terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Algumas lições que um aprendiz de escritor pode levar em consideração ao longo da vida



 Renato e Lincoln

Fala no dia da posse na Academia de Letras do Triângulo Mineiro (ALTM)

Boa noite a todos e a todas.

Minhas saudações e agradecimentos aos senhores presidentes: da Academia de Letras, escritor Jorge Alberto Nabut; e da Associação Comercial, Sr. Manoel Rodrigues Neto. Aos acadêmicos presentes; aos professores da Faculdade de Ciências Econômicas; aos ex-alunos, aos alunos, aos amigos e à família. Boa noite e meu muito obrigado por terem comparecido a esta solenidade.

É com muita satisfação e expectativa que, na data de hoje, 18 de dezembro de 2014, tomo posse como acadêmico da Academia de Letras do Triângulo Mineiro.

Eu nasci em 1957; a Academia foi fundada em 1962; mas a Academia é muito mais velha do que eu, e isso não é uma afronta ou descortesia com uma distinta senhora; ao contrário, é um elogio, e eu digo isso porque grande parte da minha formação intelectual eu devo à Academia e, em especial, a um acadêmico, um acadêmico que chegou tarde à Academia, pois era avesso, como eu, a formalidades, a homenagens e a badalações: meu pai, Lincoln Borges de Carvalho, cuja cadeira na Academia assumo neste instante. Meu pai se foi (faleceu em 27 de dezembro de 2013), como um dia iremos todos nós, mas a Academia há de permanecer, firme, forte, espero que tenha vida longa, principalmente agora que acabou de receber da Prefeitura de Uberaba uma sede à altura do significado cultural que tem para a cidade e para a região. Espero dar, a partir de hoje, como acadêmico, a minha contribuição à Academia, uma pequena contribuição a esta trajetória tão importante, tão significativa, como ela representou para mim desde sempre.

Nesta minha fala, antes de tudo de agradecimento aos acadêmicos que me elegeram e me deram a honra de ingressar nos quadros da Academia, esclareço que não vou fazer um discurso acadêmico, formal, teórico. Vou falar, um pouquinho, de saudade, de formação, de lições aprendidas, de lembranças, principalmente porque estamos no fim do ano, perto do Natal, numa fase em que as emoções afloram com facilidade e em que sobram sentimentos. E, afinal, não é todo dia que um acadêmico ocupa o lugar que foi do pai. Não posso deixar de explicitar que não vivemos mais no período feudal, e as cadeiras da Academia não são transmissíveis devido a condições de parentesco, por herança, mas algumas coincidências acontecem. Preciso dizer, também, que preferia mil vezes não ocupar esta honrosa cadeira e estar aqui apenas no papel de filho, ao lado do meu pai, vivo, atuante, sentadinho na sua cadeira, produzindo, escrevendo, opinando sobre o cenário político e cultural da cidade e do mundo, mas a vida é assim mesmo. Vamos em frente!

É preciso dizer algumas palavras sobre meus antecessores. A Cadeira número um da ALTM foi, inicialmente, ocupada por José Mendonça, o fundador da Academia. O Dr. José Mendonça foi um intelectual emblemático da nossa cidade e região. Professor, escritor, historiador, crítico literário; numa palavra: intelectual; um intelectual atuante, dinâmico, envolvido com as questões de seu tempo e do seu lugar. Eu não o conheci pessoalmente, pois ele faleceu em 1968 e eu era apenas um menino de 11 anos, que ainda usava calças curtas, mas, em 1989, já usando calças compridas e às vezes até terno e gravata (que hoje prefiro não usar), conheci sua biblioteca, na ocasião doada pela família à Fundação Cultural de Uberaba. A presidenta da Fundação naquele tempo era a professora Ivanilda Barbosa, que um dia me chamou e perguntou qual minha opinião sobre a Fundação (FCU) acolher a biblioteca, com os livros, as estantes e todo seu significado. Não pensei duas vezes, e com um entusiasmo adolescente, embora já com 32 anos, com receio de que se perdessem os livros, mais do que depressa fui favorável e tratamos de arranjar uma sala especial para acolher os mais de cinco mil volumes da biblioteca. Pena que, depois disso, outros gestores não deram a devida importância ao acervo e a Biblioteca José Mendonça perambulou por diversos órgãos públicos e muitos exemplares se perderam. Nunca seremos uma sociedade evoluída, livre, justa, solidária e civilizada enquanto não aprendermos a preservar os livros e as árvores.

