sexta-feira, 23 de maio de 2025

Perdi minha chave


Perdi minha chave 

Renato Muniz B. Carvalho

         Já deve ter acontecido com você, e com metade dos habitantes do planeta, pelo menos os que têm uma casa, um quarto, um guarda-roupas, uma gaveta ou, no mínimo, uma caixinha para guardar seus pertences. Perdem-se chaves com tanta facilidade que é de espantar. Deve existir um lugar no mundo para onde vão as chaves perdidas, mas não estou me referindo à seção de achados e perdidos dos Correios. Às vezes, achamos; mas, na maior parte dos casos, fica o transtorno, o vazio, a expectativa de um dia encontrar. A esperança nunca morre. 

Onde eu a perdi? Essa pergunta é crucial. Se a pessoa souber responder nos primeiros momentos, a chance de achar é maior. Se não, adeus chave. A minha, eu devo ter perdido na rua. Pode ser que tenha sido dentro de casa, esquecida no bolso da calça, na poltrona do cinema, no boteco, no balcão da panificadora, onde mais? Você sabe? Viu uma chave dando sopa por aí?

Como era a chave? Grande, pequena, prateada, dourada, de cadeado, era um artigo de luxo ou reles pedaço de latão? Estava identificada? Teoricamente, não há uma chave igual a outra, a não ser aquelas que foram feitas como cópias. No meu caso, tive sorte, eu tinha uma cópia. Foi o que me salvou; do contrário, teria de chamar um chaveiro, aguardar que ele viesse, que tivesse como abrir a porta e resolvesse o problema.

Manter as chaves em chaveiros costuma ajudar bastante na hora do sumiço. Estou falando daquelas pecinhas charmosas que unem uma ou várias chaves através de uma argola. Isso dá personalidade às chaves. Antigamente, chaveiros nos eram oferecidos como brindes promocionais, como lembranças, mimos. Muitos de nós colecionamos chaveiros. Ainda tem quem os colecione?

Daqui a pouco, as fechaduras serão todas digitais e não precisaremos mais de chaves. A questão será não se esquecer da senha de acesso. As chaves podem se perder nas ruas e nos bolsos; as senhas serão perdidas nas entranhas profundas do cérebro e, em alguns casos, será impossível recuperá-las. Já pensou nisso? Que medo!

Fiquei triste por ter perdido minha chave. Brotaram no meu peito algumas dúvidas existenciais. Estou ficando esquecido? Não devo sair na rua com chaves e outros objetos? Questões difíceis.

Perder uma chave não é tão grave quanto perder a vida, a esperança, o futuro, mas incomoda, provoca transtornos emocionais e operacionais. É claro que perder uma amizade ou o amor da sua vida é muito pior. O amor da minha vida eu guardo bem juntinho do coração e nunca deixo de prestar atenção pra saber se está tudo bem. Cuidar de quem a gente ama é importante, assim como das pessoas por quem temos apreço. Quanto à chave, eu hei de encontrá-la e, se não tiver sucesso, faço outra. Já as pessoas queridas são únicas, não é?

Revisado por Hugo Maciel de Carvalho (Revisereveja).





terça-feira, 14 de janeiro de 2025

 Anamnese

 Renato Muniz B. Carvalho

Ele me pergunta se eu fumo. Não, não fumo, mas já fumei. Foi na adolescência, para acompanhar os amigos. Cigarro chique, maço elegante, nome estrangeiro, dava uma (falsa) sensação de poder. Cinco ou seis cigarros por dia, nunca em casa. Mas o cheiro era inconfundível, inclusive para meu pai, que fumava, desde os 17 anos, dois maços por dia. Anos depois, percebi que ele tinha perdido o olfato. Minha mãe sabia que eu fumava, mas nunca me perguntou nada. Talvez tivesse medo da resposta.


Comecei com cigarros finos, caros, e encerrei minha carreira de fumante com Gauloises sem filtro, três anos depois. Não conhece? Cigarro francês, fumado por intelectuais, por escritores, por operários. Foi quando percebi que não precisava deles para me afirmar, nem para os amigos nem para ninguém. E parei antes que o vício me pegasse pra sempre, como fez com meu pai. Como eu não era um pária social, melhor enfrentar o mundo de peito limpo, sem o escudo fumacento da indústria tabagista norte-americana. Nunca me identifiquei com aqueles cowboys caladões e machistas que lutavam contra asiáticos magrinhos numa guerra sem sentido.


No começo, foi difícil. Não tinha onde colocar as mãos — no bolso? —, não sabia para onde olhar, tinha receio dos olhares cruzados, os mais perigosos. E se tivesse de perguntar algo para um estranho? Onde ficava o ponto de ônibus, qual o endereço da repartição, do banco, da livraria? Imaginava o cigarro como uma lança pontiaguda, uma arma entre meus dedos, apontada contra os autoritários. Pobre adolescente, trajando calça jeans desbotada, camiseta branca e sandália de couro. Tive de enfrentar, com a cara e a coragem, sem a muleta do cigarro, o mundo que eu achava cruel, e era.


Não, não fumo mais, faz cinquenta anos. E daí? Isso vai me livrar de uma pena, de um castigo, de uma desgraça? Devo comemorar?


As perguntas continuam: você bebe? Sim, comecei a consumir bebidas alcóolicas na mesma época, em quantidades menores e sem a mesma regularidade. Também fazia parte das exigências do amadurecimento. Como ir a um restaurante com os amigos e não pedir uma bebida? Uma vez, pedi leite. Fui escrachado, tive de aguentar gozações e piadas bestas. Por pouco não fui afastado do grupo. A pressão era grande: “Você não é homem?”, perguntavam. Coitado daquele que ousasse responder algo fora da expectativa geral. Se eu dependesse de bebida alcóolica para afirmar minha sexualidade, melhor seria tomar álcool puro de uma vez. Mostraria a todos quem era o bom ali.


Sim, passei por todas, das mais branquinhas às multicoloridas, açucaradas, fortes, fracas, cheias de conservantes. Uma delas, diziam, tinha sido curtida em veneno de cascavel, o guizo no fundo da garrafa. Nunca experimentei. A estupidez tem limites. Aliás, o sistema não cansa de se autopromover. Para qualquer lado que se olha, tem uma propaganda etílica. Depois, cobram responsabilidade da gente. Como assim?