
Depois de aposentada, sai diversas vezes, com Joãozinho. Estivemos em Avaí,
Mato Grosso, Guaraçay, Alfredo de Castilho, Dracena, etc.
Elisa e os bisnetos
Estamos em maio de
1963.
Em abril completei 80 anos e, de acordo com os filhos,
fizemos uma reunião de todos no dia 14, pois Neusa achava que ela estaria na
maternidade. Vieram todos e, aproveitando a reunião tiramos retratos.
São 16 netos e 7 bisnetos.
O segundo filhinho da Neusa chegou mesmo no dia 14 e chama-se
Adriano. É bonitinho e bem forte.
Tive a satisfação de ver reunidos, aqui em casa do Homero,
todos os meus netos, os maridos das netas, a esposa do neto (Miriam), os filhos
e os bisnetos.
À noite, vieram os outros parentes e pessoas amigas, num
total de mais de 150 pessoas.
Dia 7 de junho. Olga veio com a família. Fomos ao cemitério
(eu, Olga e Dulce) levar flores para o Joãozinho e Romeu. Cada dia que se
passa, mais saudades eu tenho de ambos.
Neusa foi com as crianças passar uns dias em São Sebastião.
Homero está doente e vai ser operado na próxima semana. Deus
permita que tudo corra bem.
Homero foi operado e, infelizmente, o tumor é maligno.
Coitado do Homero! Tão bom, tão trabalhador e tão alegre! Estamos tristes ao
lembrarmos que ele não viverá muito tempo mais. E que falta vai fazer! Coitada
da Dulce!
Durante a doença do Homero eu também fiquei doente, com uma
úlcera no duodeno. O Dr. Moacyr receitou remédios e dieta para a úlcera e, em 4
meses, fiquei boa. Durante o tratamento da úlcera, como a dieta era grande, não
tomei injeções de insulina, a conselho médico. Resultado, a glicose no sangue
subiu a quase 300. Então voltei à insulina e tomei também diabase. A glicose baixou a 95 e então eu comecei a ter descontrole,
chegando mesmo a cair.
Fui à consulta do Dr. Scanone e contando a ele que eu andava
fazendo tolices como se fora criança, ele achou que eu tinha um começo de arteriosclerose,
pois já completei 81 anos. Vindo ao Rio, contei o caso ao Lúcio e ele achou que
eu estava tomando muita insulina e aconselhou-me a diminuir. Já diminui e, no
próximo exame, vamos a ver o resultado. Fiz novo exame de sangue e a glicose
baixou em virtude de ter diminuído a insulina. Lúcio acertou.
Homero faleceu no dia 13 de fevereiro.
No dia 10 de maio eu vim passar uns meses aqui no Rio.
Neusa teve seu terceiro filhinho, no dia 7 de junho
(aniversário do meu velho) e foi feliz. O menino chama-se Frankie. Eu não o
conheço ainda.
Elza tem mais um menino. Homero e Dulce são seus padrinhos.
Ele, apesar de bem doente, foi com Dulce à Uberaba, batizá-lo. Chama-se
Luciano.
Cid e Selma tem também mais uma menina – Nina. Eu e Homero somos
os seus padrinhos, pois na ocasião do batizado, Homero estava com bastante
saúde.
Depois do Frankie, chegou uma menina para Neusa. Chama-se
Fernanda. Ela vai fazer dois anos no dia 9 de julho, digo junho. É uma menina
muito viva e bonita. É morena e tem os cabelos encaracolados.
No começo de fevereiro, Dulce sofreu um desastre pavoroso de
automóvel. Vindo do grupo com mais 3 colegas, quando um caminhão chocou-se com
o carro atirando-a fora do carro e foi dada como morta. Esteve no Hospital das
Clínicas e depois no Municipal muitos dias, em tratamento. Graças a Deus sarou
e está trabalhando. (Continua na próxima
semana).