A Cadeira número um tem por patrono Fidélis Reis. Homem da terra, em vários sentidos; agrônomo, da primeira e única turma formada pelo Instituto Zootécnico, a primeira instituição de ensino superior de Uberaba, deputado federal e escritor também, cujo livro “Homens e problemas do Brasil” conheci e li a partir do exemplar que pertenceu à biblioteca do meu pai. Este livro está na minha memória e não posso deixar de citá-lo. Gostaria de destacar um trecho em que ele fala da beleza e das possibilidades da região do Triângulo Mineiro, na década de 1920, e em que cita um depoimento do então ministro Epitácio Pessoa, depois presidente da República, entre 1919 e 1922, exaltando o município de Conquista, que, “sendo o menor da República, era, entretanto, em relação à área, o de maior e mais variada produção de todo o Brasil”. Meu pai gostava de repetir, sempre que íamos juntos por aqueles lados, onde ele tinha vários parentes, que Conquista tinha sido, um dia, o município brasileiro que mais colhia arroz em todo o Brasil. E como ele gostava desta região do Triângulo, com seus solos férteis, “bom de águas”, como ele gostava de dizer.

Fidélis Reis, no artigo “O Triângulo na moldura de Minas”, também no mesmo livro, cita uma “viagem pelo Triângulo”, em que esteve visitando, dentre outros municípios, Campina Verde, Estrela do Sul, Fronteira, Canápolis, a Serra da Canastra, os rios Grande e Paranaíba e suas belíssimas cachoeiras, e fala das “matas virgens de superiores essências que o machado implacável vai abatendo e o fogo reduzindo a cinzas”. Ah, trágica visão a de Fidélis Reis! Deveríamos ter prestado maior atenção à sua fala.

Batalhador pela educação, Fidélis Reis empreendeu esforços para a instalação do “futuro Instituto Politécnico” com o qual, ele escreve: “sonhávamos dotar o Triangulo Mineiro”. Excelente e oportuna a escolha do patrono da Cadeira número um, e a quem eu não poderia deixar de referenciar e reverenciar.

Interessante observar e fazer uma leitura, en passant, da escolha dos patronos dos acadêmicos iniciais da Academia, muitos deles ilustres intelectuais locais, como Fidélis Reis, Hildebrando Pontes e Borges Sampaio, dentre outros. Isso é significativo e mostra um caminho adotado pelos primeiros acadêmicos, os fundadores da Academia, o da valorização do potencial local, da “aldeia”, no sentido que lhe dá Fernando Pessoa (“O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia...”).

O acadêmico José Mendonça se foi e veio, para ocupar a vaga deixada, a da Cadeira número um, o acadêmico Lincoln Borges de Carvalho. E ele também nos deixou, há quase um ano. E quero imaginar que ele tenha ido sonhando com um conto, à maneira de um outro Borges, o Jorge Luis, que certo dia escreveu a respeito de outro personagem: “Sua morte foi tranquila e misteriosa, pois ocorreu durante um sonho. Nada nos impede de imaginar que morreu sonhando, e até podemos inventar a história que ele sonhava — a última de uma série infinita — e a maneira como foi coroada ou apagada pela morte [...].”

Diversos pontos em comum juntam, se quisermos, José Mendonça e Lincoln Borges de Carvalho. Os dois advogados, escritores e que souberam colecionar livros, cultivar bibliotecas substanciosas, fundamentais. Dessas características não herdei a advocacia, nem a desenvoltura crítica, mas com certeza herdei o amor pelos livros. Felizmente, meus filhos herdaram a veia crítica e independente, o gosto pela liberdade, pela leitura e também pelos livros. Sei que foram influenciados por seus avós, Lincoln e Elza, de modo marcante, mais do que eu suponho. Eis aí um verdadeiro legado, uma herança que vale a pena, o gosto pelos livros e pela leitura.

Foi com meu pai que tive os primeiros contatos com a Academia, antes mesmo dele se tornar um acadêmico. Aliás, que eu me recorde, esta sempre foi uma decisão constantemente adiada por ele, a de entrar para a Academia. Um dia, ele escreveu a uma amiga, questionador e irônico: “me fizeram um imortal, mas quase todos os acadêmicos estão mortos, qual a vantagem? Agora preciso escrever um livro e fazer jus ao título de acadêmico.” Entretanto, sonhava com uma Academia que produzisse e refletisse sobre a história local e regional, tanto quanto se ocupasse de literatura. Foi certamente por isso que colaborou na revisão dos livros “fundadores” da nossa história regional: o do Hildebrando Pontes e o do Borges Sampaio, publicados respectivamente em 1970 e 1971 pela Academia.

