sexta-feira, 10 de junho de 2011

A autonomia da Universidade está ameaçada

Hugo Maciel de Carvalho* e Renato Muniz Barretto de Carvalho**

“(...) quero deixar bem claro que o meu protesto contra as arbitrariedades que vêm sendo cometidas pela polícia contra universitários e contra a Universidade, arbitrariedades que constituem mesmo um atentado contra as idéias, em nome das quais, como se publica, foi desencadeado o movimento vitorioso.” Paulo Duarte em carta ao Jornal O Estado de São Paulo, em 15/05/1964.

Um estudante da USP foi assassinado com um tiro na cabeça na noite de ontem dentro da Cidade Universitária, zona oeste paulistana.

Folha de São Paulo – 19 de maio de 2011.

Após o primeiro caso de roubo seguido de morte ocorrido na Cidade Universitária, o reitor da USP, João Grandino Rodas, cobrou maior presença da PM no campus.

Folha de São Paulo – 20 de maio de 2011.

Em carta à reitoria, os estudantes alegam que a perda do colega "escancara" a necessidade de discutir o problema da insegurança dentro da Cidade Universitária.

No texto, reclamaram da iluminação ruim, da pouca quantidade de vigias -60 divididos em dois turnos-, mas em momento algum pede a presença da PM no local.

As reivindicações serão levadas ao Conselho Gestor. A presença da PM no campus será tema de debates de alunos na próxima semana para que se firme uma posição. O assunto divide estudantes.

Folha de São Paulo – 20 de maio de 2011.

A história das tensas relações entre a repressão policial e a comunidade da Universidade de São Paulo é antiga. Remonta aos anos 1940, segundo “O Livro Negro da USP” (1978). Mas foi nos anos 1960, à época da transferência de algumas unidades acadêmicas para a Cidade Universitária, no Butantã, que estas relações deixaram “marcas profundas” (O Controle Ideológico na USP (1964-1978)). Neste momento é que foram construídos novos prédios para cursos que antes eram espalhados pela cidade. Restaram algumas unidades no centro da cidade de São Paulo, dentre elas a Faculdade de Direito, (no Largo de São Francisco), a Saúde Pública, a Medicina e a Enfermagem (todas praticamente no mesmo quarteirão), a Maria Antônia, sem faculdades, o prédio da pós-graduação em Arquitetura, na Rua Maranhão, e o Museu Paulista (no Ipiranga).

Anos depois da construção do campus, a ditadura militar desabou sobre o país e alguém teve, em 1970, a “grande” ideia de colocar a Academia de Polícia na entrada da Universidade.

O problema é que a Universidade (não só a USP) sempre existiu fundamentada em três princípios: liberdade acadêmica, liberdade intelectual e autonomia (acadêmica, intelectual, administrativa, etc.).

A Universidade, no seu Campus de São Paulo, é uma verdadeira cidade, com prefeitura e tudo; precisa ser um local livre, independente, porque senão as ideias, a produção científica, a criatividade, o ensino não funcionam. Essa é a ideia básica original. Assim se criaram e se formaram as grandes universidades do mundo.

A filosofia por trás da universidade é a de que só pode haver conhecimento (ensino-pesquisa-extensão) com LIBERDADE; do contrário NÃO há ensino, mas adestramento, treinamento, repetição, reprodução.

Então, o dilema é: ou temos um ensino livre, autônomo, ou não temos ensino nenhum. Tanto o professor quanto o aluno só podem, hipotética e realmente, aprender num clima de TOTAL liberdade e autonomia.

As universidades no Brasil, em especial a USP, sempre se caracterizaram por trabalhar dentro dos princípios norteadores das grandes universidades do mundo. Justamente por isso a USP sempre foi o “celeiro do conhecimento” brasileiro: é a instituição que mais faz pesquisa, é a instituição que mais tem livros (mais de 1.400.000 volumes), é a instituição que mais publica periódicos, etc.

Mesmo assim, sempre se caracterizou por estar imersa em contradições. Uma delas: mesmo sendo uma universidade pública, sempre foi um local dominado pela elite econômica e social.

Por seus princípios e por suas contradições, a Universidade de São Paulo sempre foi a mais concorrida, a mais visada, mais vigiada pelas forças conservadoras e retrógradas do país e de São Paulo.

Desde antes da ditadura, sempre quiseram “dobrar” a USP, sempre quiseram “quebrar” a USP e os seus professores, alunos e funcionários mais radicais, mais libertários, mais à esquerda. Sempre quiseram submeter a USP aos interesses da elite socioeconômica paulista. E, em grande parte, conseguiram. Como? Diminuindo verbas, manipulando eleições para os cargos acadêmicos, condicionando as verbas para pesquisas aos interesses das indústrias, vigiando professores, estimulando uma “nobiliarquia” para controlar a universidade.

A USP sempre teve fama e tradição de oposição, de rebeldia, em especial a Filosofia (que ficava na Maria Antônia), a Letras, a História, a Geografia e a Ciências Sociais, seguidas pela Arquitetura, pela Geologia e pelo Direito. De um modo geral, todas as faculdades tiveram seus expoentes, seus líderes progressistas. E todas também tiveram os seus reacionários. Dentre os progressistas, a USP teve Florestan Fernandes, Mário Schenberg, João Cruz Costa, Villanova Artigas, Samuel Barnsley Pessoa, entre tantos outros.

