quarta-feira, 28 de julho de 2010

A vida nas calçadas

Renato Muniz Barretto de Carvalho

Em 1938, enfrentando inúmeras dificuldades, o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss estudou os índios Nambiquara, ao norte de Cuiabá. Segundo relato belíssimo no livro Tristes Trópicos, ir de Cuiabá ao Amazonas era mais fácil via Rio de Janeiro e daí pelo mar até Belém e depois Manaus. Em 1907, o então coronel Cândido Mariano da Silva Rondon iniciou a penetração nesta região, levando uma linha telegráfica ao interior desconhecido do país. Mas, até 1938, ainda poderíamos falar de um “oeste” (far west) brasileiro.

O antropólogo passou um tempo entre os Nambiquaras e descreveu alguns de seus hábitos, relatou seu cotidiano, sua organização familiar, suas crenças, seus hábitos alimentares, sua organização social. Ele conta no livro que os índios dormiam no chão, ao lado de fogueiras, e quando o fogo se extinguia eles rolavam nas cinzas ainda quentes, para se proteger do frio. Conta que nunca viu uma criança apanhar nem receber qualquer tipo de castigo. Nômades, os índios, na época da seca vagavam pelo cerrado à procura de alimento. Ele conta, também, que “todos os bens dos Nambiquara cabem facilmente na cesta carregada pelas mulheres durante a vida nômade. Essas cestas são de taquara rachada, trançada de forma bem aberta com seis tirinhas, formando uma rede de malhas largas estreladas.”

Penso na distância cada vez maior que vai se estabelecendo entre o presente e o passado. Isso é inevitável e óbvio, mas me preocupo com a velocidade com que esse processo se desenrola, nas características dele e nos seus efeitos nas pessoas.

Observando as cidades do interior do Brasil, vejo, num domingo, várias pessoas sentadas na calçada, em frente às suas casas, conversando, trabalhando ou simplesmente vendo o dia passar. Para os Nambiquaras o contato com a natureza era completo, a relação era de dependência estrita, integral. O convívio com os animais, a busca por alimentos, a caça, os medos e alegrias referem-se ao meio ambiente de modo privilegiado. Hoje, a cidade domina. Desta forma se expressou o sociólogo Octavio Ianni, num domingo, no jornal Folha de São Paulo (19/08/2001): “O mundo já é uma grande cidade. Uma cidade modulada em muitas cidades. Cidades em cadeias encadeadas, esgarçadas entre si ou atadas umas às outras, umas dentro das outras. Vistas assim, em perspectiva ampla, são as cidades que compõem a cartografia do mundo, uma vasta cartografia urbana, arquitetônica, simultaneamente caótica e babélica; a mais fantástica obra de arte coletiva.”

Que distância se coloca entre esta grande cidade e o Brasil da década de 1930 ou do território e vida dos Nambiquaras? Muita coisa mudou e não sei se as pessoas se dão conta destas mudanças. A calçada não é o solo arenoso do cerrado seco no mês de agosto na região Norte do Brasil, mas as pessoas estão no chão, na frente de suas casas como se quisessem interagir com uma natureza que não é mais a de tempos atrás.

As pessoas estão nas ruas porque suas casas são, cada vez mais, menores, baixas, quentes, isoladas por grades ou por muros altos. São guardadas por cachorros bravos eternamente amarrados a grossas correntes, nervosos, neuróticos, agressivos e perigosos. As pessoas estão nas cidades porque querem estar umas perto das outras, porque foram expulsas do campo, porque querem “comida, diversão e arte” como cantaram os Titãs.

