sexta-feira, 26 de abril de 2019
Recordações de um tempo sombrio
Em alguns momentos, recordar faz parte do processo de compreensão do presente. Escrever sobre as nossas lembranças é uma forma de compartilhar visões particulares sobre experiências, lugares, pessoas e fatos com os leitores e leitoras. Recordar é contar uma história, ou várias, na expectativa de que os outros contem suas histórias também.
Recordações
de um tempo sombrio
Renato Muniz B.
Carvalho
Em
1974, eu me mudei para São Paulo com a intenção de continuar meus estudos.
Queria concluir o ensino médio e fazer um curso superior. Na verdade, uma
profunda inquietação, talvez característica do final da adolescência e
relacionada aos tempos em que vivíamos então, me motivavam, para além de
qualquer justificativa lógica ou prática.
Em
São Paulo, aprendi o significado da palavra cosmopolita e consolidei minha
formação humanista. A cidade oferecia isso e muito mais, me envolvendo em
contradições que desafiavam escolhas e direções preestabelecidas. Foi um tempo
difícil, mas de muita aprendizagem. Aprendi a conviver com pessoas e culturas
do mundo inteiro, que interagiam entre si, ora de modo harmonioso ora
conflituoso, em circunstâncias típicas da cidade grande. Aprendi a aceitar
adversidades e diferenças, mas compreendi que não podia compactuar com as
imensas desigualdades que sempre tentavam derrotar e submeter a maioria do povo
brasileiro. Conheci a miséria, de tal forma que até então eu não sabia que existia,
e me espantei com a riqueza produzida, estampada, exaltada e reproduzida pelos
mecanismos cruéis e excludentes na maior cidade da América Latina da época. Em
pouco tempo, vi como andavam lado a lado as mais gritantes e absurdas discrepâncias
econômicas, a injustiça social e a violência.
Percorrendo
as ruas e avenidas da capital, o centro e os bairros distantes, de ônibus,
metrô e a pé, entendi que o governo dos generais não era apenas quem ordenava a
censura às músicas que eu ouvia e aos jornais que eu gostava de ler, mas era
também responsável pelo arrocho salarial que oprimia os trabalhadores e as
pessoas pobres que se deslocavam para casa em ônibus lotados e barulhentos no
início e no fim de cada dia. Incomodavam-me a censura e o obscurantismo que nos
dificultava o acesso às manifestações artísticas e culturais de incrível
potencial criativo, como o cinema, o teatro, as artes plásticas e os livros que
não podíamos ler. Percebi que reivindicar salário, saúde, educação e diminuição
do custo de vida eram demandas urgentes; o desprezo pelas reivindicações e seu
não atendimento sacrificava contingente significativo de trabalhadores no país
inteiro.
A
Ditadura Militar não apenas controlava o legislativo e o judiciário, de acordo
com seus interesses, não apenas censurava jornais, não apenas matava opositores
e lhes impunha silêncio, mas, de forma abominável, estimulava a
desnacionalização da economia, fazia vista grossa à corrupção, permitia a
poluição do ar, da água e a contaminação dos alimentos, dentre outras
perversidades que são comuns em regimes autoritários. A Ditadura era flexível
com multinacionais que produziam venenos, era complacente com empresas que
despejavam esgoto tóxico nos rios, era permissiva com políticos que se
envolviam em escândalos e falcatruas, desde que denunciassem e perseguissem os
descontentes no interior das suas empresas.
Os
slogans da época merecem uma leitura atenta. Um deles era emblemático: “Brasil,
ame-o ou deixe-o”. Revelava uma exclusão constrangedora, uma opressão que
suplantava o mau humor dos generais e ampliava o estrago imposto à sociedade
tutelada e vigiada. O recado era claro: ou você se submetia às regras ou ia
embora, era afastado, excluído, eliminado do seu próprio país. O controle da
vida civil, dos costumes, da educação e da difusão cultural existia em função
de um projeto de dependência internacional, de submissão e de crescimento
econômico para poucos.
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