Sobre o livro do Hildebrando Pontes (“História de Uberaba e a civilização no Brasil Central”), gostaria de contar uma curiosidade: um dia eu perdi o único exemplar de meu pai. Emprestei, esqueci em algum banco escolar, sei lá onde foi parar. Alguém sabe? Ele ficou muito bravo comigo: “Onde já se viu perder um livro?” Me deu uma tarefa, que eu não consegui cumprir: arranjar outro exemplar para colocar no lugar daquele que foi perdido. Como eu não consegui, depois de um tempo ele apareceu em casa com três exemplares e me disse: “Vê se não perde mais!” E disse irritado: “me custaram muito caro!” Nunca soube a que tipo de valor ele se referia. Pegou um para si e me entregou os outros dois: “cuide bem deles, e qualquer dia desses você me paga”. Mas não me cobrou mais. Restaram a dívida e a bronca bem dada, a lição e uma frase gravada na memória, escrita num pratinho pendurado num canto da estante do seu escritório: “Livro emprestado, perdido ou estropiado”.

Como a história regional sempre foi muito importante para a academia, o Desemboque era um ícone, o povoado onde “tudo começou”. Foi com meu pai que fui pela primeira vez ao Desemboque, numa viagem memorável, no ano de 1973. Um grande amigo dele, o Paulo Lima, já conhecia, deu as coordenadas e lá fomos nós: meu pai, o engenheiro Lucas Borges, o Ronaldo Campos, o Mário Edson e o Jorge Nabut. Acho que, dos que foram a esta viagem, só restamos vivos o Jorge e eu. Saímos de madrugada de Uberaba e passamos o dia todo por lá, desbravadores modernos, zanzando por estradinhas brancas e poeirentas em busca do passado, retornando já bem tarde. Nesta viagem, me encarreguei das fotos, que depois foram publicadas no belo livro organizado pelo Jorge Nabut: “Desemboque, documentário histórico e cultural”, publicado em 1986 pela Fundação Cultural de Uberaba e pelo Arquivo Público. A Academia organizou uma viagem cultural ao Desemboque depois disso. Talvez mais de uma. Quanto a mim, voltei inúmeras vezes lá, onde, segundo meu pai, fazendo troça comigo, ele dizia: “cuidado porque senão ainda vão te eleger prefeito daquilo lá!” Mas falava com carinho, e espanto, por nós, os amigos da minha geração, gostarmos tanto daquele pedaço de mundo perdido entre os chapadões e a Serra da Canastra. Voltei lá com ele, a família, os amigos e até os alunos, incontáveis vezes, uma delas com dois ônibus lotados de alunos do Curso de Arquitetura da Uniube, em 1993. Era imprescindível que eles conhecessem nossa história regional e um pouco da arquitetura do século XVIII da região.

Foi também, por intermédio dele e do Guido Bilharinho, junto com o Maurílio Cunha Campos, que ocupou a cadeira número 14 — hoje do acadêmico Pedro Lima —, Maurílio, que foi presidente em 1977 e 1978, como nos lembra a acadêmica e historiadora Maria Antonieta Borges Lopes — os três, na minha cabeça, eram os “três mosqueteiros da Academia” —, graças a eles é que publiquei meus primeiros textos literários, um no suplemento cultural do Correio Católico e outro na Revista Convergência, interpretados por eles como exemplo de “literatura contemporânea”. Que elegância a minha, não acham?

Ah, como meu pai gostava desta revista, a Convergência! Um dia, eu comentei com ele, provocando-o: “tenho todos os números”, e ele respondeu: “duvido, só se pegou os meus!”, e ríamos desafiando um ao outro. Uns dias depois ele apareceu em casa e pediu: “Cadê a sua coleção da Convergência?” Eu mostrei e ele disse que não sabia onde tinham ido parar alguns dos seus exemplares, mas que não eram os que estavam comigo, de fato. Lembrei-me do pratinho pendurado na estante...

