Ninguém sabe contar ao certo como tudo começou. Parece que foi uma coisa simples, algo corriqueiro, assim como uma correspondência à toa colocada debaixo da porta. Alguns vizinhos, em depoimentos à polícia, disseram que acontecia de vez em quando. Ora uma propaganda, ora produto em oferta, uma loja em liquidação, revistas, convocatórias para reuniões, propagandas do governo, jornalecos de políticos repletos de fotografias três por quatro dos próprios, uma novidade qualquer, convites de casamento e, o pior, as contas a pagar e os extratos bancários. Tais papéis começaram a aparecer com maior freqüência e, como se não bastasse, às vezes viam em dobro, como para lembrar ao sujeito quanto ele tinha no banco ou qual era o seu saldo devedor.
Na lógica do Zeca Antônio, nada podia ser jogado fora. Segundo depoimento dos porteiros e faxineiros do prédio onde ele morava, nem os envelopes eram descartados, ele dizia que um dia poderia precisar deles. Para terem uma idéia do problema, até os catadores de lixo reciclável que atuavam na região reclamaram da pouca quantidade de material colocado para fora. O resultado foi que o volume de papel e assemelhados aumentou consideravelmente no interior do pequeno apartamento.
No começo, tudo cabia numa simples gaveta. Com o tempo, ele teve de procurar alternativas para o aumento do material guardado com esmero e carinho. A primeira solução foi passar a armazenar em pastas o seu acervo. Depois, tornou-se um verdadeiro profissional, começou a organizar por título, por assunto, por autoria, e não parou mais. Passou a arrumar as pastas em prateleiras, em estantes e armários. Separou as pastas por cores diferentes, organizou um índice, pensou inclusive em contratar um especialista em arquivos.
Em pouco tempo, todos os cômodos do apartamento já estavam tomados por pilhas de papéis. Pilhas enormes de folhetos, de envelopes, de panfletos, de cartas, de avisos etc. Em certa ocasião, tive uma oportunidade de visitá-lo e fiquei preocupado com o que vi. Tive de sentar numa pilha de jornais, as cadeiras e o sofá estavam tomados por papéis, e o Zeca ficou preocupado, me vigiava para ver se eu não tirava nada do lugar. Eram pilhas separadas por assuntos que só ele sabia o que significavam. Outras pilhas espalhadas pelo chão indicavam revistas e até documentos de imposto de renda de anos anteriores.
O Zeca já não tinha tempo para mais nada. Não saía com os amigos, não ia ao cinema, nem se interessava mais por futebol. Passava seus preciosos minutos organizando e arrumando papéis. E qualquer intervalo era pouco. Reclamava da falta de tempo, queixava-se que dormia pouco, já não se alimentava direito. Como não tinha tempo de preparar suas refeições, e como sua ajudante pediu demissão, pois não agüentava mais tanto papel, passou a pedir comida pelo telefone. Começou a colecionar as embalagens. No início por tipo de comida, por tamanho, por cor, por cheiro e daí por diante.
Um dia desses, liguei para ele e ninguém respondeu. O telefone tocou até a ligação cair. Liguei de novo e fiquei preocupado. Fui até o apartamento, toquei a campanhia e nada de atender. Conversei com o pessoal da portaria e nenhuma notícia dele. Com autorização policial arrombamos a porta e, para surpresa nossa, não encontramos o Zeca. Sumiu, sem deixar notícias. No apartamento apenas pilhas de papel. Quero acreditar que ele se encontra distante da realidade, perdido num mundo de papel, mas que um dia possa voltar. Tem gente que é assim, se esquece do mundo e das pessoas e se perde em preocupações e pilhas de papel.
Um comentário:
Excelente texto Renato!
Se não tomarmos o devido cuidado logo nos tornamos meros pesos de papel Rssrrsrsrs sem contar os danos ao meio ambiente com tanto lixo produzido!
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