O mundo vai mudando rapidamente e isso é bom e ruim ao mesmo tempo. Certos mecanismos nos isolam, outros nos aproximam. Muitos fogem das cidades nos domingos e feriados, numa corrida louca em busca da natureza perdida. Vão para a praia, para as montanhas, para os parques, para o campo, simplesmente para passar o dia. Uns vão para a rua porque não têm outra opção, outros se cercam, se aprisionam em imensos e modernos castelos. Um dia, num futuro que pode estar cada vez mais próximo dada a velocidade com que se processa o transcorrer dos tempos, as contradições vão se aproximar mais de perto, e este encontro pode ser um embate, não uma confraternização. Aí teremos “saudades do futuro”, como disse certa vez o geógrafo Armando Corrêa da Silva.

terça-feira, 20 de julho de 2010

A lagartixa da biblioteca

Renato Muniz Barretto de Carvalho


Minha biblioteca anda parecida com um zoológico. Nos últimos tempos passou por aqui um morcego, que gostava de ler, uma traça, que felizmente comia roupas, e, por último, uma lagartixa doméstica


Pequena, esbranquiçada, silenciosa, ficava me observando e nem abanava o rabinho. Como sou muito maior do que ela, logo vi que o bichinho ficou muito assustado, temendo por sua integridade física, com medo que eu lhe desse uma vassourada. Eu não faria isso, jamais. No começo ficamos um tempo olhando um para o outro. No que ela estava pensando eu não sei. Logo me pus a imaginar quais seriam suas escolhas literárias: romances? Contos? Poesia? Literatura estrangeira ou nacional? Assuntos acadêmicos?


Minha primeira reação foi de alguém incomodado, invadido na sua privacidade, afinal eu não a convidei, ela entrou de atrevida. O que fazer para ela se retirar? Dizer que foi um prazer conhecê-la, agradecer a visita e abrir-lhe a porta da rua? Não adiantaria, mesmo com a maior gentileza. Conversar sobre literatura? Hoje em dia anda tão difícil encontrar um bom papo, alguém que goste de conversar desinteressadamente, sem pressa, com sabedoria e humildade suficiente para não constranger o interlocutor. Às vezes, me sinto desatualizado, percebo que os jornais e revistas são muito tendenciosos em todos os assuntos. Uma lagartixa, vinda sei de onde, poderia me trazer alguma informação nova, contribuir com alguma crítica interessante.


Estava pensando nessas coisas quando levei um susto danado: conversando com uma lagartixa? Será que a falta de um ambiente intelectual mais diversificado, a carência de ideias novas e a ausência de um cenário mais propício à criatividade me conduziam ao delírio? Induziam-me ao desespero, a ponto de tentar um diálogo com uma lagartixa? Pelo menos, dizem que elas trazem prosperidade, significam boa sorte. Ando precisando.


Como ela não se movia, peguei um livro de zoologia na estante e fui investigar sua vida. Parece que seus antepassados vieram da África, nos navios negreiros. Apurei que elas são parentes distantes das tartarugas e dos jacarés, não transmitem doenças e não costumam freqüentar lugares contaminados. Bichinho simpático, não?


Não gosto de emprestar livros, mas se ela escolheu freqüentar minha biblioteca, que ficasse, desde que não estragasse e não levasse nada embora. Se quisesse ler alguma coisa que fosse aqui. Podia ligar a luminária, abrir a cortina, escolher onde se sentar, mas não podia sujar os livros. Acho que não é de seu feitio. Não recomendei que não comesse na biblioteca porque li sobre seus hábitos, ela se alimenta de insetos e assim podia até ajudar em alguma coisa. Logo pensei em lhe oferecer morada fixa, sem precisar se preocupar com taxa de condomínio, água, luz e telefone. Mas pensei melhor e achei que num jardim ela se sentiria mais confortável. Sei que ela não iria se demorar, que iria embora sem dizer adeus e me deixaria novamente , com minhas ideias e elucubrações, esperando que um dia ela voltasse e nós dois pudéssemos conversar um pouco mais sobre as novas tendências literárias, sobre os novos autores africanos, sobre os latino-americanos e sobre a última postagem do Bibliotecário de Babel.

domingo, 11 de julho de 2010

As formigas do jardim

Renato Muniz Barretto de Carvalho

Não vejo muita graça em comparar animais ou plantas e seres humanos. Cada um tem a sua especificidade, a sua originalidade, um jeito próprio de ser e existir. Acreditar que o que acontece com eles pode acontecer conosco é um tanto forçado, em todo caso... La Fontaine e Esopo que me perdoem.