Nos seus últimos anos, já doente, cansado, cada vez mais irritado e inconformado com a velhice, comentava os pedidos feitos pelo “pessoal da Academia” para que publicasse seus contos na revista. Em julho de 2013, me entregou o que é, provavelmente, o último conto que escreveu. Perguntou minha opinião, mas não deu tempo de publicar, em vida. Está comigo, quem sabe um dia a gente publica.

A Academia, para mim, não foi só meu pai — embora é claro que ele foi a influência mais marcante —, mas foram também os amigos, os dele e, depois, os meus, aqueles que eu soube admirar como a verdadeira elite intelectual de Uberaba, como foi o caso do Monsenhor Juvenal, com quem tive a honra de estruturar a Escola de Governo e com quem conversava bastante sobre Ética e Direitos Humanos ao longo dos anos 1990 e início de 2000. Outra presença ilustre, com quem pude aprender muito, foi a de Dona Terezinha Hueb. Com ela trabalhei no Curso de Letras da então Fiube e depois no Colégio Nossa Sra. Das Graças. Com várias pessoas ligadas à Academia convivi nos anos 1970, 1990 e agora, no século XXI. Não posso me esquecer de mencionar mais uma vez o Maurílio Cunha Campos, para citar só os que já se foram. Com ele convivi principalmente em função das atividades em torno do Teatro Experimental de Uberaba, o TEU, que ele chamava carinhosamente de “teatrinho”, em reuniões na sua casa, à Rua Alaor Prata, para onde íamos conversar sobre teatro, política, literatura, ou na sua sala no Cartório do Primeiro Ofício, ali na esquina da Rua Artur Machado com a Avenida Leopoldino de Oliveira, onde passávamos sempre para dar um alô, pedir uma opinião.

Um dia, já nem me lembro direito, um grupo grande foi até a casa do Maurílio. Eu, com certeza, era o mais novo, devia estar com meus 15 ou 16 anos. Todos bebiam uísque e cerveja; eu não. Maurílio insistia: “beba, só um pouquinho, não vamos contar para o seu pai”. Mas meu pai estava lá também, e não adiantava pedir socorro, eu tinha de me virar sozinho. Se minha mãe estivesse presente seria diferente. Mas eu não arredei pé da minha decisão. Aí, a insistência de todos foi aumentando. Foi quando apareceu a Luci, esposa do Maurílio, e, percebendo a pressão à qual eu estava cruelmente submetido, perguntou se eu não queria ao menos água; o que parecia necessário é que eu tinha de ter um copo nas mãos, não importando o líquido. Foi então que caí na besteira de dizer: “Quero um copo de leite!” Durante muito tempo tive de aguentar as gozações da turma. “O menino do Lincoln prefere leite a uísque!” Não foi fácil entrar no mundo adulto! No mundo dos acadêmicos!

Um dia, o Ronaldo Campos, outro acadêmico, um dos grandes amigos do meu pai, que ocupou a Cadeira número 23 da Academia, chegou na nossa casa, à Rua Dr. José Ferreira. Era dezembro, final dos anos 1970, e, sabendo que eu estava de férias (naquela ocasião eu morava em São Paulo), ele foi ao meu quarto para conversar, para saber das coisas de São Paulo, da política, do cenário cultural. Sem cerimônias, ele começou a mexer nos meus livros, que estavam sobre a minha escrivaninha, e encontrou um livro do Leon Trotsky, o líder da Revolução Russa, caído em desgraça por se contrapor a Stálin. Espantado, ele pegou o livro, “Minha vida”, livro de memórias do velho revolucionário, e foi ao encontro do meu pai: “Lincoln, Lincoln, olhe o que seu filho está lendo!” Era o espanto de um simpatizante do antigo PCB, o “partidão”, mas com todo o carinho, ainda que com “censura”, e o desejo de que fosse breve a minha “recaída” ao trotskismo, desejoso de um retorno meu à linha stalinista e o abandono do “revisionismo”. Ironias da história!

Com eles todos, com a efervescência cultural e política dos acadêmicos, com o cineclube, dirigido de modo sempre entusiasmado e competente pelo Guido Bilharinho, com as comemorações realizadas por ocasião dos 50 anos da Semana de Arte Moderna, em 1972, com as viagens ao Desemboque, com o teatro, primeiro sob a direção do Aldo Roberto, com as peças de teatro infantil de Maria Clara Machado, e, depois, com o teatro realmente experimental, sob a direção do Jorge Nabut, do Demilton Dib, do Zebeto Fernandes (cujos textos minha mãe datilografava), da imprensa alternativa, do Pasquim, que líamos na casa do Paulo Lima, do jornal Opinião, do jornal Movimento, da revista Bondinho, dos festivais de música popular, dos festivais de teatro, e por aí vai, é que se deu minha formação intelectual. Não por mim, mas por todos esses intelectuais brilhantes, é que digo: valeu a pena! Valeu ter convivido com todos eles, e a Academia era sempre uma referência, uma citação. Chegar à Academia, se é que tenho algum mérito literário ou intelectual, só pode ser o resultado do que consegui aprender com todos eles, em especial com meu pai.