Elisa e os netos
Elisa e os bisnetos
Elisa e os filhos da Neusa
Dulce, Homero e os sobrinhos, na Fazenda das Aroeiras
Elza, Dulce e Homero no batizado do Luciano
quinta-feira, 23 de agosto de 2012
Senhores candidatos
Renato Muniz Barretto
de Carvalho
Bom dia! Em primeiro lugar, quero que saibam da minha
alegria e do meu agradecimento por terem se apresentado ao pleito eleitoral de
2012. Creio tratar-se de uma demonstração de seu envolvimento com os destinos
das cidades, com a consideração da política como algo sério e necessário num
país como o nosso, onde existem tantas carências e tantos erros do passado a
serem corrigidos.
Mas não estou aqui para falar dos erros do passado, da
escravidão que tanto mal fez ao país no passado colonial e cujas consequências
estenderam-se até o presente, nem sobre as ditaduras. É preciso acertar as
contas com o passado, sim, mas neste momento é preciso se preocupar com o
futuro. Embora as coisas estejam interligadas. O povo simples sabe disso.
Como é bom perceber a alegria dos senhores candidatos, ver
como se expõem na mídia, como falam de seus projetos, de suas ideias para as
nossas cidades. É importante conhecer seu passado de atuação em defesa da
cidadania, da coisa pública, e de como estão preparados para governar as
cidades ou nos representarem no parlamento municipal, nas câmaras de
vereadores. Meu muito-obrigado!
Algumas coisinhas, entretanto, incomodam. E é bom não deixar
isso para mais adiante, senão a gente se esquece, ou se arrepende por ter
deixado passar... Não é?
São tantas coisinhas que não vai dar para mencionar todas,
mas uma delas tem me deixado “com a pulga atrás da orelha”. Conhecem esta
expressão? Significa uma certa desconfiança, uma desconfiançazinha de que algo
pode não estar correto. Entendem?
Uma dessas coisinhas é, por exemplo, a quantidade de placas
– sei lá se o nome é esse mesmo – que têm aparecido nas ruas das cidades
ultimamente. Placas com os rostos dos senhores candidatos, muitas seguidas do
número e da sigla partidária. Como são irritantes! Estarei ficando velho e
impaciente?
Como perguntar não ofende, qual a razão de tantas placas nos
canteiros centrais de avenidas, em rotatórias, em calçadas? Fazer os candidatos
mais conhecidos dos eleitores? Marcar território, como fazem lobos e cachorros
com xixi? Dizer ao mundo que são candidatos? Mas a televisão, os jornais, os
debates, as visitas já não nos informam intensamente disso?
Mesmo que autorizadas pela legislação, não seria o caso de
se perguntar qual o efeito disso no visual e no conforto urbano? Tantas placas
podem dificultar ou até impedir a circulação. Afinal, a rua, a praça, o
logradouro, como queiram, são espaços públicos – ou não? São espaços de vida,
de manifestação, de circulação, e não deveriam ser apropriados de forma privada
– ou não?
Senhores candidatos que têm usado este artifício de espalhar
placas por toda a cidade, eu pergunto: se fazem isso agora, o que não farão
mais tarde, quando forem eleitos? O que pensam da beleza da cidade? Vale a pena
emporcalhar o espaço urbano colocando as tais placas? Não será isso um ato de
poluição visual? Se são candidatos, devem saber o que significa poluição visual
– ou não? Não sabem que essas placas podem prejudicar a visão dos motoristas
causando acidentes? Não pensaram nisso antes de mandar espalhar tais placas?
Não acham que essa quantidade de placas pode prejudicar um cadeirante? Uma mãe
a conduzir um carrinho de bebê?
Senhores candidatos, os senhores estão, neste momento, muito
visíveis, e de vocês o povo espera, no mínimo, coerência, honestidade e
sabedoria para lidar com a coisa pública. Que chato começar uma campanha
sujando a cidade que pretendem governar ou representar seu povo, não acham?