A elite socioeconômica (paulista e brasileira) nunca ficou contente com esse pensamento progressista, nunca aceitou as manifestações ostensivas do pensamento progressista (quanto ao pensamento libertário, este jamais mereceu sequer espaço dentro da universidade), a elite nunca engoliu aulas progressistas, rejeita uma produção científica progressista, que só consegue espaço à custa de muita luta. O pensamento da elite é mais ou menos o seguinte: “se nós [eles pensam que são eles] estamos dando dinheiro para a educação, então nós temos o direito de dizer qual educação nós queremos”.

Em alguns países, mesmo naqueles em que as universidades são pagas e tudo o mais, funciona um pouquinho diferente, porque se respeita a autonomia universitária (em grande parte). Ou seja: apesar dos subsídios que as universidades recebem (ou vocês pensam que elas seriam as primeiras do mundo em ensino e pesquisa apenas com o dinheiro das mensalidades?), respeita-se a liberdade acadêmica.

Pois bem, e onde entra (ou não entra) a polícia nessa história?

Durante o regime militar, a resistência dentro da USP foi muito grande contra a ditadura. E a polícia sempre quis dobrar essa resistência. Custou muito manter a autonomia. Foram anos de crimes políticos cometidos pelas forças do Estado contra os estudantes, os funcionários e os professores. Só que a violência do Código Penal nunca foi tão comum dentro do campus como é hoje. Lá pela virada da década de 1970/1980, um caso em especial chocou: um estudante assassinou uma prostituta e jogou o corpo dela num bueiro do campus. O caso realmente chocou. Ou seja, essa violência sempre existiu dentro e fora da USP.

Furtos, assaltos e estupros (principalmente à noite) sempre ocorreram (AVISO: isto não é uma escusa, ok? Continuem lendo). Mas, pouco a pouco, com a orientação política de retirar as verbas paulatinamente, os investimentos em iluminação, em segurança, etc. foram diminuindo. Além disso, as classes médias e populares (ainda que em menor número) foram chegando, ao mesmo tempo em que parte das classes média e rica se dirigiu às universidades particulares ditas “de ponta”. Ou seja, com isso, a USP foi perdendo o interesse para a elite paulistana. Afinal, para quê investir tanto numa instituição que só causa “problemas”?

É um processo contraditório, pois a elite socioeconômica precisa do conhecimento produzido dentro da universidade pública. Então, não pode retirar tudo de uma vez. Por isso, tira dos mais pobres: dos que frequentam cursos noturnos (iluminação e segurança), dos cursos que dão menos retorno para as indústrias (Letras e demais ciências humanas “não aplicadas” reconhecidamente carecem de estrutura básica). E passa a haver financiamento pesado (via fundações ou outros mecanismos miraculosos) para cursos como Economia, Engenharia, Geologia, Medicina, Direito (desde que o pessoal faça tudo “direitinho”, conforme o script); passa a existir uma USP Leste com seus currículos contestáveis (afinal: por que mesmo não criar um curso de Direito na Zona Leste?).

Mas e a polícia? Bem, “deixaram” chegar a esse nível de insegurança, a essa “insegurança” do tipo que a mídia adora explorar, a fim de criarem (estão criando!) o clima perfeito para a entrada da Polícia. A “comunidade pede segurança”. Será que é isso mesmo? Essa é a solução? Ou essa é a solução que “eles” querem que a Universidade engula goela abaixo? Se a polícia entra uma vez, se instala, não vai sair nunca mais. E vai ser fácil controlar o que “eles” quiserem. Greve? Não pode. “Manifestação”? Não pode. Mudar algo de lugar, não pode...

Paranoia ou lições do passado? Dá pra confiar na polícia brasileira? Por que permanecem os casos de tortura? Por que “eles” têm tanto medo da apuração dos casos ocorridos no período da ditadura militar?

A solução, a ser discutida democraticamente com toda a comunidade acadêmica, seria investir na segurança interna, num sistema de transporte coletivo e saudável (mas não, porque, “afinal”, transporte coletivo é “coisa de pobre”). Investir em iluminação (mas não, porque isso é um custo desnecessário para bancar quem frequenta os cursos noturnos depois de um dia inteiro de trabalho). Investir em educação e em prevenção (mas não, porque isso é algo em que não se acredita). A elite socioeconômica (que detém o controle político do Estado de São Paulo) fatura é com o medo, e o que sabe fazer é o “controle”, a punição: são positivistas, autoritários, não gostam e não costumam ouvir nem discutir com a comunidade.

O que se quer é segurança, mas não uma intromissão da polícia no campus. As pessoas se preocupam com a situação de todos dentro do campus — alunos, funcionários, professores e pessoas não ligadas à Universidade, como os ciclistas que treinam diariamente nas ruas do Campus, como as mães das crianças que ficam na creche ao lado da Faculdade de Educação, como todas as pessoas que vendem camisetas e gibis perto do bandejão — todos os que frequentam a USP precisam de segurança, sim. Mas a solução não é entregar o controle da segurança da Universidade para a Polícia Militar.

É melhor que o campus seja mais bem iluminado, que haja um novo sistema de transporte (porque o atual é péssimo, baseado nos veículos particulares e individualizado). Mas o Estado quer é terceirizar as coisas, pois é assim que se faz caixa dois. Eles não acreditam no serviço público, pois sucatearam o serviço público; eles não querem pagar bons salários, nem contratar mais gente... No fundo, a elite socioeconômica não quer uma Universidade, mas uma “instituição carcerária”, que seja parte da “cadeia” de (re)produção do sistema.

* Ex-aluno do curso de Direito e atual aluno do curso de Letras.

** Ex-aluno do Curso de Geografia.

Também publicado aqui: http://transindisciplinar.blogspot.com/


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