A
encomenda veio no caminhão leiteiro
Renato Muniz B.
Carvalho
Eu sempre gostei de ler, mas, quando
criança e adolescente, nem sempre a gente lia o que queria, a escola não
deixava. O jeito era ler nas férias, pois durante o período letivo sobrava
pouco tempo fora das obrigações, das tarefas e de outras distrações. Hoje, são
tantas as desatenções que nem sei como alguns ainda conseguem ler! É que, às
vezes, uma boa leitura exige silêncio, concentração, tempo... Certas coisas
ficaram escassas.
Na escola, as leituras eram engessadas,
não havia abertura para discutirmos autores, livros, temas interessantes,
segundo nosso ponto de vista. Líamos os clássicos, os autores ditos
consagrados, portugueses e brasileiros. Um dia, perguntei ao meu professor de
literatura sobre Jorge Amado. Levei um susto. Ele arregalou os olhos e disse:
esse não! Falou que sua escrita era muito popular, que escrevia para inflamar o
público e que não era literatura para se analisar nas aulas. Fiquei sem
entender, mas era como se uma faísca tivesse sido acessa, uma faisquinha que
ficou ali, na minha cabeça, ardendo. A curiosidade aumentou quando soube que o
motivo da tristeza de uma prima era ter sido proibida de ler os livros do
escritor baiano.
Vasculhei a estante dos meus pais, à qual,
felizmente, eu tinha livre acesso, e encontrei vários livros do Jorge Amado: O
País do Carnaval, Cacau, Suor, Jubiabá, Capitães de areia, O cavaleiro da
Esperança, Mar Morto... Vendo meu interesse, minha mãe colocou na vitrola o
disco do Caymmi com as canções do mar. “É doce morrer no mar, nas ondas verdes
do mar...” Tinha escolhido minha leitura das próximas férias.
Fui para a fazenda e chegando lá, cadê o
livro? Esqueci. Estava inconformado! Nos anos 1960, no meio rural, a
comunicação era complicada, as encomendas vinham pelos leiteiros. Notícias,
pães, remédios, querosene, produtos veterinários, etc., tudo vinha pelo
caminhão leiteiro. O leite era transportado em latões de metal de 50 litros,
uma bagunça organizada. O leiteiro media o leite, anotava num papelzinho,
entregava ao encarregado da fazenda e levava uma cópia consigo. Era a única
certeza que tínhamos: o leiteiro nunca falhava, fosse sob o sol quente, poeira
ou debaixo de uma chuva daquelas de derreter pedra. Ele dava notícias de todos,
trazia cartas, levava frutas, tudo misturado aos latões de leite, sacolejando
em péssimas estradas de terra. A solução foi pedir ao leiteiro que entrasse em
contato com minha mãe e me trouxesse o livro.
Dois dias depois, a encomenda chegou,
embrulhadinha em papel pardo, amarrada com barbante e o nome da fazenda, nada
mais. Eu não conhecia a Bahia, poucas vezes tinha ido à praia, mas em minhas
mãos eu tinha a literatura que eu queria ler. Li na varanda, olhando os campos
suaves do Cerrado, pensando nas ondas do mar... Ao entardecer, eu compreendi
que as histórias também servem para emocionar e produzir tensões.
Publicada no Jornal da Manhã, em 20 de maio de 2018.
http://www.jmonline.com.br/novo/?noticias,22,ARTICULISTAS,159092
O
escritor mencionado na crônica publicada em 20 de maio de 2018 no Jornal da
Manhã foi Jorge Amado, um dos escritores mais populares do Brasil no século XX.
Jorge
Amado nasceu a 10 de agosto de 1912, em Itabuna, sul do Estado da Bahia. Estudou
Direito no Rio de Janeiro e exerceu a profissão de jornalista. Morreu em
Salvador, no dia 6 de agosto de 2001.
Além
de escritor, Jorge Amado foi um político atuante. Em 1945, foi eleito membro da
Assembleia Nacional Constituinte, pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB),
tendo sido o deputado federal mais votado do Estado de São Paulo. Foi o autor
da lei, ainda hoje em vigor, que assegura o direito à liberdade de culto
religioso.
É
o autor brasileiro com mais obras adaptadas para o cinema, o teatro e a
televisão.
Jorge Amado e Dorival Caymmi
Certa
vez, Clarice Lispector entrevistou Jorge Amado. Eis duas das perguntas que ela
fez a ele:
Clarice Lispector – Qual é o seu método de produção?
Jorge Amado – Parto, em geral, de uma ideia, de um fato, de uma
impressão ou emoção. Durante anos esse ponto de partida vive dentro de
mim, de repente se afirma, começo a ver personagens e ambientes. A
história vem na máquina de escrever.
Clarice Lispector – Você se inspira em fatos reais ou os imagina?
Jorge Amado – As duas coisas: parto de minha experiência de vida para a
criação. Invento muito, mas nunca invento no ar, minha inventiva tem
sempre algo em que se apoiar.
Fonte:
-
LISPECTOR, Clarice. Clarice Lispector entrevistas. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.
Segundo
a Fundação: “Objetivando incentivar o hábito da leitura, a disseminação da arte
da literatura, as obras do escritor Jorge Amado e a cultura da Bahia, a FCJA
realiza doação de livros para instituições, salas de leitura, bibliotecas e
universidades.” Escreva para eles.
Fotografias disponíveis na internet.
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