Daqui a pouco serão tantas as placas e meu temor é que seus
cabos eleitorais comecem uma guerra onde elas sirvam de armas, vai ser placa
pra lá, placa pra cá, uma placada só! Não vai emplacar. Meu maior medo é sermos
atingidos por uma placa voadora perdida, ou uma placa com um sorridente
candidato nos perseguindo, solicitando nosso voto... Um pesadelo!
P.S.: em algumas cidades, o nome que se dá às placas é cavalete.
P.S.: em algumas cidades, o nome que se dá às placas é cavalete.
sexta-feira, 17 de agosto de 2012
O diário de uma professora (parte XI)
Elisa
Anos 1960. Anos de transição, no Brasil e no mundo todo. Até
a década de 1950 o mundo ainda era muito “conservador”, com costumes rígidos e
exclusão dos jovens, das mulheres e das chamadas minorias do processo político.
Mas a pressão era cada vez maior por participação política e cultural. A
expectativa era a superação do moralismo que dominava as relações familiares e o
meio social. O panorama cultural brasileiro estava fortemente marcado pelas
influências norte-americanas (o cinema, a música, a literatura, os quadrinhos),
e, por outro lado, por tentativas de formação de uma identidade nacional.
Em termos mundiais, cresce o movimento intitulado como da
contracultura, com manifestações musicais inovadoras (o rock and roll), o
teatro de rua, novas expressões artísticas, literárias, e o movimento hippie
com toda contestação que lhe foi característica. No mundo das artes, destacam-se
o cinema francês, o cinema italiano e novos conceitos nas artes plásticas (as performances,
as instalações, as vanguardas), etc. Chamam a atenção as ideias
terceiro-mundistas de Gandhi, de Patrice Lumumba (assassinado em 1961), de
Mandela e de Fidel Castro, dentre outros. Tem continuidade, mais radical agora,
a descolonização dos países asiáticos e africanos. É o tempo de João XXIII revolucionar a igreja
católica, é o tempo da Teologia da Libertação, o tempo de John Kennedy nos EUA,
do golpe militar no Brasil, da guerra de guerrilha de Che Guevara (executado na
Bolívia em 1967), de Martin Luther King questionar o racismo nos EUA (e também
morrer assassinado, em 1968).
Os primeiros anos da década de 1960 refletem as mudanças que
se anunciam e que se ampliariam a partir daí. No contexto mundial, a
Guerra Fria prossegue, intensifica-se a corrida armamentista e tecnológica, a
esquerda avança, a luta pela paz e contra a Guerra do Vietnã mobiliza os
jovens.
Nos anos 1960, a IBM lança o circuito integrado, ou chip
(1964), surge a Arpanet, o embrião da Internet, os soviéticos enviam o primeiro
homem ao espaço (Iuri Gagárin) em 1961, e Neil Armstrong é o primeiro homem a
pisar na Lua, em 1969. Brasília é inaugurada em 1960. É o tempo dos Beatles, dos
grandes festivais de rock e do teatro de vanguarda.
Ainda, nos anos 1960, o médico Christian Neethling Barnard realizou
o primeiro transplante de coração, em 3 de dezembro de 1967.As cirurgias cardíacas e o entendimento dos problemas do coração avançaram bastante, mas Romeu, filho de Elisa, não alcançou esse tempo.
Olhando para trás, para um tempo que não volta mais, querendo ou não, sabendo disso ou não, nós, que vivemos o fim
do século XX e o início do século XXI, somos frutos deste processo. O legado
que temos hoje se enriqueceu, para além de todas as circunstâncias que nos cercaram, e
ainda nos cercam, pela convivência com pessoas que, com simplicidade e
humildade, nos ensinaram o “caminho das pedras” e a darmos importância a valores como a sensibilidade, a paz e a educação, como Elisa Wey.
Na vida de Elisa, ainda é um tempo de perdas, com a morte
prematura do filho mais velho, Romeu. É também tempo de viagens, de luta contra
o diabetes e de conhecer os bisnetos. A partir daqui, existem, no Diário,
muitas frases soltas, muitos lapsos de tempo, algumas repetições. As viagens,
as perdas de parentes próximos, alguns dissabores e a saúde fragilizada talvez
expliquem estas falhas.
