domingo, 5 de abril de 2020
Mentiras
Renato Muniz B. Carvalho
No início dos anos
1980, resolvi me tornar comerciante de gado. A atividade implicava comprar bezerros,
dar um trato neles, esperar um tempo, dividir em lotes e revender na época certa.
Aparentemente, muito simples. Não era!
Como eu não entendia
quase nada do assunto, apesar de ser filho e neto de produtores rurais, tive de
contar com a assessoria de um especialista. Quem me ajudou, por quase três anos,
foi um italiano buona gente que imigrou para o Brasil e, anos depois, já
aposentado, me acompanhava e orientava. Após quarenta anos na região, ele conhecia
muita gente, teve oportunidade de visitar propriedades rurais e assimilar a cultura
local de modo excepcional. Por que não comercializava o próprio gado? Porque não
tinha terras e, segundo ele, enquanto exerceu suas atividades no país que o acolheu,
não teve condições de ganhar dinheiro: “quem trabalha não tem tempo de ficar rico”,
dizia.
Percebi que o sucesso
do italiano estava ligado à sua aguda percepção do jeito de ser dos pecuaristas
locais. Fazia comentários curiosos, como, por exemplo, ao me advertir para que não
me iludisse pelos vendedores: “o tempo de amarrar cachorro com linguiça acabou”.
Na prática, sabia das artimanhas usadas para valorizar ou depreciar um animal. Às
vezes, diante de um lote de bezerros, me chamava num canto, apontava um deles e
cochichava: “retiraram o chifre”. Esta operação, relativamente fácil, dava aparência
de novo ao bezerro, mas ele não ganharia peso como os demais.
Saíamos muito cedo,
ainda escuro, para visitar as fazendas. Comprávamos meia dúzia numa, dez ou
vinte noutra e, ao final do dia, juntávamos cerca de oitenta a cem bezerros. Reunidos
numa única propriedade, aguardariam um caminhão vir buscá-los. Almoçávamos nas fazendas,
às vezes aproveitando a gentileza dos proprietários, às vezes pagando preços irrisórios
por um delicioso frango com quiabo, sobremesa de frutas em calda, café torrado e
moído na hora, além das quitandas: pão de queijo, broa de fubá, biscoitos… Se a
fome apertasse, nunca faltava um pomar repleto de mexericas, laranjas e outras frutas.
Numa ocasião, percebi
que, no decorrer de uma negociação, o italiano deixou escapar uma mentira. Quando
ficamos a sós, eu o questionei. Sem se atrapalhar, ele disse: “mentira comercial
pode”. Três anos depois, ele adoeceu e não pode mais me acompanhar. Ainda o visitava,
até o dia em que faleceu. Ficou o aprendizado e o incômodo com a tal “mentira comercial”.
Logo, a atividade “artesanal” de compra e venda entrou em decadência, substituída
por leilões, muitos deles transmitidos pela TV. Para que levantar cedo, matar a
fome com frutas nos pomares, sentir o sol na cacunda e aspirar poeira num curral
distante?
Quanto às mentiras,
elas ganharam outra dimensão, outros propósitos. As consequências advindas afetam
multidões, alteram resultados eleitorais, estimulam o ódio, a ignorância. Com certeza,
não vivemos mais num tempo em que se amarram cachorros com linguiça!
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