terça-feira, 7 de julho de 2015
Um domingo de bicicleta
Renato Muniz Barretto
de Carvalho
Nos anos 1970, morei em São Paulo. Eu me
mudei para estudar e aprender – são coisas diferentes! No início, a cidade me
assustou muito, depois nos tornamos íntimos. Descobri seus becos, suas bocas,
suas grandes avenidas, suas ruas de terra, sua periferia, seus prédios altos,
suas sombras, seus teatros, cinemas, livrarias, botecos, sua gastronomia
semanal e a feijoada dos sábados, que fica pronta desde a madrugada. Quanta diversidade!
Assustei-me sempre com seu trânsito caótico e jamais imaginei que um dia
poderia percorrer de bicicleta o velho centro, a Praça da Sé, a Praça da
República, o Minhocão... Quarenta anos depois, animado pela inauguração da
ciclovia da Paulista, resolvi passear por outras ciclovias, e redescobri a
cidade!
Minha relação com a cidade vem desde os
anos 1960, quando eu vinha a passeio. Não posso dizer que a conheci, pois tudo
o que eu via eram imagens rápidas através da janela do carro. A cidade era
passagem, em direção ao litoral, ou local de residência de parentes a serem
visitados.
Nos anos 1970, foi meu pai que me
apresentou à cidade, formalmente. O que eu vi foi uma cidade de terno, uma
cidade sisuda, apressada. Essa impressão inicial foi se desfazendo aos poucos,
foi se desmanchando à medida em que eu conhecia as outras cidades, que estavam imbricadas
numa só, convivendo no mesmo espaço, que se multiplicava assustadoramente, rica,
pobre, violenta, com estéticas diversas e curiosas, algumas duradouras, outras
tão efêmeras que num segundo estavam ali, à disposição do olhar, e no outro
instante tinham desaparecido pra sempre, nem adiantava procurar mais. A solução
era prestar mais atenção ao próximo grito, à próxima performance, à próxima
esquina. As melhores fotografias dependem da hora certa de apertar o
disparador, da combinação de cenário, luz e personagens. Para entender São
Paulo, o melhor era usar uma câmara fotográfica. Fui fotografar rostos!
Morador da metrópole, eu precisava
percorrer longos trajetos, estabelecer contatos, falar sua língua, perceber
seus cheiros e suas cores. Comecei pelas livrarias, onde sempre me senti
acolhido, preservado na minha identidade adolescente. Das livrarias aos sebos,
às bancas de rua, às feiras livres aos domingos, onde era possível provar todas
as frutas sem gastar um centavo. Depois, os cinemas, os restaurantes, desde os
que serviam sopas baratinhas até os mais sofisticados. Aprendi os itinerários
dos ônibus, os fluxos e os gargalos de um trânsito insano. Aprendi que a cidade
era de todos, mas também podia ser injusta, opressora, cinza e poluída. Seu
tamanho e complexidade inibiam as bicicletas, os passeios a pé, sua conquista e
transformação num lugar democrático e inclusivo.
Ao percorrer a cidade de bicicleta no último
domingo, ao lado daquelas cidades que já existiam, eu conheci outra, tão
múltipla e tão contraditória quanto, mas diferente. Cidades são assim, são muitas,
e devem ser percebidas em toda sua complexidade, de olhos e coração bem
abertos.
Texto publicado em 05 de julho de 2015 no Jornal da Manhã:
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