Renato Muniz B. Carvalho
A última coisa que eu devia ter feito
naquela tarde chuvosa era mexer nas caixas em que eu guardo minha correspondência
pessoal. Não sei que motivos me levam a guardar esses papéis, por isso ainda não
os joguei fora. Ocupam espaço, empoeiram, mas trazem boas recordações — a maioria.
Cartas, cartões e diversos bilhetinhos recebidos ao longo de mais de cinquenta anos.
Fiquei envolvido a tarde inteira. Querem saber? Para mim, são um tesouro.
O que essa correspondência tem de especial? Muita coisa, a começar pela caligrafia, única, de cada pessoa que enviou. Da cor da tinta à forma de desenhar as letras, tudo é maravilhoso, carregado de sentimentos, de emoção. Os envelopes, os selos, os lugares de onde foram enviadas — muitas vieram do outro lado do mundo ou de recantos espalhados por esse brasilzão — compõem uma história, revelam preocupações pessoais e coletivas de um tempo que não existe mais, trazem informações e saudades.
Cartas dos pais, dos irmãos, dos amigos e amigas, de parentes distantes, de pessoas apaixonadas, de gente que não está mais entre nós, de alunos e alunas e até daqueles de quem eu não me lembro mais, sem contar os que eu nem sei quem são: por que guardei essas se nem sei quem são os remetentes? Razões misteriosas, curiosidade — um dia eu descubro!
A chuva não parou e eu segui remexendo a correspondência guardada. Lá fora, raios e trovões, muita água escorrendo, lavando ruas e calçadas, aqui dentro, relâmpagos estouravam na minha cabeça despertando memórias. Relâmpagos que se pareciam com transmissões sinápticas ligando neurônios adormecidos em algum canto do cérebro. Dava para mapear as cidades onde meus parentes passavam as férias no século XX; as praias preferidas dos amigos nos verões mágicos dos anos 1970; as angústias dos amigos e amigas durante os anos difíceis da censura, da repressão, do silêncio, quando desconfiávamos da possibilidade de alguém violar nossas correspondências. Quantos segredos? Quantas confidências deixaram de ser ditas?
Um caso à parte é o dos cartões postais. Uma das primeiras coisas que eu fazia ao chegar numa cidade nova, de férias ou a trabalho, era logo comprar postais para enviar aos amigos, aos meus pais e aos filhos: “olha, estive aqui!”. Não importava se a fotografia era de uma pracinha da cidade do interior ou de um monumento magnífico numa capital, era fundamental fazer o registro, ir aos Correios, escolher o selo e enviar aos destinatários, sem envelope, com muitas expectativas para saber se ia chegar.
Será que as mensagens eletrônicas, as mensagens de texto, de voz e de vídeo que trafegam pela Internet possuem a mesma magia? É impressão minha ou é mais fácil apagar um e-mail do que jogar uma cartinha fora? Se alguém souber a resposta, me conte.
Publicada no Jornal da Manhã: https://jmonline.com.br/novo/?paginas/articulistas,675
Publicada no Recanto das Letras: https://www.recantodasletras.com.br/escrivaninha/publicacoes/index.php
Revisão: ReviseReveja. Clique aqui.