domingo, 22 de janeiro de 2017
A coisa é séria!
A
coisa é séria
Renato Muniz B.
Carvalho
Era uma vez um sujeito muito sério. Não
brincava, não ria, não descansava e tampouco relaxava. Pobre sujeito! Um dia, a
vida passou e ele não percebeu. Vivia reclamando dos outros, queixando-se da
falta de dinheiro, lamentando-se da crise, falando mal do governo, da família,
de você, de mim e do mundo inteiro. Não gostava de ler, preferia ver TV. Não
gostava de viajar, preferia ficar no boteco. Não gostava de ouvir música,
preferia ficar quieto no seu canto, macambuzio. Não gostava da praia, reclamava
da areia, do Sol, da água gelada ou das ondas que o desequilibravam. Não
gostava da oposição, preferia os conservadores, detestava a esquerda. Criticava
os jovens cabeludos, os que se tatuavam, os que gostavam de se beijar pelas
esquinas, odiava os abraços e os beijos. Um horror! Os beijos? Não, o birrento,
o mal-humorado! Pedia que não o incomodassem. Continuaria intratável e zangado
para o resto da vida. Numa palavra: um sujeito triste.
O povo diz que pra tudo quanto há tem um
jeito. Não há mal que dure pra sempre, nem bem que não se acabe. Ou será o
contrário? Não importa! Um dia o sujeito ranzinza teria de mudar de vida, teria
de ver o mundo com outros olhos. Os conhecidos aconselhavam uma mudança de postura,
de atitude. Qual o quê! Sugeriram que ele participasse de competições
esportivas. Sugeriram que fosse dançar numa gafieira, que fosse ao cinema, ou frequentasse
algum clube. Nada disso! Os mais inconformados sugeriram que ele entrasse num concurso
de tocar guitarra sem guitarra. Não quis. Ficou irritado: “Tocar guitarra sem
instrumento algum! Tá louco?” A imaginação era perigosa, a curtição era para os
inconsequentes, para os irresponsáveis, ele dizia.
Um dia, ele começou a encolher, a diminuir
de tamanho. Não era efeito natural da velhice, mas um fenômeno diferente, exótico.
Começou com o encolhimento das pernas. Já que ele não gostava de passear, nem
de viajar, não ligou. Conformou-se. Comprou calças menores numa liquidação. Depois,
foram os braços. Incomodava um tanto, mas ele justificava: “Eu não toco
guitarra.” Depois foi a visão. Já que não gostava de ler, muito menos de
livros, de apreciar quadros, de ver o pôr-do-sol, não se importou. Sequer foi
ao oculista. Pra quê?
A sua vida, que já era chata, tornou-se insuportável.
O problema é que achava que com os outros, com os parentes, os amigos e os
conhecidos acontecia o mesmo. Ele não se enxergava e nem ao redor.
Eu tentei falar com ele, explicar que o
mundo mudava sempre, e que ia continuar mudando. Não deu bola. Convidei para um
passeio, para uma viagem, sugeri leituras. Não resolveu. No último domingo, estava
na frente da TV quando desapareceu, sumiu. Foi engolido pelo sistema, virou
poeira, como tudo será um dia. Foi varrido da história. Uns sabem disso, outros
não. Você sabe? Cuidado!
Crônica publicada no Jornal da Manhã, no domingo, 15/01/2017: <http://www.jmonline.com.br/novo/?noticias,22,ARTICULISTAS,134429>
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário