domingo, 29 de janeiro de 2017
Ferramentas, artes e ofícios
Ferramentas,
artes e ofícios
Renato Muniz B.
Carvalho
Quando eu me percebi gente grande, o
mundo já tinha dado muitas voltas. Quanta coisa mudou de lá pra cá e ainda há
de continuar mudando! As mudanças sempre vão acontecer, mesmo que alguns não
gostem ou não queiram.
Porque as transformações são
inevitáveis. As ferramentas que eram usadas na fazenda do meu avô, por exemplo.
Enxada, enxadão, foice, facão, machado... Algumas delas foram substituídas por
equipamentos de alta tecnologia, rápidos e eficazes. Hoje, muitas dessas máquinas
modernas funcionam movidas a energia elétrica ou a gasolina. A produtividade
dobrou, triplicou... Coisa de louco, se pensarmos em como era há 40, 50 anos!
O Bastiãozinho, enquanto lá trabalhou, e
foram muitos anos, roçava pasto usando uma foice de cabo bem comprido. Ele
brincava conosco dizendo que o tamanho do cabo permitia que ele saísse correndo
caso desse uma foiçada distraída numa caixa de marimbondos. Uma foice durava
bastante, os marimbondos viviam trocando de casa. Os utensílios eram recolhidos
por seus responsáveis ao final do dia de modo a se evitar que ficassem no
tempo, que molhassem, que enferrujassem ou que machucassem alguém. Ele cuidava
das ferramentas como se fossem suas. Elas eram parte do seu ofício.
Foices, martelos, alicates, facões, instrumentos
diversos, parafusos, porcas, arruelas, arame, e outros tantos apetrechos que
permitiam que os trabalhos, consertos e remendos fossem realizados, vinham de
fora, às vezes de longe. Meu avô, nos anos 1940, recebia muita coisa pela
ferrovia.
Já os cabos de madeira eram retirados na
própria fazenda. Recordo-me do Bastiãozinho, no fim do dia, dirigindo-se a uma
mata na beira do rio e voltando com dois ou três cabos de guatambu, minuciosamente
escolhidos. No dia seguinte, ele preparava o cabo, retirava a casca, queimando
devagarinho, eliminando as imperfeições para garantir que estivessem retos e
bem firmes. Selecionava um e guardava os demais. Apanhava a ferramenta e colocava
o cabo. Cada ferramenta tinha um tipo específico de cabo, uns menores, outros maiores
e robustos, como o das marretas, ou mais finos, para os martelos. Era uma
verdadeira ciência! Um dia, eu me atrevi a arranjar um cabo para uma
machadinha. Errei na escolha da madeira, no peso, na forma e no conteúdo. Um fiasco!
A escolha dependia da fase da Lua, da
estação do ano, da idade da árvore, da posição em relação ao Sol...
Desconsiderar essa complexidade popular era errar na certa. O domínio sobre as
ferramentas era de quem as usava. Cada um com seu conhecimento e sua arte.
Um dia, o tempo correu mais rápido do
que de costume e começaram a chegar motosserras, ordenhadeiras mecânicas, roçadeiras
a gasolina, colheitadeiras imensas, tratores ligados aos satélites pelo GPS. O antigo
encanto se perdeu. O domínio sobre as artes e ofícios também. O mundo tinha
mudado e muitos não perceberam. Saudades? Não, mas é preciso questionar e rever
muitos conceitos.
domingo, 22 de janeiro de 2017
A coisa é séria!
A
coisa é séria
Renato Muniz B.
Carvalho
Era uma vez um sujeito muito sério. Não
brincava, não ria, não descansava e tampouco relaxava. Pobre sujeito! Um dia, a
vida passou e ele não percebeu. Vivia reclamando dos outros, queixando-se da
falta de dinheiro, lamentando-se da crise, falando mal do governo, da família,
de você, de mim e do mundo inteiro. Não gostava de ler, preferia ver TV. Não
gostava de viajar, preferia ficar no boteco. Não gostava de ouvir música,
preferia ficar quieto no seu canto, macambuzio. Não gostava da praia, reclamava
da areia, do Sol, da água gelada ou das ondas que o desequilibravam. Não
gostava da oposição, preferia os conservadores, detestava a esquerda. Criticava
os jovens cabeludos, os que se tatuavam, os que gostavam de se beijar pelas
esquinas, odiava os abraços e os beijos. Um horror! Os beijos? Não, o birrento,
o mal-humorado! Pedia que não o incomodassem. Continuaria intratável e zangado
para o resto da vida. Numa palavra: um sujeito triste.
O povo diz que pra tudo quanto há tem um
jeito. Não há mal que dure pra sempre, nem bem que não se acabe. Ou será o
contrário? Não importa! Um dia o sujeito ranzinza teria de mudar de vida, teria
de ver o mundo com outros olhos. Os conhecidos aconselhavam uma mudança de postura,
de atitude. Qual o quê! Sugeriram que ele participasse de competições
esportivas. Sugeriram que fosse dançar numa gafieira, que fosse ao cinema, ou frequentasse
algum clube. Nada disso! Os mais inconformados sugeriram que ele entrasse num concurso
de tocar guitarra sem guitarra. Não quis. Ficou irritado: “Tocar guitarra sem
instrumento algum! Tá louco?” A imaginação era perigosa, a curtição era para os
inconsequentes, para os irresponsáveis, ele dizia.
Um dia, ele começou a encolher, a diminuir
de tamanho. Não era efeito natural da velhice, mas um fenômeno diferente, exótico.
Começou com o encolhimento das pernas. Já que ele não gostava de passear, nem
de viajar, não ligou. Conformou-se. Comprou calças menores numa liquidação. Depois,
foram os braços. Incomodava um tanto, mas ele justificava: “Eu não toco
guitarra.” Depois foi a visão. Já que não gostava de ler, muito menos de
livros, de apreciar quadros, de ver o pôr-do-sol, não se importou. Sequer foi
ao oculista. Pra quê?
A sua vida, que já era chata, tornou-se insuportável.
O problema é que achava que com os outros, com os parentes, os amigos e os
conhecidos acontecia o mesmo. Ele não se enxergava e nem ao redor.
Eu tentei falar com ele, explicar que o
mundo mudava sempre, e que ia continuar mudando. Não deu bola. Convidei para um
passeio, para uma viagem, sugeri leituras. Não resolveu. No último domingo, estava
na frente da TV quando desapareceu, sumiu. Foi engolido pelo sistema, virou
poeira, como tudo será um dia. Foi varrido da história. Uns sabem disso, outros
não. Você sabe? Cuidado!
Crônica publicada no Jornal da Manhã, no domingo, 15/01/2017: <http://www.jmonline.com.br/novo/?noticias,22,ARTICULISTAS,134429>
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