terça-feira, 6 de abril de 2010

Indiscrições

Renato Muniz Barretto de Carvalho

Ontem eu acordei disposto a trocar meu carro velho por um novo. Nada demais, afinal um carro a mais ou a menos nas ruas não vai fazer mesmo muita diferença, não é?

A dúvida era quanto ao modelo, pois o bombardeio da mídia é intenso e, confesso, estava confuso. Parece que os carros estão adquirindo consciência e sentimento tal o grau de modernidade, informatização e desenvolvimento tecnológico que atingiram. Nem sei se vou ser capaz de dirigir um carro que não preciso mais de trocar a marcha e que fala para onde devo ir. Um carro em que preocupações com baliza, estacionamento ou manobras complexas são coisas do passado, pois eles vêm com sensores, com piloto automático, com vidro elétrico, com direção hidráulica, com computador de bordo, etc. Pergunto: para quê motorista? Coisa mais antiga, arcaica. Mas tudo bem, pensei, é o progresso, é a tecnologia nos beneficiando, nos livrando de trabalho degradante e de ter de sujar as mãos com óleo e graxa. Tomara que venham também com um sistema contra furo de pneu e, quem sabe, num futuro breve, não seja preciso mais usar gasolina e nem álcool. Essas coisas poluem muito o ambiente.

Aí li uma matéria, num jornal especializado, sobre carros com chips. Se um veículo possui o chip é possível localizá-lo onde quer que ele esteja na face da Terra. Nenhum carro, e seus ocupantes, é claro, passarão despercebidos daqui para frente. Ninguém conseguirá se esconder e nem passar um tempo sumido.

O argumento principal está relacionado a roubo, mas eu percebi tudo. Roubo coisa nenhuma, o que se está tramando é um jeito de vigiar as pessoas. Logo eu, que gosto de ir para o mato, que gosto de passar um tempo longe de tudo, no maior silêncio, só observando os pássaros construindo seus ninhos, serei vigiado, seguido, controlado? Não, comigo não.

Imaginem a seguinte situação: eu desapareço por um tempo e chega um helicóptero à minha procura, ou dispara um alarme bem na hora em que uma onça pintada aparece para beber água naquele refúgio que só eu e ela conhecemos? Ficaremos neuróticos, sem dúvida.

E se eu resolvo mudar de direção numa rua ou avenida? Eu explico. Estou me dirigindo a um compromisso e decido mudar de rumo, fazer outra coisa. Digamos que saí para ir ao supermercado, fazer uma compra, mas achei melhor visitar um velho amigo e dou meia volta, vou numa direção completamente diferente. O que pensarão os encarregados de controlar o chip do meu carro? Que fui seqüestrado? Que enlouqueci?

Que situação! Logo estarão no meu rastro, seguindo minhas pegadas eletrônicas, vasculhando minha vida, descobrindo minhas fraquezas, arquivando meus trajetos. Então um carro da companhia de chips me para e o responsável diz: “Senhor Renato, o senhor se desviou do caminho, mudou a rota e não nos comunicou. Não pode fazer isso.” Eu respondo o quê? Mando para aquele lugar ou peço desculpas e volto ao bom caminho?

Melhor não trocar de carro, ou andar mais a pé, de bicicleta, sei lá. E se resolvem implantar o chip na gente? Não! Já basta ter de sorrir de modo hipócrita toda vez que me deparo com uma câmera.

sábado, 3 de abril de 2010

Viagens

Renato Muniz Barretto de Carvalho

Uma boa parte da minha vida profissional, enquanto professor, passou-se fora das salas de aula. Perdi a conta de quantas foram as excursões, as atividades de campo, as viagens de estudos ou os trabalhos de campo. Pouco importa o nome, algumas foram mais técnicas, outras foram puro lazer associado a estudo. Todas valeram a pena. A maior parte delas foi feita de ônibus, mas algumas aconteceram de trem e até mesmo a pé.

Todo professor devia, ao menos uma vez na vida, sair da sala de aula com seus alunos. Ver e mostrar o mundo como ele é. Sentir e estimular a percepção de como os fatos acontecem, sejam eles os físicos e naturais, sejam eles os sociais, antropológicos, econômicos ou históricos. O que importa é ver e participar, proporcionar o contato com a realidade. Não que o aluno não o faça, em casa, nas viagens com a família, no seu cotidiano, a diferença está na maneira de olhar, está na orientação que o professor pode dar e também ao partilhar as descobertas e a aprendizagem com os colegas.

As viagens podem ser longas, curtas, à noite, durante o dia, na praça, distantes ou próximas, o que vale é o momento de saída, a compreensão de que o mundo pode ser apreendido na sua totalidade, na sua complexidade e também na sua simplicidade.

Uma viagem possibilita diversos instantes mágicos incomparáveis, insubstituíveis. Por melhor que sejam as aulas, ou por melhores e mais bem produzidos que sejam os audiovisuais, nada se compara ao contato direto com a natureza ou com a realidade construída pelas sociedades na sua dinâmica e diversidade. Museus, monumentos, paisagens, rios, serras, cidades, lugarejos, igrejas, bibliotecas, teatros, casinhas ou prediões, dentre outros elementos da paisagem natural ou social, existem para serem admirados, visitados, discutidos e conhecidos.

As viagens não são fáceis de serem planejadas e nem sempre recebem o necessário apoio da direção das escolas e dos pais. A responsabilidade acaba ficando por conta do professor, principalmente quando algo não ocorre conforme previsto. Diversos fatores interferem no sucesso de uma viagem, além do medo, por parte dos responsáveis, de que alguma coisa aconteça de errado. Essas dificuldades poderiam ser mais bem superadas se todas as etapas fossem compartilhadas por todos. Viagens não começam no instante de partida, nem terminam na hora da chegada, mas envolvem um bom projeto, uma boa razão, trajeto, condução, materiais, horários, enfim dão trabalho, o que pode desestimular e dificultar sua realização. Mas nada se compara ao rosto cansado e relaxado de quem chega de uma viagem com muita história para contar, com uma experiência, boa ou não, para relatar e guardar na memória. Sinal de que algo ficou, de que aprendemos alguma coisa, de que a autonomia diante da vida e da realidade foi, ainda que em parte, conquistada.

Ao retornar de mais uma das inúmeras viagens que fiz ao Parque Nacional da Serra da Canastra com alunos e amigos, essa é a sensação que tenho -- dá trabalho, mas vale a pena, desde que bem planejada -- e que resolvo repartir com meus leitores.