domingo, 14 de fevereiro de 2016

Café com chuva


Café com chuva

Renato Muniz B. Carvalho

Lá pelas três horas da tarde, o céu encheu-se de nuvens densas, cinzentas, escuras e enormes. Eu desisti de sair, cancelei meus compromissos e fui para a cozinha passar um café. Se nem os passarinhos ousavam continuar seu trabalho, por que eu iria?
O vento forte bateu janelas, provocou uma revoada de folhas, papel, poeira e confirmou minhas suspeitas. Esfriou, trovejou e a água caiu. Molhou o chão, fez barulho nos telhados, escorreu pela sarjeta, ocupou a calha dos córregos, lavou as ruas e avenidas arrastando lixo, entulho, pedras, pedrões e pedrinhas morro abaixo.
A melhor solução era um café bem quente e cheiroso, acompanhado de quitandas caseiras. Isso era capaz de me fazer recuperar o tempo perdido. Aproveitei para ficar bem quieto no meu canto, sentado num banco velho de madeira, na cozinha silenciosa, contemplativo. O bule no fogo avisou que a água estava no ponto e o pó de café exalou seu aroma inconfundível. Fragrância que se misturou ao cheiro delicioso de terra molhada, aquele cheiro único das primeiras gotas que caem.
A chuva começou de mansinho e foi se encorpando. O que era uma chuvinha sem futuro transformou-se num aguaceiro capaz de inundar uma cidade, de arrastar carros e de causar desordens. A culpa não era dela, e nem minha. Tratei de aumentar o pó, de colocar mais água no bule, pois a tarde prometia uma boa precipitação.
Não tem momento melhor para repensar a vida, para recordações inúteis, para reflexões infindáveis e desconexas sobre o mundo, sobre o futuro e sobre o passado. Nesse instante, o presente é irrelevante, fica suspenso até segunda ordem. E não adianta ter pressa. A chuva vai passar quando quiser. Pode durar o resto da tarde, intermitente, ou acabar após um estrondoso relâmpago.
Olho pela janela à procura de sinais, o voo de um pássaro, um raio de sol que escape do céu cinzento, e nada. De pernas cruzadas, eu saboreio meu café com pão de queijo e broa. Seguro uma xícara vermelha, o fundo branco, e observo o café bem preto, com bordas de espuma, doce, mas não tanto que a saúde já não permite abusos. Volta e meia, dou uma mordida num pãozinho, numa broa temperada com erva-doce. A chuva prossegue molhada, úmida, instável. Melhor não arriscar prognósticos.
Se fosse possível fazer profecias, ou controlar o tempo, eu escolheria dar por terminado o dia. Bem que a chuva podia continuar até o anoitecer. Eu ficaria ali mesmo, com a xícara de café na mão e o pensamento longe, noutra dimensão, onde o espaço e o tempo tivessem significados mais flexíveis, mais amorosos, aconchegantes como a chuva e o café naquela hora do dia. Muita gente merece algo assim no meio de tarde. Devia ser lei, devia ser tal qual um direito adquirido, café com chuva às três horas da tarde, de segunda a sexta-feira. Por que não? Que mal faz? 
Crônica publicada no Jornal da Manhã, em 14/02/2016. Visite a página do Jornal e leia outras crônicas: http://jmonline.com.br/novo/?noticias,22,ARTICULISTAS,121429




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