Irônico e crítico, às vezes nos ensinava, aos filhos, por meio de atitudes. Não gostava de dar explicações. Eu tenho o costume, em alguns textos que escrevo, de explicar, acho que para facilitar a vida do leitor. Ele insistia comigo, com razão: “deixe que o leitor tire suas próprias conclusões”. Certa vez, vieram a Uberaba os fanáticos da instituição conhecida por TFP, ou “Tradição, Família e Propriedade” (a “Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade”, que coisa mais arcaica!). Foi no início dos anos 1970, era uma tarde quente e preguiçosa quando tocaram a campainha de casa e pediram para falar com o responsável. Vestiam roupas escuras, ternos estranhos, carregavam cruzes, estandartes, eram tipos extemporâneos, vindos de alguns séculos atrás. Fui correndo avisar ao meu pai e informei direitinho quais eram as características dos visitantes. Ele pediu que eu voltasse e perguntasse o que queriam. Queriam dinheiro e doações para os projetos deles. Percebi que erraram redondamente de casa. Voltei e meu pai pediu que eu fosse até a vitrola e colocasse em alto volume um determinado disco e dissesse que ninguém poderia atendê-los naquele momento. Fiz o que ele me pediu e eles foram embora embasbacados. O disco era um compacto com a música “Pra não dizer que não falei de flores”, do Geraldo Vandré. Só um pouco mais tarde é que fui entender a estratégia de provocação do meu pai e sua recusa em atendê-los.

Meu pai era meu crítico mais ferrenho e o mais honesto. Eu nunca sabia se era bom ou ruim levar minhas crônicas e outros escritos para sua apreciação. Às vezes eu saía de seu apartamento muito arrependido. Ele era rígido, quase ácido, rigoroso demais. Tenho vários contos escritos, apenas um ou dois publicados, à revelia dele, que sempre me recomendava: “trabalhe neles mais um pouquinho”, e sucessivamente dizia: “um conto nunca está pronto”. Portanto, continuam inéditos. Vou trabalhar neles mais um pouquinho. Seu livro “Programa de domingo” ele quis que fosse recolhido, depois de pronto, e mandou fazer uma nova edição, só por conta de revisar alguns contos. Seu belíssimo livro de memórias, o “Roteiro Cinza”, revisado inicialmente por minha mãe, depois pelo meu filho Hugo, ele nunca se decidiu a arriscar uma publicação comercial, a não ser em edições limitadíssimas, dedicadas apenas à família, aos filhos e aos netos. Dizia que só publicaria depois que todos os personagens estivessem mortos. E agora?

Quanto às crônicas que eu escrevia, e continuo escrevendo, agora publicadas quinzenalmente no Jornal da Manhã, ele era mais condescendente. Depois que eu ia embora, ele comentava com minha mãe: “este menino está aprendendo a escrever crônicas”, ela vinha me contar. Ele dizia que os antigos funcionários do meu avô, o velho Januário, carpinteiro da fazenda, e o compadre Quinzote, dublê de vaqueiro, gerente e conselheiro do meu avô, personagens de algumas crônicas minhas, é que ainda iam me ensinar a escrevê-las. Um crítico assim faz muita falta na vida de um eterno aprendiz de escritor, se é que algum dia eu chego lá.

Se somos o que somos na vida, isso acontece, em grande parte, graças aos nossos interlocutores. Mais do que outras influências, às vezes até mais próximas, são os interlocutores que nos formam. Meu pai foi um interlocutor privilegiado que eu tive. Um bom escritor, crítico mordaz do mundo contemporâneo, observador agudo e perspicaz, estava atento ao xadrez do mundo. Sabia jogar o xadrez da vida, não o do tabuleiro, mas nunca tripudiou sobre os perdedores. Embora às vezes fosse cáustico demais, principalmente conosco, os filhos.