Vamos ao Diário.
Elisa, no centro, com a filha Elza, com minha tia paterna, Alda, e os bisnetos:
Maurício, Luciano, Roberto e Renato (no fundo), em Uberaba, MG.
O Diário (parte XI)
Passamos lá uns dias muito agradáveis e no fim da temporada,
Homero foi nos buscar. Heraldo também passou uns dias lá. [Elisa e a filha
Dulce estão em Poços de Caldas].
Eu não tenho passado bem das pernas. Elas estão inchadas e
doem para andar. Quando estive no Rio, fiz tratamento das pernas e, como não
ficasse boa, vou voltar por estes dias.
Elza tem mais um filhinho. Desta vez veio uma menina, vai se
chamar Elisa e eu vou ser a madrinha. Pretendo ir a Uberaba, com Cid e Romeu,
ainda este mês.
Sylvio vai bem com a empresa de turismo. Elza é mãe de 4
filhos, sendo 3 meninos e uma menina. Lúcia continua com o serviço de
assistente social, no Rio. Neyde goza saúde em companhia do marido e do
Rubinho. Neusa está esperando seu primeiro filhinho.
Marina forma-se este ano. Dácio vai indo bem com a empresa
de turismo. Heraldo está terminando o 3º científico. Marilisa está fazendo o 1º
científico, Cybele está na 1º série ginasial, Nelson está fazendo o 4º ano e
admissão. Sylvia Heloísa também está fazendo o 4º ano.
Júnior está frequentando o 3º ano do grupo. Lucinho já
completou um ano e é uma criança muito bonita e inteligente.
Gisele é a última filhinha do Cid. É uma criança linda e
sadia.
No começo de agosto, fui com Romeu a Uberaba. Fomos batizar
Elisa, filhinha da Elza. Fizemos de jeep,
1000 quilômetros, ida e volta e a viagem foi tão boa, que não me cansei.
Logo que voltamos de Uberaba, fui ao Rio, a fim de continuar
o tratamento das pernas. Melhorei bastante e voltei no dia 31 de outubro, pois
eu fiz questão de ir ao cemitério (dia dois de novembro) levar flores para
enfeitar a sepultura de Joãozinho. Fomos: eu, Olga e Dulce, mas compramos poucas
flores, porque o preço estava exorbitante. 600,00 cruzeiros a dúzia!!!
Passei o mês de dezembro em Santos, fazendo exame de sangue
de 15 em 15 dias. No começo do mês, eu, Olga, Júlio e Neusa fomos à fazenda do
Romeu [em Peruíbe, SP].
Passamos o dia lá, muito agradavelmente, pois Elza e as
crianças lá estavam e se demoraram uns 15 dias. Estivemos apreciando as carpas
na represa e eu tomei um banhão delicioso na bica. Romeu estava muito feliz em
companhia da filha e dos netos. Voltamos à tardinha.
No dia 9 de dezembro, às 13 horas, Olga recebeu um
telefonema de Peruíbe, pedindo oxigênio para Romeu, que estava passando mal.
Ela providenciou tudo, chamou o Franco, que estava em São
Paulo, e tocamos para lá. Romeu não estava na fazenda, havia ido a Itariri fazer
compras e sentiu-se mal. Foi a Itariri com Elza e 2 dos meninos, mas sentiu-se
tão mal e tocou o jeep à toda, com
uma das mãos, a outra comprimindo o coração que doía horrivelmente.
Quando eu e Olga chegamos à Peruíbe, encontramos Romeu em
casa de uma família amiga. Olga preparou logo o tubo de oxigênio para ele
respirar e momentos depois o médico veio tomar a sua pressão. Disse que estava
tudo bem e avisou-nos que a ambulância estava à porta e que convinha que ele
fosse transportado para Santos, pois ali não havia recursos para seu
tratamento.