Acontece que no meu jardim, nos últimos tempos, tenho observado a ação de umas formigas que não param de cortar as plantas. Já tentei conversar com elas, me explicar, convencê-las de que não devem cortar as flores do meu jardim, mas não adiantou, elas continuam cortando.

Até entendo que se não fosse esse seu gesto, esse seu modo de trabalhar, elas não sobreviveriam, afinal, todo mundo precisa comer. Aí vem outro problema: elas comem tudo, comem demais, querem rapar tudo, são insaciáveis! Não descansam enquanto não depilam uma ou duas arvorezinhas por completo.

Pensei em agir de modo radical. Iria numa loja de produtos agropecuários, compraria, com a devida receita agronômica, um tanto bom de veneno e acabaria de vez com todas as formigas. Pensando bem, resolvi deixar essa atitude de lado, o veneno poderia até me intoxicar, poderia contaminar meu jardim. Melhor seria buscar outra estratégia.

Outro dia pensei em arranjar umas cigarras e pedir a elas que cantassem para distrair as formigas, mas me lembrei que essas duas espécies não são muito amigas. Formigas gostam de cortar folhas, cigarras de cantar e, no passado, as formigas deixaram as cigarras padecerem de fome e frio no inverno.

Sei que, talvez, a culpa não seja das formigas, pois fomos nós que alteramos seu habitat e, a partir do desequilíbrio causado por nós mesmos, elas aumentaram muito. Seus predadores naturais, que poderiam ao menos controlar seu apetite, desapareceram, porque nós também os destruímos. Na verdade, não culpo todos os seres humanos, seria injusto da minha parte, pois nem todos são responsáveis pela degradação ambiental, nem todos são poluidores ou esbulhadores do patrimônio ambiental que, afinal, é de toda a humanidade.

Alguns são responsáveis, e muito pela destruição ambiental. Por um motivo ou outro, a mando de alguém ou visando seus próprios interesses, algumas pessoas põem fogo onde não devem, despejam resíduos tóxicos em rios limpos, jogam esgotos, ou deixam que joguem, em mares, lagos e córregos. Usam e abusam de produtos tóxicos, venenos, aditivos proibidos, não respeitam carências, mentem a esse respeito, burlam a legislação. Os atingidos nem sempre têm sequer o direito, ou o tempo, de se defenderem. Crianças e idosos, geralmente os mais frágeis, sofrem com a ganância e a fome de lucros de uns poucos. Aqueles que acobertam ou não fiscalizam são, de certo modo, cúmplices.

Enquanto isso, as formigas não desistem do meu jardim. Não sei se elas próprias sabem que, talvez, até elas fiquem sem ter o que comer no futuro. Se minhas arvorezinhas morrerem, não sei se planto outras.

Pensei nessa história toda por causa de uma declaração que vi num jornal. Um governador disse: “Não podemos abrir mão de nosso desenvolvimento. Hoje, de 25% a 28% de nossa área estão sendo utilizados para a agricultura ou para a pecuária. Podemos chegar até o percentual de 40% e iremos fazer isso”. (Jornal da Ciência, 6/08/04). O governador se colocava contra a proposta da SBPC de uma moratória no desmatamento da Amazônia. Proposta que não foi bem recebida por ele.

Aí me lembrei das fábulas. E me lembrei também daquela sobre os sócios do leão, que vou contar a seguir. Dizem que, há muitos anos, uma ovelha, uma cabra e um leão tornaram-se sócios. Um veado caiu numa armadilha da cabra e eles quiseram fazer a partilha da presa. O leão logo partiu a caça em quatro partes e disse: — eu fico com a primeira porque sou o rei, pego a segunda por direito, tomo a terceira por ser dos três o mais valente e, se alguém quiser a quarta, acabo com ele.