Renato Muniz Barretto de Carvalho
Quando eu era criança, dividia um quarto com meu irmão. Um dos presentes que mais nos encantou na infância foi justamente uma escrivaninha colocada no nosso quarto. Era uma daquelas antigas, de madeira, porém simples, sem desenhos ou entalhes. Tinha três gavetas laterais e uma gaveta maior sobre um vão onde se encaixava a cadeira.
Meu irmão e eu decidimos dividir as gavetas entre nós. Após certo esforço matemático complexo para nossa idade, cerca de 6 e 7 anos, resolvemos que cada um ficaria com uma gaveta lateral, exclusiva, e usaríamos em comum as restantes, principalmente a central. Nesta, colocaríamos objetos como lápis, borracha, um furador de papel, que nunca usamos, e algumas inutilidades que a memória não arquivou. As individuais seriam usadas para guardar objetos pessoais: canivete, revistas em quadrinhos, jogos, dados, estojos, cadernos e outras coisas assim.
O móvel era mágico. Sentar ali era como entrar num mundo diferente, superior, que nos dava uma força intelectual descomunal. Na verdade, nos sentíamos importantes, capazes de descobrir palavras novas, de encontrar soluções para os grandes problemas do mundo, de elaborar frases inteligentes, de brincar com os números e com equações sofisticadas. Ficávamos estimulados para estudar. Acho que foi um bom truque dos meus pais no começo da nossa vida escolar.
A escrivaninha ganhou importância maior quando acomodou os nossos primeiros livros, que, aos poucos, foram chegando. Nem sei qual foi o primeiro. Deve ter sido o Caçadas de Pedrinho; depois chegaram Peter Pan, Robinson Crusoé, Tarzan, os Grimm, os Andersen (O patinho feio, O soldadinho de chumbo... Que delícia!), e não parou mais.
No começo, cabiam todos sobre o tampo, até que foi preciso inventar uma estante, foi preciso estabelecer uma sequência, inventar uma lógica para arrumar os volumes. Passamos a estudar qual a melhor disposição, como acomodá-los de modo adequado, segundo nossas concepções, nossos valores de então.
Percebemos que ler não era só uma questão de alfabetização, mas de cuidado com os livros, da existência de um local apropriado para fazer a leitura. Entendemos que livros não eram tudo na vida. Percebemos que os livros não existiam por si sós, mesmo sendo único cada exemplar. Entendemos a necessidade de compartilhá-los entre nós. De ler e comentar, de ler e recomendar, de sonhar e de criar nossas próprias fantasias a partir do que líamos.
Um dia, crescemos. E a escrivaninha? Desapareceu. Os livros não. Adultos, cada um de nós levou seu quinhão na partilha dos nossos despojos infantis, para depois acrescentar outros. Ainda hoje, uma das coisas de que mais sinto falta, além de um bom local para leitura — embora seja capaz de ler em qualquer lugar do mundo, até de pé, no meio da rua mais barulhenta do planeta —, é de interlocutores, de alguém com quem comentar uma boa leitura.
A escrivaninha se perdeu no tempo, talvez consumida por cupins, talvez tenha se transformado em outro móvel, talvez tenha virado lenha para esquentar comida de algum pobre faminto. A nós, ajudou a nos alimentarmos de conhecimento e de sonhos.
Um comentário:
Texto maravilhoso, repleto de boas lembranças.
Um grande abraço!
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