Embora eu não faça parte do grupo que pode ficar na cama curtindo a manhã chuvosa, eu me permito uns minutinhos de contemplação e recordação. Quando eu era criança, lembro-me que a chuva ao amanhecer me deixava sorumbático, principalmente quando estava passando as férias na fazenda do meu avô. Significava que não poderia andar a cavalo, não poderia ir pescar no corguinho no fundo do quintal, nada de passeios pelos capões de mato em busca de frutas do cerrado e de lugares novos para ampliar minha geografia.
O melhor de tudo é que raramente a chuva durava a manhã toda. Verdade que a angústia me dominava logo nas primeiras horas; antever que ela me forçaria a ficar em casa era terrível. Da janela do quarto ou da varanda, eu procurava sinais de que ela passaria em breve: o canto dos pássaros, as teias das aranhas, a direção do vento, o formato e o tamanho das nuvens e por aí afora. Eu me transformava num doutor em climatologia, especialista em previsão do tempo, desejando o fim imediato da chuva para que não atrapalhasse minhas atividades. Que ilusão!
Se a chuva continuasse, era bom partir para outros afazeres. Interrogar minha tia para extrair dela os segredos da família; convencer minha mãe de como eu era exímio cozinheiro; fuçar na caixa de ferramentas do meu pai e imaginar que eu daria conta de produzir móveis, brinquedos e soluções mágicas para o dia a dia, inclusive algum mecanismo para interromper a chuva. Se na fazenda estivessem mais pessoas, primos, primas, amigos e amigas, a solução eram os jogos de tabuleiro, o baralho e as brincadeiras para estimular o emocional: mímicas, competições e desafios. Em especial, conversas e reflexões. Leitura sim, televisão nem pensar! Se nesta época já existissem os celulares e as redes sociais, estaríamos todos apartados, com a solidão correndo solta nas ondas da internet. Ufa!
Não sou contra a tecnologia, é claro, mas acho que está sobrando delírio, tapeação, e anda faltando raciocínio nos dias de hoje. Será que precisamos de uma boa chuva para nos fazer repensar o mundo e a realidade que nos cerca? Uma manhã chuvosa para nos ajudar a refletir sobre as contradições sociais, a política e aberrações como o negacionismo científico, o autoritarismo, a apologia da ignorância e a distorção do passado.
Publicada no Jornal da Manhã: https://jmonline.com.br/novo/?paginas/articulistas,675
Publicada no Recanto das Letras: https://www.recantodasletras.com.br/escrivaninha/publicacoes/index.php
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