terça-feira, 20 de julho de 2010

A lagartixa da biblioteca

Renato Muniz Barretto de Carvalho


Minha biblioteca anda parecida com um zoológico. Nos últimos tempos passou por aqui um morcego, que gostava de ler, uma traça, que felizmente comia roupas, e, por último, uma lagartixa doméstica


Pequena, esbranquiçada, silenciosa, ficava me observando e nem abanava o rabinho. Como sou muito maior do que ela, logo vi que o bichinho ficou muito assustado, temendo por sua integridade física, com medo que eu lhe desse uma vassourada. Eu não faria isso, jamais. No começo ficamos um tempo olhando um para o outro. No que ela estava pensando eu não sei. Logo me pus a imaginar quais seriam suas escolhas literárias: romances? Contos? Poesia? Literatura estrangeira ou nacional? Assuntos acadêmicos?


Minha primeira reação foi de alguém incomodado, invadido na sua privacidade, afinal eu não a convidei, ela entrou de atrevida. O que fazer para ela se retirar? Dizer que foi um prazer conhecê-la, agradecer a visita e abrir-lhe a porta da rua? Não adiantaria, mesmo com a maior gentileza. Conversar sobre literatura? Hoje em dia anda tão difícil encontrar um bom papo, alguém que goste de conversar desinteressadamente, sem pressa, com sabedoria e humildade suficiente para não constranger o interlocutor. Às vezes, me sinto desatualizado, percebo que os jornais e revistas são muito tendenciosos em todos os assuntos. Uma lagartixa, vinda sei de onde, poderia me trazer alguma informação nova, contribuir com alguma crítica interessante.


Estava pensando nessas coisas quando levei um susto danado: conversando com uma lagartixa? Será que a falta de um ambiente intelectual mais diversificado, a carência de ideias novas e a ausência de um cenário mais propício à criatividade me conduziam ao delírio? Induziam-me ao desespero, a ponto de tentar um diálogo com uma lagartixa? Pelo menos, dizem que elas trazem prosperidade, significam boa sorte. Ando precisando.


Como ela não se movia, peguei um livro de zoologia na estante e fui investigar sua vida. Parece que seus antepassados vieram da África, nos navios negreiros. Apurei que elas são parentes distantes das tartarugas e dos jacarés, não transmitem doenças e não costumam freqüentar lugares contaminados. Bichinho simpático, não?


Não gosto de emprestar livros, mas se ela escolheu freqüentar minha biblioteca, que ficasse, desde que não estragasse e não levasse nada embora. Se quisesse ler alguma coisa que fosse aqui. Podia ligar a luminária, abrir a cortina, escolher onde se sentar, mas não podia sujar os livros. Acho que não é de seu feitio. Não recomendei que não comesse na biblioteca porque li sobre seus hábitos, ela se alimenta de insetos e assim podia até ajudar em alguma coisa. Logo pensei em lhe oferecer morada fixa, sem precisar se preocupar com taxa de condomínio, água, luz e telefone. Mas pensei melhor e achei que num jardim ela se sentiria mais confortável. Sei que ela não iria se demorar, que iria embora sem dizer adeus e me deixaria novamente , com minhas ideias e elucubrações, esperando que um dia ela voltasse e nós dois pudéssemos conversar um pouco mais sobre as novas tendências literárias, sobre os novos autores africanos, sobre os latino-americanos e sobre a última postagem do Bibliotecário de Babel.

2 comentários:

Anônimo disse...

Cara brilhante, limpa, clara,angelical e porque não integração das essências humanas. Poetico demais, abraços.

Rodrigo Garcia disse...

"Será que a falta de um ambiente intelectual mais diversificado, a carência de ideias novas e a ausência de um cenário mais propício à criatividade já me conduziam ao delírio?"

Vivo delirando e pelo mesmo motivo rsrsr

Parabéns pela crônica!

Abraços.