Eu sempre quis ser um interlocutor assim, talvez exagerando na condescendência, principalmente em relação aos meus alunos. Almejei ser uma voz contra a opressão da escola, uma voz crítica, contra a mesmice, a favor da alegria de aprender, da criatividade, da cultura letrada, livre e independente, da ironia contra o medo e contra as convenções autoritárias. Paguei, em algumas ocasiões, um preço alto por algumas escolhas e ousadias, mas tentei, e espero continuar tentando, através dos meus escritos, com a ajuda das crônicas e dos contos, se é que algum dia vou terminá-los. Com a ajuda dos amigos, quem sabe?

Espero, agora com o estímulo maior de pertencer aos quadros da Academia, de continuar o diálogo com meus alunos, com meus amigos, com meus leitores.

Dito isso, creio que posso encerrar esta fala.

Agradeço o carinho de todos.

Renato, Marcos Bilharinho e João Lenis (18/12/2014)

 Ronaldo, Mozart, Clarckson, Miriam, Lincoln e Moacyr Laterza


Pessoal da ALTM em Sacramento, MG (1973)

Lincoln, Milton, Dodô e Ronaldo

 
Lincoln, Renato, Maurílio Moraes e Castro e Demilton Dib


Lincoln, Moacyr Laterza e Ronaldo Campos em BH

Ronaldo Campos, Maurílio e Moacyr Laterza

 Ronaldo, Moacyr, Gabriel Andrade e Maurílio Laterza

Paulo Lima, Lincoln, Moacyr Laterza e Ronaldo Campos

2 comentários:

ZéBeto Fernandes disse...

Renato Muniz,

Seu discurso de posse é um documento histórico. Durante a leitura pude acessar cada um dos fatos que narrou e as pessoas que desfilaram por entre as frases tão bem articuladas que também arranham a minha memória. A sua chegada na Academia é apenas mais uma estação de um "trem" que não se move em bitolas, mas no imaginário dessa terra e dessa gente por onde engatinhamos, adolescemos e gritamos a nossa liberdade de pensamento e de criação. Nada mais justo que suas linhas fizessem o passado tomar vida. Pude beber um pouco dessas fontes literárias como se fossem as águas mágicas de Ponce de Leon, com a eterna juventude que voce respira e escreve. Muito honrado de ser citado nessa galeria de poetas, escritores e criadores de mundos. É muito para um simples escrivinhador que nem sabia datilografar e tinha o carinho de Elza sua mãe, nossa mãe, para dedilhar nossos primeiros textos para o teatro, querendo ser adultos na infância do nosso nascer. Fiquei emocionado, arrepiado, travado e explodi em lágrimas ao ver como se pode reviver tudo com as palavras. Você é um mágico, pois rescussitou o velho e grande Bandeira: "Morre-se duas vezes, uma quando o corpo vai, outra quando se esquecem da gente." Obrigado por me fazer tantas emoções e ainda me gerar tantas reflexões sobre como são rica essas nossas "Minas Gerais", para se plantar as letras, "uma montanha" segundo Rosa de Guimarães, repleta de mato e morro, bem vivos nesta retórica histórica. Sorte a nossa temos filhos e pais assim, para escrever o que necessitamos ler, por todos os séculos, amém. (ZéBeto Fernandes, que não pode ir te assistir por estar cuidando de um pai que sobrevive aos 91, mesmo sem ter escrito uma vírgula literária, mas que me permitiu encontrar desde cedo essa gente imortal que vive em sua fala e texto)
Abraços, abraços e mais abraços

Cléia Gobbo disse...

Professor Renato Muniz, como é bom poder ler seu discurso, seus contos e crônicas e tudo o que o Senhor escreve.
Cada dia admiro mais seu talento, seu dom de escrever.
Seu discurso de posse na Academia nos faz viajar ao passado e entender melhor a sua história de vida.
Lindas, sentidas e verdadeiras palavras. O Senhor teve como referência, um grande Homem, seu Pai!! E isso nos faz entender melhor, essa sua herança tão rica de conhecimento e de vivência.
O Senhor foi um privilegiado de ter um Pai, severo, crítico, amigo e sensato. Nós ( eu e Drielle, minha filha, somos privilegiadas em termos um Professor, Mestre e Amigo como o Senhor.
Muito sucesso nessa nova caminhada!!
E que venham mais livros, mais contos e crônicas! Saúde! Abraços a sua família linda.
De sua sempre, admiradora, aluna e amiga, Cléia Gobbo .