Colocaram Romeu numa maca, puseram na ambulância e seguimos
para Santos: ele, eu e Olga. Sentei-me ao lado da maca e segurei sua mão; mas
as dores eram tão fortes que ele virava de um lado para o outro e até de bruços
ficou. Estava desesperado, o coitado.
Ao aproximarmo-nos de São Vicente, ele disse: mamãe, eu não
aguento mais! Animei-o dizendo que estávamos chegando e, nessa ocasião, Olga
perguntou se ele queria ficar em sua casa ou queria ir direto para o hospital. Respondeu
que preferia ficar em casa da Olga.
Lá chegando, foi chamado o Dr. Vilarinhos, que veio
imediatamente. Examinou o doente e disse que era urgente a sua remoção para o
hospital, o que foi feito imediatamente. Lá chegando, tomou diversas injeções,
foi tirado o sangue para exame, etc., mas tudo em vão. Pedia água e mais água
e, num dado momento, seus olhos se
fixaram em mim e disse duas vezes seguidas: mamãe, eu vou morrer. Oh! Que
punhalada senti no coração!
O meu filho, o meu Romeu estava a expirar!
Como é dolorosa a morte de um filho! Meus olhos se enchem de
lágrimas ao lembrar-me dos seus últimos momentos. Sua voz, bastante fraca,
sôa-me aos ouvidos, ao deitar-me, ao me levantar, a todo momento. Pobre filho!
Eu, Olga e Dulce fomos ao cemitério no começo do ano, a fim
de enfeitarmos com flores o túmulo. Lá estão o pai e o filho mais velho. Quem
deve ir agora, sou eu, pois já vou completar 79 anos e chega de viver. (Continua na próxima semana).
Elza e Romeu.
Elisa no colo de Elza, Renato no fundo, Roberto no centro e Maurício no colo de Romeu.
Uberaba, 1961, batizado da Elisa.
Romeu Muniz Barretto
Romeu Muniz Barretto, meu avô materno, nasceu em Conchas,
SP, em 24 de novembro de 1903 e faleceu em Santos, em 09 de dezembro de 1961.
Filho mais velho de Elisa e Joãozinho, teve 4 filhos. Foi casado com Maria
Ercília Morato Barbosa (Ciloca, minha avó materna), separou-se e teve outros relacionamentos ao longo da vida. Trabalhou no comércio, viajou muito pelo Brasil, foi prefeito de Itariri, SP, trabalhou como delegado do antigo Serviço
de Proteção aos Índios (SPI), lutou na Revolução de 1932, comprou uma fazenda
em Peruíbe, SP, planejou exportar banana para a Argentina, plantou seringueiras, sonhou em
transformar sua Fazenda Icatu num verdadeiro paraíso ecológico, onde ele
pudesse ter cavalos, peixes, cachorros, bichos do mato, ouvir música clássica e ler bons livros. Foi comunista, admirador de
Luís Carlos Prestes, depois apoiou Ademar de Barros (político paulista). Sempre gostou de fotografia e
fotografou índios, bichos, cachoeiras, rios, etc. Morreu num momento especial de
sua vida: recebendo na fazenda Icatu a filha Elza e os netos pequenos. Quis me ensinar a
nadar me jogando numa represa e dizendo: nade! (Homero Salles Júnior, sobrinho
de Romeu, filho de Dulce, meu primo, conta que meu avô fez o mesmo com ele).
Destemido, mateiro, gostava de armas, capturava e enviava cobras para o Instituto Butantã, pegava as cobras com a mão, com uma destreza
impressionante (inspirei-me nele para contar uma das histórias do meu livro “Os
bichos são gente boa”).
Abaixo, fotografias em diversos momentos. Infelizmente, não há indicações de lugar, data e pessoas, embora ele tenha numerado cada uma das fotos, mas a anotação se perdeu. Algumas dessas fotografias foram feitas a partir de negativos de vidro, perfeitamente conservados até hoje.
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